(uma
espécie de diário de bordo sem filtros, escrito aos bocadinhos)
Quinta-feira, 1 de
Outubro
Dia
de trabalho complicado. Em Verviers, somos apenas quatro. Metade está de baixa.
A outra metade, entravada. Quando atendo o telefone, as pessoas desatam a contar
a sua história. Nunca sei se devo fazer de chefe, de secretária, de assistente
social ou de coordenadora do centro de documentação.
À
noite, vou beber café com os meus antigos alunos de Espanhol. Querem
convidar-me para continuar a dar-lhes aulas particulares. Fico comovida.
Nasceu
mais um mandarim. São agora 3, resta um ovo. São uns nano-aliens nojentos sem
penas, mas comovem-me na mesma.
Sexta-feira, 2 de
Outubro
As
dores esta manhã são insuportáveis. O Pascal decide ir trabalhar comigo.
Suspiro de alívio só de pensar que não terei de fazer 100 km ao volante… E que
vou tê-lo ao meu lado o dia inteiro. Tão bom!
Chegamos
à escola do Vasco a tempo de falar com a directora, à saída. Explico que não
nos sentimos muito satisfeitos por deixar a coisa pequena partir na classe verte sem conhecermos melhor a
nova professora. Seria mais lógico fazer a colónia depois da reunião de pais,
quando a professora soubesse o que a espera. A directora sorri. “Não estou a
dizer que a senhora é mãe-galinha… Mas não se preocupe, todaaaa-a-gente-conhece-perfeitamenteeee-o-Vasco-nesta-escola. E
pisca o olho ao Pascal.
Fisioterapia
no final da tarde. A terapeuta-fofinha diz para ligar urgentemente à especialista em
medicina de reabilitação. Estou febril. O braço está quente. “Todo o braço”,
frisa. Não percebo o que quer dizer, mas ligo à médica. Deixo recado no
atendedor.
Sábado, 3 de Outubro
Levanto-me
cedo para levar o Vasco às aulas de ballet em Malmedy. Cada vez gosto mais
destas manhãs de sábado a dois. Ele também, sai satisfeito e falador. Diz que
adora os exercícios de barra no solo.
À
tarde, vamos finalmente fazer a “Ballade
des Champignons”. Um passeio nos bosques com um especialista em cogumelos
(deve ter um nome científico qualquer). Esqueço as dores. No início, só
encontramos cogumelos venenosos e rimos com a aselhice. Acabamos por sair de lá
com o saco cheio. Mal chego a casa, cozinho alguns como o senhor nos explicou.
Delicioso! Agora que sei apanhá-los, nunca mais compro cogumelos.
Festa
surpresa dos 18 anos do Michael, filho da minha amiga Christine. Nenhum de nós
está para aí virado, fazemos um esforço. Ficamos impressionados com o Raúl, que
preparou sozinho um buffet faustoso
para 65 pessoas. Fico feliz por ela ter enfim tropeçado no príncipe encantado.
O Michael reencontra o pai, a madrasta e a irmã, que não vê há anos. Eu seria incapaz
de um gesto tão generoso para com um animal que desapareceu da vida do
filho. Choro com o discurso da Christine. Tenho tanto orgulho nesta mulher, minha
“irmã do coração” como ela diz.
Domingo, 4 de Outubro
Obrigo-me
a fazer as coisas aos bocadinhos, dormindo pelo meio. Lavar, estender e
dobrar roupa. Há que aproveitar o sol, que se faz raro. Faço a mala do Vasco,
riscando item por item. A minha cabeça já não é o que era. Faço os almoços e
lanches da semana. D. Fuas consegue roubar boa parte. Nos últimos tempos anda
insuportável, não sabemos o que fazer.
Às
21h, ligo ao meu pai. Ele aumenta a TV, mas não consigo ouvir os resultados.
Procuro informação no Facebook. O Diogo vem perguntar se já sei alguma coisa. O
telefone toca passado pouco tempo. Fico incrédula. Ainda estou incrédula quando
o Pascal chega, horas depois. Tento explicar, falha-me a voz. Não votei. Foi o
senhor da CGD em Bruxelas que me informou que os cadernos eleitorais tinham
fechado, no início do Verão. Da embaixada nunca consegui informações. Merda de
país. Sinto-me apátrida.
