quarta-feira, 19 de março de 2014

Feliz dia do pai a um homem sem filhos

(porque há amores que não sendo naturais nem imediatos,

precisam de tempo para florescer)


O meu amor não tem filhos. Nem nunca quis tê-los. Abomina bebés, evita crianças e foge de adolescentes. Uma das primeiras discussões que tivemos dizia respeito ao “amor filial cego”, aquele amor que nos faria salvar um filho em detrimento de qualquer outro ser humano igualmente merecedor. Parece-me óbvio. A ele parece-lhe absurdo.

A primeira vez que os rapazes se meteram na nossa cama, num sábado de manhã, pensei que o meu amor tivesse morrido de ataque cardíaco fulminante, porque deixou de respirar com o susto.

Sempre que um deles ia à casa de banho sem fechar a porta, os olhos do meu amor quase saíam de órbitas. Ou quando arrotavam. Davam puns à mesa. Corriam no andar de cima como se fossem um bando de animais enraivecidos por cima das nossas cabeças.

Um dia, vi-o a chegar com o Vasco cansado ao colo e pensei que o miúdo tinha vomitado, tal era a distância de segurança entre eles. Duvido que alguma vez tivesse pegado numa criança ao colo.

Não, os primeiros tempos de convívio não foram fáceis. É difícil ver os nossos filhos a apaixonarem-se por uma pessoa que não se consegue entregar. E cada um dos meus rapazes reagiu de forma diferente. O Diogo adoptou o “água mole em pedra dura…” e insistia nos afectos, nos abraços, nas declarações de amor. Deparava-se sempre com um muro intransponível, mas nunca desistiu. O Vasco optou pelo “se não podes vencê-los…” e disfarçava o seu amor com uma formalidade excessiva. Sempre que queria dizer algo mais doce, tratava-o por você. Dava apertos de mão em vez de beijos. Nunca se sentava no colo dele. E, de vez em quando, rosnava baixinho: “Esta mãe é minha”.

Este distanciamento propositado que o meu amor impunha aos meus filhos, esta ausência de afecto enraizada, esta falta de jeito evidente – eu diria mesmo que havia um certo desconforto físico – era compensado por uma vontade imensa de “fazer coisas”. Por dar a conhecer novos mundos através de actividades, locais, experiências, conversas, músicas, filmes, jogos. Acampámos nos bosques de Malempré, a 500 metros de nossa casa, numa noite chuvosa. Fizemos bombas de mau cheiro e outras experiências químicas mirabolantes. Analisámos um crânio humano, verdadeiro. Visitámos ruínas, museus, grutas, parques aquáticos, igrejas, castelos, safaris. Aprendemos a distinguir as constelações e o nome de muitas estrelas. Seguimos pegadas de animais. Visitámos várias cidades, em diversos países. Apanhámos cogumelos venenosos. Fomos ver o mar, só porque sim. E lançámos papagaios de papel. Fizemos um passeio nocturno com uma tocha, ao mais belo estilo medieval. Aprendemos a cantar o “Jingle Bells” em Latim. E passámos horas a conversar, numa espécie de palestras em que aprendemos imenso.

E ao lado de tudo isto, a vida real que, aos poucos, o meu amor começou a partilhar. A escola, os testes, o estudo, os trabalhos de casa. Os ralhetes e os castigos. As muitaaas actividades dos rapazes. Os trajectos semanais para o solfejo e as aulas de instrumento. As repetições. A roupa que era preciso lavar, estender, coser. Pôr de lado porque deixava subitamente de servir, sendo preciso ir a correr comprar mais. As dificuldades financeiras. As refeições que era preciso preparar. E os almoços e lanches para levar para a escola. As mochilas da escola e os sacos da Ginástica. As discussões. As doenças e as idas às consultas de rotina. Os muitos animais que povoam esta casa e que é preciso mostrar como se cuida. Os brinquedos desarrumados. Os gritos, as correrias, as mariquices. Os ataques de “adolescentice” aguda e a infantilidade de um menino que ainda precisa de muita atenção. O mimo. Em exclusivo.

Uma figura paterna omnipresente e omnipotente, mesmo a 2500 km de distância.

Não, os primeiros tempos não foram fáceis.

E, um dia, aparece-me aqui às 6h30 da manhã. O Diogo ia fazer o exame nacional de Matemática e ele sabia que eu não tinha conseguido tirar-lhe todas as dúvidas. Deu as últimas explicações, acompanhou-o ao exame e ficou quatro horas à espera para saber como tinha corrido. E, uma noite, apanho-o a ler a “Alice no País das Maravilhas” com o Vasco enroscado no colo. A dar-lhe festinhas. Senti que algo estava a mudar.

Os miúdos começaram a fechar a porta da casa de banho. Deixaram de se meter na nossa cama ao sábado de manhã. Começaram a comer os jantares picantes que o meu amor fazia com um sorriso, com o Vasco a empurrar a custo os vegetais com água. Deixaram de fazer tanto barulho no andar de cima. Fizeram um esforço para nos dar espaço, para nos dar tempo. Aprenderam a dividir-me.

