(onde se redefine a rota e tudo entra nos eixos)
Não sei porquê, tenho dado por mim a pensar no passado. Tenho feito contas à vida, por assim dizer. Felizmente, têm sido mais contas de somar. A vida tem sido generosa comigo. Ainda restam algumas equações com uma ou mais incógnitas por resolver. Mas já são poucas. Sinto um desejo imenso de chegar aos 40 com a casa arrumada e arejada. Estou a meio da minha existência. Literalmente, tenho uma vida pela frente.
Sempre pensei que os 35 anos eram a minha barreira. O meu marco. Provavelmente porque nunca desejei viver até muito tarde, os 70 anos pareciam-me perfeitos como objectivo de vida. Quando os 35 vieram, fiz contas à vida. Nunca tinha tido problemas de saúde. Adorava o meu trabalho de freelancer em tradução e legendagem, onde até nem estava a ganhar muito mal. Tinha um casamento de 13 anos, onde apesar de faltar o essencial havia a cumplicidade de estarmos juntos desde a adolescência. Era a orgulhosa mãe de dois miúdos fantásticos de 10 e 5 anos. Estávamos a pensar adoptar uma menina de 12 anos, que já passava os fins-de-semana connosco. Tinha a família por perto e cada vez mais amigos, o que me parecia inusitado, “a meio da vida”. E no entanto… não conseguia ser feliz. Não estava completa, sentia que me faltava algo. Sentia uma espécie de vazio colado à pele. Uma insatisfação permanente. O estranho sentimento de que a minha vida não podia ser apenas aquilo, tão poucochinho. Não que o verbalizasse, até porque creio que não tinha bem consciência das coisas. Eram apenas sensações vagas, sentimentos inexplicáveis. Injustificados. Lembro-me de que a minha amiga Ana me dizia inúmeras vezes que não poderia continuar assim eternamente, mas eu não percebia bem o que ela queria dizer. Era como se vivesse com os olhos vendados, em piloto automático. Quando fiz 35 anos e tentei olhar para a minha vida de frente, não consegui vislumbrar grande coisa. Lembro-me de escrever no Facebook que ainda não tinha percebido bem o que andava aqui a fazer, mas que contava ter outros 35 anos pela frente para descobrir.
Todas
as pedras basilares que compunham a minha existência começaram a ruir, uma após
outra, nesse mesmo ano, pouco depois de fazer 35 anos. Parecia uma ironia do destino
ter-me deixado atingir a meta que tinha imposto a mim mesma para, logo em
seguida, me tirar tudo, sem sequer me dar tempo de perceber o que se estava a
passar. Quando celebrei o meu 36º aniversário, dei por mim sozinha em casa com
duas crianças. Uma casa que não podia pagar e crianças que não tinha como sustentar,
visto ter ficado sem trabalho. Ou por outra, tinha trabalho, mas tinham deixado
de mo pagar. Ainda hoje me devem milhares de euros. A família e amigos deram o
apoio que puderam, mas depressa percebi que todos temos os nossos problemas e
que ninguém ia conseguir ajudar-me a resolver os meus. Foi nesse momento que
decidi emigrar, com os rapazes. Sentia um medo surdo, não conseguia explicar do
quê. Uma ânsia de fugir, de me afastar o mais possível. Hoje sei que tinha
razão. Nunca teria sobrevivido se tivesse ficado em Portugal.
Os
anos seguintes, passei-os a reconstruir-me enquanto pessoa. Inicialmente às
cegas, movida por puro instinto de sobrevivência. Aos poucos, as coisas foram
entrando nos eixos. A dor deixou de doer, a saudade esbateu-se. Apareceu uma
casa e, depois, outra. A Casa com que sempre sonhei (embora no meu sonho
tivesse duas casas de banho). Apareceu um trabalho e, depois, outro. Um
trabalho com tempo para o essencial, os filhos. Um trabalho onde faço a
diferença. Um trabalho seguro que me permitiu voltar ao Meu Trabalho na
tradução e legendagem, (desta vez, sem preocupações financeiras). Apareceu um
único amor. O que tinha de ser. Mas primeiro despedi-me de um fantasma belga que me
assombrou vinte anos. Nunca percebi por que o mantive vivo tanto tempo… até o
ver sorridente a carregar-me malas e filhos rumo a esta nova vida. Há amores que
nunca acabam, são eternos. São amores que se transformam, no dia em que
efectivamente a pessoa certa irrompe na nossa vida. Apareceram também novos
amigos. Os velhos nunca desapareceram, felizmente. Manteve-se o núcleo duro
familiar, o resto dissolveu-se naturalmente com o tempo. A família, afinal,
somos nós que a construímos. E os filhos cresceram. Quase 15 e 10 anos de gente
boa. Tornei-me muito melhor mãe. Eles tornaram-me melhor mãe. Temos descoberto
mundo juntos, no sentido literal e figurado.