Os bebés mandarins morreram. A mãe cansou-se de andar sempre em cima
deles e acabaram por morrer... gordinhos, mas enregelados. Mas estão a progredir, os primeiros foram comidos ainda dentro dos ovos. Pelo
menos, deixaram o canibalismo filial.
Segunda-feira, 5 de
Outubro
Levo
o Vasco à escola cedíssimo. Vejo mães de telemóvel na mão a tirar fotos aos
meninos, que partem pela primeira vez com a escola. Vejo meninos com malas
maiores do que eles. O meu acenou-me calmamente e lá foi, com um pequeno trolley
atrás. São muitos anos a virar frangos.
Continuo
sem notícias da médica. Hesito em insistir, não gosto de chatear. O Pascal
decide rumar comigo ao hospital. Em duas horas estou despachada. O médico
acompanha-me à porta. Não percebo. Exames feitos. Braço imobilizado ao peito. Medicamentos
num saquinho. Baixa médica passada. Não percebo. Exames mais complexos marcados. Consulta
com um cirurgião especializado em ombros marcada para a semana. Não percebo. Diagnóstico: poliartrite.
Que sim, que é verdade que causa dores horríveis. Ele percebe. Eu não. Mas é importante ouvir que não estou maluquinha, que o que eu sinto é mesmo muitíssimo doloroso.
No
carro, o Pascal diz para não me preocupar. Só depois dos exames mais exaustivos
haverá certezas. Talvez não seja isso. Mas não há-de ser grave. As doenças
auto-imunes são controláveis actualmente. Não percebo. Não faço ideia do que é
a poliartrite, mas as palavras dele deixam-me ainda mais preocupada.
Em
casa, corro para a internet. Em português não aparece nada de jeito. Procuro sempre primeiro
em português. Passo ao francês. Começo a perceber. Decido não dizer aos miúdos,
não vale a pena assustá-los.
Insisto
para o Pascal se ir embora, não preciso de babysitter. Provavelmente,
fui demasiado bruta. Se fizer um bolo para o jantar talvez compense. Será que
consigo fazer bolos só com uma mão? Estou a debater-me com as calças de ganga a
pensar no que raio vou vestir que consiga despir com uma mão. D. Fuas decide
transgredir a regra e entra no quarto. Olhos postos em mim, começa a fazer chichi
no chão. Grito com ele e esconde-se debaixo da cama. Quanto mais grito,
mais ele foge a fazer chichi pela casa fora. Escorrega e cai pelas escadas
abaixo, aí só grito de susto. Uma vez chegado à sala, a bexiga já devia
estar vazia, pelo que passa a algo mais
consistente. Vou ao quintal buscar o balde e a esfregona. O pandemónio é
total.
Desato
a chorar, finalmente. Choro porque me sinto só. Estou farta de estar só, num
país estrangeiro. Choro porque me pergunto como raio vou conseguir pagar os
exames todos que me marcaram e a operação e o tempo de baixa médica e o raio.
Choro porque não sei o que vou fazer à minha vida com uma mão imobilizada. E o
resto, que é bem pior. Choro porque tenho raiva do mundo. Consegui chegar aqui, conseguimos chegar aqui. Não é justo.
À
tarde, ligo à minha mãe. Tenho a desculpa das eleições. Já
passou o choque. É tudo tão relativo. Falo por alto do que se passa, mas gozo
com as desventuras do cão. É tão mais fácil brincar com as situações, não a
quero deixar preocupada.
O
Pascal volta com mais uma caixa de gelado de spéculoos. Percebo que também está preocupado. Faz festinhas ao
cão, diz que o que ele fez é sinal de amor profundo ao dono. Que sentiu o meu
medo. "Não estou com medo!", digo muito depressa. Ele vai buscar-me gelado, mas
primeiro derrete-o um minuto no micro-ondas. O mesmo tempo do Vasco,
informa-me.
Antes
de me deitar, vou aconchegar o filho pequeno. Fico surpresa por ver a cama
vazia.
Terça-feira, 6 de
Outubro
Consulta
de parodontia esta manhã. Estava marcada há meses, tinha-me esquecido. O
Pascal, não. Peço encarecidamente ao médico que me dê pouca anestesia, que
prefiro sentir alguma dor quando fizer a limpeza das raízes dos dentes. Percebo
que não me liga nenhuma, quando o vejo substituir os frascos de anestesia uns
atrás dos outros. Concentro-me nas imagens de Portugal que passam no ecrã fixado ao tecto do consultório.