O que mais me espantou, no entanto, foi terem igualmente começado a seguir o exemplo que viam. O exemplo de um homem que sabe cozer e coser. E limpar, arrumar, lavar. Cuidar. O exemplo de um homem que também tem olhos para ver o que é preciso fazer em casa e mete mãos à obra sem que seja preciso pedir-lhe ajuda. E isto passou quase por osmose aos rapazes, que se habituaram a fazer diversas tarefas com a maior naturalidade do mundo.

Entretanto, o meu amor foi trabalhar para Itália, no Verão passado. Passou duas semanas a despedir-se dos meninos. Mas nunca conseguia partir. Ia ficando. Até que teve mesmo de ir. Ofereceu ao Diogo a nave da Guerra das Estrelas da sua infância, que o meu filho diz que é o seu bem mais precioso. E, ao Vasco, uma velha camisa com as insígnias de oficial da marinha, com que ele dormiu dias a fio.

Mas prometeu voltar sempre que fosse preciso, nas férias deles, nos aniversários, quando quiséssemos. Sempre que eles voltam de Portugal nas férias, está à espera comigo no aeroporto. Quando o Vasco partiu o pé, materializou-se aqui em menos de um nada. Quando o Vasco fez anos, foi ter connosco a Frankfurt. No Natal, apareceu de surpresa em Inglaterra. Quando recomecei a trabalhar, veio para estar com eles na primeira semana. Nas férias do Carnaval, juntou-se a nós em Portugal. Mesmo longe, tem estado muito presente nas nossas vidas. Nunca deixou que nos sentíssemos sozinhos.

No outro dia, a coisa pequena perguntou: “Mas porque é que ele nos segue para todo o lado, mãe? Ohhh… eu sei. É porque ele nos ama.” Eu acho que sim. Acho que ele nos ama. A todos. Embora não tenha sido fácil, aprendeu a amar cada um de nós. E a aceitar que a vida, nesta casa, se faz a três.

Durante todos estes meses de ausência, o meu amor soube manter com cada um de nós um canal de comunicação à parte. Distinto. Individual. Manda cartas e postais. Prendas especialmente feitas ou compradas a pensar em cada membro desta família. Pinta quadros, escreve poemas. Manda longos emails a contar histórias. O Vasco mantém com ele uma deliciosa correspondência virtual. O Diogo já conhece a "tabela de valores": uma carta vale 100, um email 10 e um sms 5.

Numa das últimas vezes que cá esteve, no meio de uma pequena discussão sobre a gestão do quotidiano, o meu amor corrigiu-me: “Não, não são os teus rapazes. São os nossos rapazes.” E eu percebi que, paradoxalmente, esta nova situação também não é fácil para mim. Aprender a dividi-los. A ouvir a opinião de alguém que só agora entrou nas nossas vidas. Mas sei que o meu amor tem razão. Ele esteve sempre presente. Foi buscar à escola, levou ao médico, fez o jantar enquanto ajudava nos trabalhos de casa. Aprendeu a dar colo e a secar lágrimas. Deu conselhos avisados. E falou sobre sexo, quando eu não fui capaz. Tudo isto, enquanto impunha a sua presença e nos obrigava a cortar o cordão umbilical que nos ligava uns aos outros. Sim, são os nossos rapazes.

Apesar de tudo, sempre nos recusámos a utilizar nesta casa a designação de “padrasto”. A figura paterna, boa ou má, existe e é essencial à construção da imagem futura dos meus filhos. A posição que o meu amor ocupa não pode ser de usurpação, mas de complementaridade. Isto sempre foi muito claro para nós. Além disso, “padrasto” e “madrasta” são termos tão feios! Só a expressão “a vida é madrasta” diz tudo…

Só que as crianças também têm uma palavra a dizer sobre o assunto e decretaram que é mais simples dizer “o meu padrasto” do que “o companheiro da minha mãe”. Acho estranho, mas compreendo. Felizmente a expressão francesa é muito mais bonita: “beau-père”… literalmente, “pai bonito”. O Vasco, do alto dos seus 7 anos, diz que o meu amor é um “bon père”. Acho estranho, mas concordo.

Amamos os nossos filhos incondicionalmente, insanamente, inquestionavelmente. Naturalmente. Visceralmente, diria mesmo. Desde o primeiro minuto. Mas quando os filhos não são nossos, esse amor tem de ser conquistado. Precisa de tempo para germinar. Porque a verdade é que, quando nos apaixonamos por alguém, esse amor não é automaticamente extensível à prole. Tem de passar por uma relação que se constrói, em qualidade e quantidade. Por se dar a conhecer e aprender a conhecer o outro, tenha ele 12 ou 7 anos. É uma relação única que está dependente da vontade de ambos. Eu limito-me a assistir comovida ao nascimento deste amor.

E é por tudo isto que lhe desejo um feliz dia do pai. A ele que não escolheu ser pai, que não quer ser pai, mas que se apaixonou por uma mulher que tem dois filhos… que ele aprendeu igualmente a amar. Porque não nos iludamos. Este não é um amor natural, é uma decisão consciente que se toma de alargar o raio de alcance do nosso coração. É essa decisão que eu hoje aqui celebro.

2 comentários:

  1. Maravilha :) O amor é mesmo poderoso e surpreendente.

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  2. O melhor amor é aquele que não escolhemos, mas que acolhemos quando surge :)

    Fiquei com um sorriso de orelha a orelha ao ler isto :)

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