(porque
há meses em que o sentimento de injustiça é maior)
O
Verão está definitivamente morto e enterrado, na Bélgica. É preciso comprar já
a roupa de meia-estação. Não há malabarismo possível. Não dá para pensar que
este mês compro o material escolar e, no próximo, a roupa. De manhã, quando os
miúdos saem para a escola as temperaturas já estão bastante baixas. Chove. São
precisos casacos, botas. Roupa quente. Nem vale a pena ir buscar a roupa do ano
passado, ambos cresceram demasiado. O Diogo já se veste na secção de homem,
onde tudo é mais caro. O Vasco rasga calças, mete nódoas nas camisolas, perde
casacos, estraga ténis. O Diogo já pede roupa de marca. Da H&M, podia ser
pior. O Vasco não é esquisito no que toca a indumentária. Roupa dada, sem ser de marca ou comprada em segunda
mão. Qualquer coisa é boa para arruinar usar. Mesmo assim, tanta roupa para ambos, de uma só vez, custa dinheiro. Muito.
Além
disso, há o equipamento de desporto que é preciso comprar logo no início do ano
lectivo. Todas as actividades recomeçam em Setembro. Novos fatos de banho,
chinelos e óculos, que os últimos desapareceram para parte incerta. É o que dá
a natação ser dada na escola. Ténis e sapatilhas para educação física. Mais os
calções e as t-shirts oficiais das escolas de ambos, pagas a preço de ouro. Um saco
novo de ginástica que durou, nas mãos do Vasco, um dia. Um dia inteirinho de 6
horas, atenção. As botas da equitação felizmente ainda servem, mas as calças já
não. E, agora, há ainda o equipamento de ballet do Vasco. Não faço ideia o que
hei-de comprar, mas talvez seja melhor esperar mais um bocadinho, para ver se
ele não se assusta com os tutus cor-de-rosa da meninada. Enfim, este ano não é
preciso comprar nada muito caro. Mas mesmo assim, tantas coisas para ambos, de
uma só vez, custam dinheiro. Muito.
Depois,
há que pagar as inscrições e as próprias actividades extracurriculares. A
educação física está incluída nas aulas, mas a natação é paga à parte. E,
infelizmente, é tudo pago anualmente. De uma só vez. Equitação numa nova
escola. Ballet. As aulas de solfejo e de instrumento. Este ano, o Diogo decidiu
que, além do trompete, também queria aprender violoncelo. Cheira-me que o Vasco
vai querer imitá-lo, que o amor pelo violino foi um paliativo até haver
violoncelos da sua altura. O preço mantém-se, independentemente do número de aulas.
E os violoncelos são cedidos pela academia. Só assim é possível fazer-lhes a
vontade. Até porque as academias de música são incomparavelmente mais baratas
do que em Portugal, graças aos subsídios estatais que recebem. Mesmo assim,
tantas actividades para ambos, de uma só vez, custam dinheiro. Muito.
Setembro
é também o mês de correr as capelinhas todas, no que toca a médicos.
Ortodontista para o Vasco, que vai finalmente tirar o parelho. Dentista para
ambos. Dermatologista para o Diogo. As consultas de oftalmologia terão de ficar
para o mês que vem. Mas a consulta de psicologia do Diogo não pode ser adiada.
O otorrino e o cardiologista infantil têm meses de espera. Felizmente, no
sistema de saúde semi-privado belga, as consultas médicas mais comuns são
completamente gratuitas até aos 18 anos. Quer sejam no centro hospitalar ou no
privado. O único senão é que são reembolsadas posteriormente, ou seja, é mesmo
preciso avançar o dinheiro. E avançar tanto dinheiro, este mês, não é fácil…
A
escola também é gratuita na Bélgica. Ambos os rapazes andam em escolas
privadas, cujo custo é assumido pelo Estado. Sendo nós ateus, o ensino católico
não seria a minha primeira escolha, mas a qualidade de ensino é efectivamente
superior. Infelizmente, não têm os mesmos apoios municipais das outras escolas
e as facturas são sempre bastante elevadas. Os manuais escolares são, na sua
maioria, emprestados pela escola. Tal como os dicionários e as gramáticas. Mas
há alguns livros que temos de mesmo comprar, principalmente, os livros de
leitura obrigatória. Na primária, há também a anuidade de várias revistas
infantis… que são pagas em Setembro, claro. A lista de material escolar a levar
no primeiro dia de aulas é enorme. E sente-se a pressão dos meninos mais
abastados, que só usam coisas de marca. Caras, muitooo caras. Tento contrariar
isso, por uma questão de princípio, mas nem sempre é possível. Como os meus
filhos são uns vândalos, o material é comprado por atacado logo em Setembro,
para nunca ser apanhada desprevenida. Estamos no final da primeira semana de
aulas do Vasco, a mochila já está rasgada e a caneta de tinta permanente já jorra
tinta. Este ano avizinha-se como o anterior, em que comprei 6 mochilas para
ambos. Não, perdão… uma teve o patrocínio paterno. Porque há pais que pagam e
há pais que oferecem. Para uns, é uma obrigação indelével e imediata. Para outros, um
pequeno gesto displicente de generosidade para com os mais necessitados.
