(porque às vezes é mesmo preciso mover montanhas
para construir castelos)
Passei
as primeiras semanas da separação anestesiada de dor. A pensar como era
possível 18 anos terem-se esfumado à frente dos meus olhos sem que eu desse por
isso. A pensar como ia esquecer alguém que eu amava desde a adolescência. A
pensar como ia explicar isso aos miúdos. A pensar como ia sustentar os miúdos, pois
embora continuasse a trabalhar tinha deixado de receber há meses. A pensar como
é que ia conseguir continuar sozinha. Amputada. Agarrei-me à ideia da mudança
de 180 graus. Recomeçar do zero noutro país. Criar para nós uma nova vida. Percebi
que tinha 36 anos e o mundo a meus pés. Quantas vezes na vida temos a
possibilidade de apagar tudo o que está para trás e recomeçar a escrever a
nossa própria história do início, mas com outra maturidade? Como disse uma
amiga, esta nova vida que construí é muito mais vida do que a vida que me
roubaram. A liberdade é maior. A felicidade não é truncada. E o amor também é
vivido de outra forma, mais profunda. É possível recriar uma família, onde
efectivamente todos tenham o seu lugar, em pé de igualdade. Onde ninguém anule
ninguém. Onde ninguém esteja acima de ninguém. Onde o bem-estar de cada um faça
avançar o todo na mesma direcção.
Quando
comecei à procura de casa na Bélgica, no Verão de 2012, apaixonei-me por uma
casa numa aldeia junto à fronteira entre a Holanda e a Alemanha. Muitíssimo bem
situada, a 20 minutos de Liège, era uma casa grande, com quintal e garagem. O
preço era absurdamente baixo pois era bastante antiga. Foi a casa que estivemos
mais perto de alugar. Fui vê-la várias vezes, sozinha, com os meus “pais belgas”
e os rapazes. A desconfiança do proprietário em relação a uma estrangeira, trabalhadora
independente, sozinha com dois filhos, acabou por prevalecer. Na altura, fiquei
muito triste. E preocupada, porque o tempo estava a esgotar-se. A escola começava
dali a pouco mais de um mês e eu sem poder inscrevê-los, dado que não tinha residência.
Duas semanas antes do regresso às aulas, o meu “pai belga” desencantou por
milagre a casa de Malempré. Senti de imediato que era mesmo aqui que nós tínhamos
de estar. Aqui e em mais lado nenhum. E foi aqui que tudo começou. Que o longo
Inverno deu lugar à Primavera.
Quando
muitos meses depois, na fila para sair de um estacionamento, parti o velho Saxo
fiquei destroçada. Um carro começou a fazer marcha atrás e eu apitei. Duas
vezes. Continuou direito a mim. Quando vi que não conseguia fugir e que ele ia bater
no lugar do Diogo, guinei para o outro lado. Contra um poste que, azar dos
azares, tinha um painel de sinalização partido que me entrou pela janela
adentro. Consegui evitar o carro, que entretanto fugiu, e os miúdos escaparam
ilesos. Fiquei com as portas partidas e vidros por todo o lado. Em pânico, sem
conseguir sair. Quanto mais me mexia, mais os vidros me cortavam. Fiz os 50km de
regresso a casa a chorar. A pensar no que raio ia fazer, enfiada numa aldeia
onde precisava obrigatoriamente de um carro. O meu contrato na escola tinha
acabado e estava sem emprego. O valor do carro não compensava o arranjo, mesmo
que tivesse dinheiro para o pagar… que não tinha. A única solução era dar o meu
para abate e comprar um novo a prestações. Com uma placa de plexiglas a fazer
de vidro e as portas coladas com fita adesiva, passei os dias seguintes a
percorrer os concessionários. Quando estava a estacionar à porta da Renault,
passou o anúncio deles na radio. Percebi que estava no sítio certo. Um vendedor
com vocação para a ajuda social, aceitou o Saxo por troca de um Twingo vermelho de 2009 que
tinha pertencido a um velhote falecido de… Malempré! Tinha 7 mil quilómetros e
estava como novo. Mas eu paguei como se fosse muitooo usado. O crédito foi aceite com base nos meus últimos
recibos de vencimento. Pago pouco mais de 100 euros mensais por ele. O velho
destroço já tinha 230 mil quilómetros e inúmeros arranjos a fazer. Em boa hora
o parti todo, se não nunca me teria aventurado a comprar outro. Sozinha, eu que
não percebia nada de carros.
