(porque há amores que não sendo naturais nem imediatos,
precisam de tempo para
florescer)
O
meu amor não tem filhos. Nem nunca quis tê-los. Abomina bebés, evita crianças e
foge de adolescentes. Uma das primeiras discussões que tivemos dizia respeito
ao “amor filial cego”, aquele amor que nos faria salvar um filho em detrimento
de qualquer outro ser humano igualmente merecedor. Parece-me óbvio. A ele
parece-lhe absurdo.
A
primeira vez que os rapazes se meteram na nossa cama, num sábado de manhã, pensei
que o meu amor tivesse morrido de ataque cardíaco fulminante, porque deixou de
respirar com o susto.
Sempre
que um deles ia à casa de banho sem fechar a porta, os olhos do meu amor quase
saíam de órbitas. Ou quando arrotavam. Davam puns à mesa. Corriam no andar de
cima como se fossem um bando de animais enraivecidos por cima das nossas
cabeças.
Um
dia, vi-o a chegar com o Vasco cansado ao colo e pensei que o miúdo tinha vomitado,
tal era a distância de segurança entre eles. Duvido que alguma vez tivesse
pegado numa criança ao colo.
Não,
os primeiros tempos de convívio não foram fáceis. É difícil ver os nossos
filhos a apaixonarem-se por uma pessoa que não se consegue entregar. E cada um
dos meus rapazes reagiu de forma diferente. O Diogo adoptou o “água mole em
pedra dura…” e insistia nos afectos, nos abraços, nas declarações de amor.
Deparava-se sempre com um muro intransponível, mas nunca desistiu. O Vasco
optou pelo “se não podes vencê-los…” e disfarçava o seu amor com uma
formalidade excessiva. Sempre que queria dizer algo mais doce, tratava-o por
você. Dava apertos de mão em vez de beijos. Nunca se sentava no colo dele. E,
de vez em quando, rosnava baixinho: “Esta mãe é minha”.
Este
distanciamento propositado que o meu amor impunha aos meus filhos, esta
ausência de afecto enraizada, esta falta de jeito evidente – eu diria mesmo que
havia um certo desconforto físico – era compensado por uma vontade imensa de
“fazer coisas”. Por dar a conhecer novos mundos através de actividades, locais,
experiências, conversas, músicas, filmes, jogos. Acampámos nos bosques de
Malempré, a 500 metros de nossa casa, numa noite chuvosa. Fizemos bombas de mau
cheiro e outras experiências químicas mirabolantes. Analisámos um crânio
humano, verdadeiro. Visitámos ruínas, museus, grutas, parques aquáticos,
igrejas, castelos, safaris. Aprendemos a distinguir as constelações e o nome de
muitas estrelas. Seguimos pegadas de animais. Visitámos várias cidades, em
diversos países. Apanhámos cogumelos venenosos. Fomos ver o mar, só porque sim.
E lançámos papagaios de papel. Fizemos um passeio nocturno com uma tocha, ao
mais belo estilo medieval. Aprendemos a cantar o “Jingle Bells” em Latim. E
passámos horas a conversar, numa espécie de palestras em que aprendemos imenso.
E
ao lado de tudo isto, a vida real que, aos poucos, o meu amor começou a
partilhar. A escola, os testes, o estudo, os trabalhos de casa. Os ralhetes e
os castigos. As muitaaas actividades
dos rapazes. Os trajectos semanais para o solfejo e as aulas de instrumento. As
repetições. A roupa que era preciso lavar, estender, coser. Pôr de lado porque
deixava subitamente de servir, sendo preciso ir a correr comprar mais. As
dificuldades financeiras. As refeições que era preciso preparar. E os almoços e
lanches para levar para a escola. As mochilas da escola e os sacos da
Ginástica. As discussões. As doenças e as idas às consultas de rotina. Os
muitos animais que povoam esta casa e que é preciso mostrar como se cuida. Os
brinquedos desarrumados. Os gritos, as correrias, as mariquices. Os ataques de
“adolescentice” aguda e a infantilidade de um menino que ainda precisa de muita
atenção. O mimo. Em exclusivo.
Uma
figura paterna omnipresente e omnipotente, mesmo a 2500 km de distância.
Não, os primeiros tempos não foram fáceis.
E,
um dia, aparece-me aqui às 6h30 da manhã. O Diogo ia fazer o exame nacional de
Matemática e ele sabia que eu não tinha conseguido tirar-lhe todas as dúvidas. Deu
as últimas explicações, acompanhou-o ao exame e ficou quatro horas à espera
para saber como tinha corrido. E, uma noite, apanho-o a ler a “Alice no País
das Maravilhas” com o Vasco enroscado no colo. A dar-lhe festinhas. Senti que
algo estava a mudar.
Os
miúdos começaram a fechar a porta da casa de banho. Deixaram de se meter na
nossa cama ao sábado de manhã. Começaram a comer os jantares picantes que o meu
amor fazia com um sorriso, com o Vasco a empurrar a custo os vegetais com água.
Deixaram de fazer tanto barulho no andar de cima. Fizeram um esforço para nos
dar espaço, para nos dar tempo. Aprenderam a dividir-me.
O
que mais me espantou, no entanto, foi terem igualmente começado a seguir o exemplo
que viam. O exemplo de um homem que sabe cozer e coser. E limpar, arrumar, lavar.
