sexta-feira, 9 de junho de 2017

Ninguém me encomendou este fado

(onde se passa momentaneamente para o lado de lá)



Nestes últimos cinco anos, tenho ouvido todo o tipo de pergunta. A nossa vida parece suscitar curiosidade. A temática da emigração é recorrente. Questionam-me sobre a Bélgica, as diferenças entre os dois países, a problemática do bilinguismo, a distância da família, as saudades que sinto dos amigos, o isolamento… Às vezes, perguntam-me como é educar dois rapazes sozinha. O meu amor também é alvo de atenção. A nossa relação a quatro, que está a anos-luz da típica família recomposta. Muito raramente me questionam sobre a relação do Diogo e do Vasco com o outro lado. E eu agradeço o respeito pela privacidade dos meus filhos. No entanto, penso que seria interessante inverter esta questão. Ou seja: que tipo de mãe seria eu se estivesse do outro lado? Esse assunto atormentou-me largos meses, durante a disputa pela guarda do Diogo, em 2014. Estranhamente, nunca ninguém me fez essa pergunta. Talvez preferíssemos todos manter a esperança de que ambos os rapazes ficariam comigo na Bélgica e ninguém quisesse imaginar cenários derrotistas. Excepto eu e a minha mente atormentada. Passei muitas noites acordada a pensar no que faria, caso o Diogo fosse viver para Portugal. Felizmente, tal não aconteceu e já esquecemos esses tempos negros. Amanhã, o filho crescido faz 16 anos. Pela primeira vez, pediu expressamente para não receber a visita do outro lado. A sua vontade foi respeitada. Mas hoje, ao espreitar pela terceira vez a caixa do correio vazia, fiquei com a sensação de que a sua vontade foi também castigada. E voltei a pensar no que eu faria, se fosse o progenitor que está longe.

Acredito que é possível contrariar o paradoxo de nos mantermos presentes na vida de um filho que está longe. A distância pode ser colmatada de diversas formas. Não será o ideal, mas é exequível. Assim haja vontade de ambas as partes e – o mais importante – assim o progenitor em questão tenha capacidade para se apagar e pôr os filhos em primeiro lugar. Não vale a pena seguir cegamente a lei e obrigar toda a gente a viver no medo. Não vale a pena obrigar os filhos a falar todos os dias a determinada hora, só porque é o que está estipulado legalmente. Principalmente, se esse tempo for usado para falar do trabalho do progenitor, dos resultados da bola, do tempo que faz em Portugal e da vida de outras crianças que entretanto apareceram. A longo prazo, o que vai acontecer é que os miúdos vão associar esses telefonemas a uma obrigação isenta de prazer. E, quando perceberem que o tal medo instituído era meramente fictício, deixarão de atender o telefone. Nesse momento, já não haverá lei nem presença física que valha para reconstruir a relação filial. O telefone é um excelente meio de comunicação, mas a partir de certa idade deve ser deixado a cargo dos filhos. Quando um filho tiver algo importante para dizer, liga. Até lá cabe ao progenitor distante fomentar a vontade de falar. Se pensarmos bem, não é assim tão difícil… Mandar uma mensagem a dizer que se está em tal sítio e se lembrou de uma história divertida passada. Partilhar um post qualquer interessante no Facebook, o trailer de lançamento da série preferida, o cover de uma música que o filho gosta especialmente, um artigo que possam posteriormente discutir, etc. Hoje em dia, há tantas redes sociais que se torna fácil manter em aberto diversos canais de comunicação. Por que não manter um blog fechado para trocarem impressões e fotografias? Verba volant scripta manent. Além do mais, a escrita tem a vantagem de colmatar lacunas na língua materna dos filhos que estão a crescer num país estrangeiro.