Eu
vim viver para a Bélgica exactamente para poder oferecer aos meus rapazes esta educação.
Uma educação em colégios privados, com um ensino de qualidade, de proximidade.
Adaptado e individualizado. Uma educação que passa pela mente, mas também pelo corpo. Que envolve
conhecimentos, desporto, música. Cultura. Uma educação de luxo, não tenho pejo
nenhum em dizê-lo. Que me sai do corpo, quando faço de motorista/piloto de F1
para os levar a horas a todo o lado. Que exige paciência e doses de
perseverança para os obrigar a estudar e a tocar todos os dias. Que me custa
anualmente muito dinheiro, em Setembro. E, semanalmente, em gasolina. Que me
obriga a trabalhar menos horas para os poder acompanhar. Posso, em consciência,
afirmar que os meus filhos não têm apenas uma educação de luxo, têm também uma
mãe muito presente. E o paradoxo de tudo isto é que eu sou penalizada por ter
emigrado em busca de condições melhores para os meus filhos. O meu castigo é ter
de assumir financeiramente tudo sozinha. Ter de pagar tudo integralmente
sozinha. Da comida à escola. Dos médicos às actividades extracurriculares. Do
material escolar ao lazer. Tudo. Sozinha. Por pura vingança.
Às
vezes, quando não tenho ninguém por perto, choro. Não são lágrimas de tristeza,
são lágrimas de raiva. Raiva pura que eu calo e que acaba por sair, assim, em
forma de rio. Depois, passa. Obrigo-me a fazer o exercício da gratidão. Digo
para mim mesma que não estou sozinha. Que tenho muita sorte. Onde uma única
criatura falha, há imensas pessoas que me estendem a mão sem sequer
ser preciso pedir. Tenho vizinhos que me dão roupa. Tenho colegas que me dão
material escolar que os filhos já não precisam. Tenho família que manda coisas
de Portugal. Que me ajuda a pagar contas. Tenho o meu amor que assume dois filhos
que não desejou, nem fez. Mas que ama incondicionalmente. Não assume
financeiramente, porque eu não deixo. Tenho o meu orgulho próprio. Mas ele
arranja sempre maneira de me dar a mão discretamente, quase sem se fazer notar.
E isso não muda a situação de extrema injustiça que vivo há dois anos,
mas sara as feridas internas e dá força para continuar.
Setembro
é o mês da raiva. Da raiva cega e
surda e muda. Da raiva que há
demasiado tempo guardo apenas para mim, mas que me corrói por dentro. E que não
pára de crescer, qual monstro insaciável. Da raiva que se alimenta de todas as
facturas que tenho de pagar este mês. Raramente me queixo. Tenho muito orgulho
em sustentar sozinha os meus filhos. Mas em Setembro… bolas, em Setembro, custa
muito.
Até fiquei abananada...
ResponderEliminarSe ainda sobrar alguma coisa no orçamento em Outubro, compra um saco e umas luvas de boxe e e liberta essa raiva toda.
Fiquei a pensar como na minha vida só tenho probleminhas! E como cada vez a admiro mais...Até fica mal aqui escrever "Força, vai conseguir!"...Eu sei que vai, não era preciso é tanta prova para superar! Um abraço, se quiser
ResponderEliminar@ Gralha, eu devia era começar a correr, como tu, para ver se libertava esta raiva toda que me consome. Felizmente, o meu querido Dr. Sauvage nao deixa... ufa! :)
ResponderEliminar@ Obrigada pelo abraço, Mariana B. Aconchega sempre.
O pai dos miúdos não é obrigado pelo tribunal a pagar uma pensão de alimentos aos filhos? Não é justo ser a mãe a suportar tudo, e o senhor dar um presente de vez em quando.
ResponderEliminarUm beijo grande para uma mãe fantástica que acompanho em silêncio há muito tempo.
Caramba! Já tinha percebido que a tua vida não era fácil e que não podias contar com o pai dos teus filhos, mas o que relatas é de uma injustiça inqualificável.
ResponderEliminarNão sei se te conseguimos ajudar mais, mas parece-me que já conseguiste aqui um grupo de pessoas que te aplaude e incentiva.
Tudo de Bom para este novo ano!
@ Cristina Silva, obrigada pelo elogio. :)
ResponderEliminarNo julgamento na Bélgica para decidir a guarda dos rapazes, o meu advogado achou por bem centrarmo-nos primeiro nessa batalha e deixarmos a outra para depois. Na época, concordei com ele. Só não imaginei que o "depois" demorasse tanto tempo... Mas há-de ser feita justiça, porque a pensão de alimentos é um direito das próprias crianças, não dos progenitores.
@ Obrigada pelo incentivo, ddm. :)