Quando
Setembro deu lugar a Outubro, comecei a desesperar por ainda não ter arranjado
mais horas de aulas. E a fazer contas à vida. As reservas a esgotarem-se e eu sem
direito a qualquer ajuda do Estado, subsídio de desemprego incluído. Tinha mais
uma obrigação financeira. Um filho no ensino secundário privado (embora o
ensino seja gratuito, os gastos são maiores). Assumi sozinha as despesas do
regresso às aulas e inscrições anuais em todas as actividades. Numa altura em
que tinha perdido a pensão de alimentos ao conquistar a guarda dos meus filhos.
Novas batalhas judiciais se avizinhavam e era preciso dinheiro para as pagar.
Os meses seguintes foram complicados. O Vasco partiu o pé e precisou de
consultas, gessos, cadeira de rodas. Foi ao ortodontista e começou a fazer exames
que mostraram a necessidade urgente de usar vários aparelhos nos próximos
tempos para corrigir uma série de problemas. As contas aglomeravam-se.
Valeram-me alguns trabalhos de tradução com antigos clientes portugueses. E o estorno
dos impostos. Valeu-me a ajuda da família. Valeu-me o meu amor que fez mais pelos
meus filhos do que algum dia pensei ser possível, com uma generosidade repleta
de preocupação pelo seu bem-estar. Até que finalmente apareceu o novo emprego. A
travessia de seis meses no deserto ganhou novo sentido. A verdade é que ia
passar anos de incerteza, antes de chegar a uma situação estável no ensino.
Todos anos teria os mesmos problemas: Quando seria colocada? Quantas horas?
Onde? Se tivesse arranjado uma colocação a tempo inteiro ou mesmo a meio-tempo, nunca
teria concorrido a este trabalho e a situação de incerteza eternizar-se-ia. Agora
tenho um contrato e, mal tiver os diplomas reconhecidos, fico efectiva.
Posso continuar a dar umas horas de aulas porque gosto e preciso.
Mas o stress já não é o mesmo. A segurança está assegurada, passe o pleonasmo.
Um
ano e meio decorreu desde o início desta aventura. Por diversas vezes fui
confrontada com situações que me mostraram que algo negativo – ou algo que eu encaro
como negativo – acaba por se revelar positivo. Mais, acaba por se revelar
necessário para conseguir trilhar novos caminhos em direcção a algo melhor.
Porque às vezes é mesmo preciso mover montanhas para construir castelos. Esta capacidade
para ver mais além que, à força do hábito vou ganhando e que me permite manter
a calma para agir perante as mais diversas situações, talvez se chame
maturidade. Não tenho bem a certeza. É melhor não ter muitas certezas porque a isso
já se deve chamar velhice!
Este foi então o princípio do resto da sua (nova) vida... E, em menos de meia dúzia de parágrafos, o que devem ter sido longas noites a imaginar soluções pareceram apenas horas de preparação para o salto que leva a um novo patamar...Parabéns, é um prazer "conhecê-la"!
ResponderEliminarOra diz lá se não há males que vêm por bem? É o meu lema ;)
ResponderEliminarA vida também já se encarregou de me ensinar essa lição... que há coisas menos boas pelas quais temos que passar para chegarmos onde precisamos, e percebermos o tesouro à nossa espera no fim do arco-íris :)
ResponderEliminareu também acredito que, quando uma porta se fecha, podem abrir-se mil janelas ou um grande portão com novas oportunidades, temos é de estar atentos para as ver e aproveitar... mas o mais importante de tudo é que, agora, tens um twingo, o melhor carro de sempre ;)
ResponderEliminarque continue tudo a correr sobre rodas!
Ohhh... eu ponho-me a escrever e esqueço-me do que queria dizer! Isto tudo porque estava completamente farta da minha operadora de telemóvel. Quando finalmente decidi mudar, a nova operadora estava com uma promoção que oferecia um pacote TV Cabo por mais 1 euro por mês! E ainda fiquei a pagar menos de telemóvel! É mesmo... há males que vêm por bem, como diz a Carla! :)
ResponderEliminar@ Muito obrigada pelo carinho, Mariana B.