(onde se encontra um porto seguro para o destrambelhamento natural)
Vim
parar à tradução por mero acaso, já o devo ter dito aqui. Tornei-me tradutora
porque, um dia, comecei a rever um livro que o tradutor tinha deixado ficar a
meio, sem aviso prévio. A editora pediu-me para acabar a tradução. Detestei,
mas acabei. E eles gostaram do resultado. Nunca mais parei de traduzir. Tenho
feito algumas pausas, ao longo da vida, mas nunca parei. Já lá vão quinze anos.
Dezenas de livros e muitas centenas de programas. Milhares? Com o tempo,
tornou-se um amor agridoce. Mas nunca foi profissão que me atraísse. No
universo dos livros – onde se situa indubitavelmente o meu planeta Terra – era
mesmo a única profissão que me desagradava. Estava convencida de que a dislexia
seria a minha pior inimiga. Hoje sei que há imensos tradutores disléxicos.
Pensando bem, até tem a sua lógica. O disléxico é alguém que, por força das
circunstâncias, teve de aprender a decifrar
desde muito cedo. Ou seja, teve de aprender a descodificar diferentes sinais
que os restantes mortais parecem dominar como se fossem automatismos. Ler ou
escrever uma simples palavra, para mim, não é um mero automatismo. Bom, para
ser totalmente honesta, dizer uma simples palavra não é um automatismo. Nunca
foi, nem nunca será. Quando converso, o discurso saí-me fluído. Demasiado
fluído; sou uma tagarela em diversas línguas. O problema surge quando tenho de
dizer palavras isoladas ou pequenas frases. E a minha mente bloqueia. Visualizo o seu significado,
mas a palavra foge para parte incerta. Antigamente, ficava calada. Assustada. À
espera que a dita palavra surgisse, lado a lado com o significado que continuava a piscar na minha cabeça. Hoje, vivo com outro disléxico e isso muda tudo.
Agora, começo a dizer os diferentes sinónimos que me vão surgindo naturalmente.
Digo eu e diz ele, até encontrarmos o termo certo. Com toda a calma.
Tenho
exactamente a mesma compreensão para com as dificuldades do meu amor. E faço-o
sem qualquer esforço. O que poderia ser encarado como um defeito, para nós, é
apenas mais uma característica intrínseca do outro. Somos disléxicos muito
diferentes. Mas ambos gostamos de desafiar a nossa mente torpe. Traduzindo. Fazendo
mergulho ou pilotando aviões. Ou navegando em alto-mar. Não há coisa pior para
um disléxico do que ficar sem as suas balizas habituais. Como quando luto com
as palavras que não surgem, ou que me aparecem completamente truncadas. Como
quando ele luta com espaços tridimensionais imensos, vazios, sem qualquer
referência. A minha tábua de salvação é a gramática, que normalmente me indica
a saída. As regras de construção de uma língua – seja ela qual for – são quase
sempre infalíveis. As excepções, conheço-as bem. Também me servem muitas vezes
de marcos extra no meio do nevoeiro mental. O meu amor aprendeu a contar com o
mapa estrelar. Com uma inteligência apuradíssima. E uma memória absolutamente
extraordinária. Eu passo a vida a lutar ferozmente contra a minha má memória a
curto prazo. Já não perco coisas, mas continuo a perder-me no tempo. Muitas
vezes, no espaço. O meu amor também. Não consigo distinguir a esquerda da
direita. Ele nunca consegue estacionar num lugar vago surgido do nada. Tal
como, às vezes, falha saídas de auto-estrada ou se engana num caminho.
Engana-se muito mais nos caminhos que fazemos diariamente. Eu faço-os em modo automático, frequentemente sem ter a mínima ideia de como fui do ponto A ao ponto B. Mas nada disto é
problemático. Faz parte da nossa doideira partilhada. Não vos consigo explicar
a tranquilidade que esta compreensão mútua nos trouxe. Finalmente, pudemos
baixar a guarda. E sei que me tornei também melhor profissional.
Sou,
hoje, uma tradutora muito mais calma. Sem dúvida, mais segura. Conheço as fragilidades
da minha mente como ninguém. Sei precisamente onde se encontram as armadilhas.
Rever os meus textos é como andar à caça. Tenho de perceber os indícios para
conseguir prever a localização da minha presa. Talvez seja por isso que sou uma
exímia revisora de textos alheios. Adoro rever. Quando acabo uma tradução,
sinto um alívio imenso. Começa, então, a minha parte preferida: a revisão. Ora
a tradução e legendagem tem uma vantagem evidente sobre a tradução literária,
dado que os trabalhos são bastante mais pequenos. O cansaço é o pior inimigo do
disléxico, pois cede espaço mental ao erro. Refiro-me ao cansaço que advém do
facto de se traduzir centenas de páginas a fio, ininterruptamente, sem mudar de
fonte, sem mudar de tamanho, sem mudar de estilo. Sem mudar de tema. É
cansativo. E, às vezes, desliga-se um fusível. O erro acontece. Vá… não lhe chamemos
erro. Na verdade, trata-se mais de um deslize. O cérebro tropeça. Uma letra
troca de sítio, sem nos darmos conta. Duplica. Ou desaparece. E os nossos olhos
não vêem, porque só lêem o que querem. Como é óbvio, lêem sempre sem erros. Os
nossos olhos são mágicos: lêem o que é suposto
estar lá. Contudo, a tradução literária oferece mais margem de manobra em
termos de revisão. Ou seja, é mais fácil acontecer um deslize, mas temos mais
tempo para deixar repousar os olhos cansados antes de iniciarmos a caça. Na
tradução e legendagem não há tempo para o caçador descansar. É traduzir, rever
e entregar. E, no dia seguinte, voltamos à mesma rotina sôfrega… Traduzir,
rever e entregar. Os deslizes são quase nulos, mas é mais difícil apanhá-los.
Para quem gosta de caçar, como eu, é mais engraçado intercalar trabalhos.
Agora,
vou voltar durante uma temporada à tradução literária. 504 páginas, para ser
mais exacta. A maior vantagem é mesmo poder voltar a ouvir música, enquanto
trabalho. O meu disléxico namorado não compreende como consigo concentrar-me
melhor na tradução, deixando o meu cérebro distrair-se propositadamente pela
música. Mas só consigo ouvir música que conheça na perfeição. Não tenho
explicação para o fenómeno, a verdade é que resulta. E é sempre do que sinto
mais falta, quando faço tradução e legendagem. Porque passamos o dia a ouvir,
mas o cérebro nunca se pode alhear. Porque o que ouvimos é sempre trabalho. E isto é cansativo. Não sei se já disse que
o cansaço é o pior inimigo do disléxico. O problema é que, no mundo da
tradução, o cansaço pode assumir diversas formas…
Ai, tanta, tanta coisa que me acontece também com a tradução! O cansaço, as rasteiras, ver o que se quer ver, a alegria de acabar!
ResponderEliminarBoa sorte para as tuas 504 páginas! Do alto das minhas 307! Isto custa, mas é tão bom, não é?
:)
É mesmo muitooo bom, Ana! :D
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