Chegamos
a casa mesmo a tempo de me pôr a caminho da cidade do Luxemburgo. Pensei muito
se deveria fazer os testes para o concurso de tradutores da Comunidade
Europeia, marcados para as 14h. Sei que não tenho hipótese, nunca passarei nas
provas de matemática. Tenho uma mão ao peito. A cara completamente anestesiada
do nariz ao pescoço. Chove a cântaros. Mas tenho de tentar, pelo menos tentar. Decido tirar a porcaria da
tala que me imobiliza e escapulir-me pelas escadas abaixo. Quando o Pascal
percebe, já eu arranquei de carro. Não posso continuar a deixar que o homem
assuma tudo, a vida dele, a minha, a dos rapazes.
No
caminho, fico sem gasolina. As estações de serviço são raríssimas nas
auto-estradas na Bélgica, nunca percebi porquê. Ao fim de 50 km na reserva, saio
da auto-estrada. Bem-dito Gps. Aproveito e compro um sumo de laranja… que não
consigo beber sem entornar metade em cima do vestido. Vou matar o parodontista,
já passaram horas desde a anestesia. Como não consigo comer, decido
não arriscar a tomar os medicamentos. Percebo que, de
facto, a tala resulta mesmo. As dores voltaram em grande.
Chego
a horas, mas não arranjo estacionamento. Corro até
ao centro de exames, chego 10 minutos atrasada. Um feito. Sou revistada e
passo no detector de metais. Tenho de deixar as minhas coisas num cacifo.
É estranho, estava a ver que me tiravam a tala. Duas horas e
meia de intermináveis perguntas para responder em menos de dois minutos, dou a
tortura por terminada. Lixei-me com a pergunta sobre o consumo de cerveja por
habitante na República Checa em 2003. Vinha em tonéis para passar para litros.
Depois de somar a quantidade consumida em garrafa, em lata, à pressão e mais
qualquer coisa. Ah… e pediam a percentagem. Era isto, mais coisa menos coisa.
Mas tínhamos uma calculadora à disposição. E dois minutos. Sempre soube que a
matemática havia de me lixar a vida com F. Isso e a cerveja, claro.
Regresso
a casa, exausta. O Pascal nem discutiu comigo por causa da fuga. Comprou-me
mais gelado de spéculoos. Ao jantar, o filho crescido queixa-se do silêncio.
"Faz falta o Vasco", disse. O Pascal concorda. Fiz-me de forte, já tenho
tantas dores.
Quarta-feira, 7 de
Outubro
Vamos
buscar o Vasco à classe verte. Por
110 euros/três dias bem podiam ter trazido a criançada de volta. Fica estático
a olhar para o meu braço imobilizado e não nos cumprimenta. Demora muito
tempo a falar. Veio completamente rouco.
A
mala veio imunda. A roupa veio imunda. A pouca que veio, claro. Os ténis e o
kispo ensopados. E imundos. Mas, pelo menos, vieram. Já não é mau…
À
noite, quase janta ao colo do Pascal. Atasca-se a mim aos beijinhos. A coisa
pequena precisa de tempo. O Diogo ria, aliviado. Os
meus homens todos em casa.
Quinta-feira, 8 de
Outubro
Recebo
um postal que o Vasco me enviou da colónia. Diz que chegou bem, que se está a
divertir muito. Pergunta se me estou a divertir (?!). Diz que sente muito a
minha falta. Soube depois que foi ideia do Pascal, que foi comprar postais e selos com ele, antes de partir.
Também
recebo cinco e-mails do outro.
Dizemos sempre “l’autre”, criatura
sem nome. “Mas vai pagar?!”, pergunta o Pascal a rir. Claro que não. Criatura
imoral. “Mas, pelo menos, ela inovou nos insultos?” Dizemos sempre “elle”, criatura-sombra. Claro que não.
Até para isso é preciso imaginação. E inteligência. Já só peço correcção linguística.
Insultada, sim, senhora… mas, de preferência, sem ser ao abrigo do “AO for
Dummies” e sem erros que me dão urticária.
Jantamos
cogumelos, mais uma vez. A sobremesa é gelado de spéculoos, para não variar.
Preciso de esvaziar o congelador. Acho que nunca mais vou comer cogumelos na
vida. Já nem os posso cheirar.