O
vento amainou finalmente este ano. O ano dos meus 40 anos. De vez em quando,
ainda se ouve uma ventania longínqua. Nada que me faça mudar de rota. O caminho
está traçado em linhas gerais, resta-me segui-lo. Talvez por isso, algures do
fundo da minha memória, têm surgido histórias antigas. É engraçado ver como a minha
visão do passado mudou, em tão pouco tempo. Agora, está mais estruturada. Bem
resolvida. As relações familiares, as diferentes fases da minha vida, os
estudos, os mil ofícios que experimentei, os períodos menos bons, as pessoas
que cruzaram a minha existência, por uma razão ou por outra, os filhos que tive
(e os que não tive). Principalmente, as escolhas que fui fazendo, ao longo dos
anos, que condicionaram tudo o resto. Que me trouxeram até aqui. Tenho passado
muito tempo a arrumar gavetas mentais. A organizar a papelada nos arquivos
mortos do meu cérebro. A desempoeirar. Provavelmente enganei-me, quando tentei
apressar a vida e antecipei o meu marco. Agora, quando faço contas à vida, o
resultado parece-me óbvio. Não que tenha milagrosamente percebido o que ando
aqui a fazer. Ou o que é suposto andar aqui a fazer. Mas percebi para onde quero
ir. Quem quero levar comigo. E isso chega-me perfeitamente. Redefini os meus
objectivos de vida. Redefini a minha vida, tout
court. Aquela velha sensação de insatisfação permanente desapareceu. Foi
substituída por um sentimento de realização pessoal, de “ser inteiro”. Talvez
seja isto a felicidade, este aconchego que se traz no peito quando temos
consciência do nosso mundo. Se não o exterior, pelo menos o interior.
[
O meu amor fez-me uma surpresa, no outro dia. Comprou um disco rígido externo,
onde gravou as fotografias que tinha. Estou longe de ter recuperado tudo o que
perdi, mas recuperei algo que tinha propositadamente apagado, nos registos do
computador moribundo: as fotografias que ele me foi tirando, nestes últimos
três anos. Guardo sempre as fotografias em que estou com os rapazes, mas
normalmente apago as dezenas que o meu amor me tira à revelia. Não sou uma
criatura vaidosa, nunca gosto de me ver. Hoje, agradeço-lhe a paciência. Esta sou eu, pelos olhos do meu amor. Esta sou eu, a caminho dos 40. Esta sou eu, feliz. ]
(não
se preocupem que este foi o meu primeiro e último registo fotográfico
egocêntrico…
ih, ih, ih!)
ih, ih, ih!)
Cada vez mais bonita. :)
ResponderEliminarA coisa de 20 dias dos meus 40, estou a redefinir-me dos pés à cabeça. Adoraria ter feito isso aos 35 e estar agora a colher os frutos da coisa, mas o meu caminho era este.
É deixar a vida levar-me.
Bonita, agora! Sou apaziguada com o que a natureza me deu, o que já não é nada mau!
EliminarLeve o tempo que levar, o importante é estares a fazer esse caminho agora, Mel. Tenho gostado muito de te ler, sabes?
E aproveito para te agradecer um presente que me deste, a Cássia Eller, que tem enchido os meus dias. <3
Esta é a mãe-menina, que parece não estar longe da idade dos filhos mas que, quando escreve, nos leva a pensar que já passaram muitas primaveras para lá da marca "40 anos". Quando cheguei a essa data só posso dizer que afinal tinha muito mas que me parecia que tinha de continuar a luta para alcançar tantos objectivos! Se calhar teria sido tempo de disfrutar mais essa década, depressa chegariam tantos obstáculos que nunca anteciparia...Se me é permitido fazer alguma "recomendação", agora é cada vez mais aproveitar todos os momentos com os filhotes e deixá-los com uma memória cheia de risos como os que aqui foram atempadamente captados! E eu sei que a Rita já está ciente desta importância...Beijinhos e bom fim de semana!
ResponderEliminarAh... se tivéssemos capacidade de premonição e conseguíssemos ajustar a nossa realidade presente!
EliminarMas, sim, tenciono passar a próxima década a construir memórias felizes com eles. Não sei o que o futuro me trará, mas sei que os passarinhos depressa voarão para fora do ninho... :)
Beijinho, Mariana.
E és uma linda Princesa :) A vida surpreende-nos e nem sempre é pela negativa. O importante é que estejas feliz. Por vezes tudo se destrói, para depois voltar a existir, de uma outra forma qualquer. Dizem que temos a nossa missão, e eu acredito que temos de passar por aquilo que tem de ser, para crescermos e evoluirmos. Um beijinho e não te preocupes, eu fiz 40 anos em Outubro passado e ainda não os sinto na pele. bem, já há algumas rugas ehehehe.
ResponderEliminarPois... eu também acho que isto dos 40 passa muito pela forma como encaramos o envelhecimento. Mas as princesas envelhecem sempre bem, certo? ;)
EliminarAi, ai, ai, nem imaginas como este post ressoa na minha cabeça. Vou fixar-me na cereja sobre o bolo: os teus sorrisos no fim :)
ResponderEliminarE eu que pensava que os 40 eram os novos 30 e tal... Afinal, parece que andamos todas a matutar na vida. Hum...
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