Cuidar. O exemplo de um homem que também tem olhos para ver o que é preciso
fazer em casa e mete mãos à obra sem que seja preciso pedir-lhe ajuda. E isto
passou quase por osmose aos rapazes, que se habituaram a fazer diversas tarefas
com a maior naturalidade do mundo.
Entretanto,
o meu amor foi trabalhar para Itália, no Verão passado. Passou duas semanas a
despedir-se dos meninos. Mas nunca conseguia partir. Ia ficando. Até que teve
mesmo de ir. Ofereceu ao Diogo a nave da Guerra das Estrelas da sua infância,
que o meu filho diz que é o seu bem mais precioso. E, ao Vasco, uma velha
camisa com as insígnias de oficial da marinha, com que ele dormiu dias a fio.
Mas
prometeu voltar sempre que fosse preciso, nas férias deles, nos aniversários,
quando quiséssemos. Sempre que eles voltam de Portugal nas férias, está à
espera comigo no aeroporto. Quando o Vasco partiu o pé, materializou-se aqui em
menos de um nada. Quando o Vasco fez anos, foi ter connosco a Frankfurt. No
Natal, apareceu de surpresa em Inglaterra. Quando recomecei a trabalhar, veio
para estar com eles na primeira semana. Nas férias do Carnaval, juntou-se a nós
em Portugal. Mesmo longe, tem estado muito presente nas nossas vidas. Nunca
deixou que nos sentíssemos sozinhos.
No
outro dia, a coisa pequena perguntou: “Mas porque é que ele nos segue para todo
o lado, mãe? Ohhh… eu sei. É porque
ele nos ama.” Eu acho que sim. Acho que ele nos ama. A todos. Embora não tenha
sido fácil, aprendeu a amar cada um de nós. E a aceitar que a vida, nesta casa,
se faz a três.
Durante
todos estes meses de ausência, o meu amor soube manter com cada um de nós um
canal de comunicação à parte. Distinto. Individual. Manda cartas e postais. Prendas
especialmente feitas ou compradas a pensar em cada membro desta família. Pinta
quadros, escreve poemas. Manda longos emails a contar histórias. O Vasco
mantém com ele uma deliciosa correspondência virtual. O Diogo já conhece a "tabela de valores": uma carta vale 100, um email 10 e um sms 5.
Numa
das últimas vezes que cá esteve, no meio de uma pequena discussão sobre a
gestão do quotidiano, o meu amor corrigiu-me: “Não, não são os teus rapazes. São os nossos rapazes.” E eu percebi que,
paradoxalmente, esta nova situação também não é fácil para mim. Aprender a
dividi-los. A ouvir a opinião de alguém que só agora entrou nas nossas vidas.
Mas sei que o meu amor tem razão. Ele esteve sempre presente. Foi buscar à
escola, levou ao médico, fez o jantar enquanto ajudava nos trabalhos de casa.
Aprendeu a dar colo e a secar lágrimas. Deu conselhos avisados. E falou sobre
sexo, quando eu não fui capaz. Tudo isto, enquanto impunha a sua presença e nos
obrigava a cortar o cordão umbilical que nos ligava uns aos outros. Sim, são
os nossos rapazes.
Apesar
de tudo, sempre nos recusámos a utilizar nesta casa a designação de “padrasto”.
A figura paterna, boa ou má, existe e é essencial à construção da imagem futura
dos meus filhos. A posição que o meu amor ocupa não pode ser de usurpação, mas
de complementaridade. Isto sempre foi muito claro para nós. Além disso,
“padrasto” e “madrasta” são termos tão feios! Só a expressão “a vida é
madrasta” diz tudo…
Só
que as crianças também têm uma palavra a dizer sobre o assunto e decretaram que
é mais simples dizer “o meu padrasto” do que “o companheiro da minha mãe”. Acho
estranho, mas compreendo. Felizmente a expressão francesa é muito mais bonita:
“beau-père”… literalmente, “pai bonito”. O Vasco, do alto dos seus 7 anos, diz
que o meu amor é um “bon père”. Acho
estranho, mas concordo.
Amamos
os nossos filhos incondicionalmente, insanamente, inquestionavelmente. Naturalmente.
Visceralmente, diria mesmo. Desde o primeiro minuto. Mas quando os filhos não
são nossos, esse amor tem de ser conquistado. Precisa de tempo para germinar.
Porque a verdade é que, quando nos apaixonamos por alguém, esse amor não é
automaticamente extensível à prole. Tem de passar por uma relação que se
constrói, em qualidade e quantidade. Por se dar a conhecer e aprender a conhecer o outro,
tenha ele 12 ou 7 anos. É uma relação única que está dependente da vontade de
ambos. Eu limito-me a assistir comovida ao nascimento deste amor.
E é por tudo isto que lhe desejo um feliz dia do pai. A ele que não escolheu ser pai, que não quer ser
pai, mas que se apaixonou por uma mulher que tem dois filhos… que ele aprendeu
igualmente a amar. Porque não nos iludamos. Este não é um amor natural, é uma
decisão consciente que se toma de alargar o raio de alcance do nosso coração. É essa decisão que eu hoje aqui celebro.
Maravilha :) O amor é mesmo poderoso e surpreendente.
ResponderEliminarO melhor amor é aquele que não escolhemos, mas que acolhemos quando surge :)
ResponderEliminarFiquei com um sorriso de orelha a orelha ao ler isto :)