Cada vez mais, as pessoas parecem centrar-se unicamente no imediatismo do contacto humano. Mas o Skype ou o Facetime diários nunca poderão substituir um postal ou uma carta mais longa (a escrita… novamente, a escrita!). Mostrar o crescimento de alguém através do iCoiso não substitui fotografias actualizadas que poderão ser revistas e, inclusivamente, mostradas aos amigos na escola. Tal como, mais importante do que dizer que se comeu este ou aquele prato num novo restaurante (ou em casa de familiares), é enviar por correio um produto português qualquer que os miúdos apreciem. Quem está longe sabe a alegria que é receber um chapelinho de chocolate da Regina, uma farinheira ou uma caixa de "Chocoflakes". Ou outra coisa qualquer. Não é só pela comida, como é evidente. É também pelo facto de sabermos que somos importantes, que alguém pensou em nós, que nos conhece os gostos e os anseios. No ano em que estive na Bélgica, recebia frequentemente cassetes, livros e jornais. Por vezes, uma peça de roupa. E cartas… recebi centenas de cartas, que guardei anos a fio com imenso carinho. Não percebo por que diabo não se pode continuar a enviar estas coisas por correio. A Fnac, por exemplo, permite fazer entregas em países diferentes por um custo ridículo. Os jornais e os livros ainda não se tornaram obsoletos! Obviamente, convém que os periódicos confirmem a versão cor-de-rosa do que dizemos passar-se no jardim à beira-mar plantado…

Por outro lado, uma das vantagens da sociedade actual é a democratização dos preços das viagens de avião. Que tal apanhar um avião em cima da hora para fazer uma surpresa aos filhos? Basta activar um alerta nos principais sites de voos low cost para receber notificações automáticas, quando houver bilhetes a preços convidativos. No ano em que o meu amor esteve em Itália, raramente gastava mais de 70 euros nos voos ida e volta. Normalmente, comprava-os com bastantes meses de antecedência, mas também aconteceu aproveitar lugares de última hora. Dir-me-ão que os hóteis são caros… Mas pode-se sempre alugar um airbnb, que também permite poupar nas refeições. De qualquer modo, o que interessa mesmo é o tempo passado juntos a construir memórias. Não me parece que os miúdos se importem de andar de transportes públicos ou de dormir em casa de alguém. Faz tudo parte da “aventura”, assim o progenitor que está longe esteja disposto a deixar cair a imagem de pessoa abastada e séria. A vantagem de se viver no centro da Europa é que depressa se está noutro país vizinho. Talvez inclusivamente se possa aproveitar a viagem para dar a conhecer novos mundos aos filhos. O tempo em família é essencial para se criarem novas dinâmicas, mas o tempo passado em exclusivo com os filhos é a base de toda a relação filial futura. Acredito que esta dedicação dará os seus frutos um dia mais tarde (ou a falta dela).

A verdade é que os miúdos crescem demasiado depressa. Num abrir e fechar de olhos, a divisão das férias deixa de lhes convir. Acredito que as concessões serão sempre mais benéficas do que as obrigações. Quando as imposições legais desaparecerem, vamos basear-nos em quê? Nas hipotéticas obrigações morais? Na simples chantagem emocional? Mais tarde ou mais cedo, os verdadeiros sentimentos virão à tona. Em vez de obrigar os filhos a passar quinze dias na Páscoa fechados em casa (ou, pior, a saltar por diferentes casas de familiares), por que não aceitar que venham apenas metade do tempo, desde que venham felizes? Há que deixar que, a dada altura, a vida deles seja o centro de tudo. Que tal compensar com visitas mais frequentes? É normal que os miúdos queiram mostrar a vida deles, os amigos deles, as namoradas deles, as actividades deles, a escola deles. O país deles, porque é ali que vivem e se estão a construir como pessoas. Os filhos não têm culpa se um dos progenitores foi viver para longe. Ignorar essa parte das suas vidas é ignorá-los a eles. E ignorar a sua identidade, que será sempre dúbia. Mais importante do que férias forçadas é assistir a concertos de música, estar presente naquele exame mais difícil, levá-los àquela estreia tão aguardada. Se o sonho de um filho é visitar um museu que fica apenas a 4 horas de distância do local onde vivem, custa assim tanto ao pai ausente levá-lo lá? Fará algum sentido oferecer uma entrada à pessoa que está com ele todos os dias para o levar? Até que ponto a guerra que movemos contra o outro progenitor nos impede de vermos o quão importantes são os nossos filhos? Quando há amor, “não há longe nem distância”.

[ Ninguém me encomendou este fado, é certo. Mas o Diogo faz 16 anos amanhã e, se eu fosse o progenitor que está longe, insistiria numa visita noutra data, no final dos exames. Ou antes, era indiferente. Insistiria em levá-lo a passear. Pelo menos, teria enviado uma carta bonita. E teria encomendado o iPod que ele tanto quer, para entregar em casa dele. Independentemente do sítio onde ele estivesse. ]

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