(onde
se percebe a importância das palavras)
Quando
entrei para a universidade, ia morrendo ao ver a quantidade de cadeiras de
linguística com que teria de alombar nos quatro anos seguintes. Teria de bom
agrado dispensado a parte das “línguas”, ficando apenas com a parte das “literaturas
modernas”. Essa era a minha praia. Do alto dos meus 18 anos, não percebia por
que diabo tinha de continuar a estudar coisas que detestava, quando tinha
finalmente chegado o momento em que podia escolher o que queria. É preciso que
se diga que sempre detestei a escola e fui uma aluna bastante medíocre. Até
entrar para a universidade onde, pela primeira vez, senti o prazer de aprender.
O prazer de reflectir sobre o que tinha aprendido. O prazer de mostrar o que
tinha aprendido. Excepto na parte das línguas, bem entendido. Vá… e o Latim,
que arrastei a duras penas. Para compensar escolhi sempre cadeiras opcionais
relacionadas com a literatura e as artes, outra grande paixão: Literatura
Comparada, Literatura e Artes Plásticas, Literatura e Cinema…
Quando
entrei para o mestrado de Literatura Comparada, fiquei chocada quando percebi
que as línguas não me tinham abandonado por completo. Que mal teria eu feito
para merecer aquilo? Desta vez, o suplício era mais subtil. Dois anos de seminários
de Tradução, que aguentei estoicamente. Quer dizer, o estoicismo deu-me para o
regabofe e caricaturas satíricas rabiscadas nos cadernos. Quando digo que me
tornei adulta com o nascimento do meu filho Diogo não estou a mentir. No final
do mestrado, fiz um seminário de Leituras Orientadas com uma professora que me
obrigou a ler uma série de livros sobre a linguagem. Linguagem e autismo, mais
concretamente. A minha tese era sobre literatura infantil. Nem sequer fiquei
admirada. Nessa altura, já eu estava convencida de que a linguística era uma
espécie de “mau karma” que me iria assombrar até ao final da minha existência.
Sempre
pensei que a vida era muito irónica. Repleta de curvas tortuosas. Por mais que
me afaste, volto sempre ao ponto de partida. À tradução. E só assim sou
completamente feliz. No meio das palavras.
No
outro dia, o Diogo pediu-me uma fotografia antiga para um trabalho da escola. Pouco
esperançosa, fui vasculhar a única caixa com estranhos pertences que trouxe
comigo. Ainda hoje não consigo perceber as razões desta minha escolha eclética
e completamente aleatória. Mas encontrei uma fotografia de uma miúda novinha
com um bebé risonho ao colo. Diz que somos nós. Encontrei também uma caixa com
disquetes antigas. Todos os trabalhos que fiz na faculdade. E a minha tese. Por
curiosidade, li os títulos desbotados das disquetes. Percebi que todos os trabalhos
que fiz nos quase oito anos que passei na Faculdade de Letras estão, de uma
maneira ou de outra, relacionados com a linguagem. Inclusivamente os trabalhos
que fiz nas cadeiras de literaturas ou culturas. Não é estranho? Afinal a vida
já não parece ser feita de curvas, mas antes de uma longa recta que eu nunca
tinha conseguido vislumbrar.
Dias
depois, li uma entrevista do Rentes de Carvalho no Observador (13/03/16). E
fiquei a pensar:
“A maioria das pessoas
vive com um vocabulário tão limitado. Mesmo que elas queiram ir mais fundo não
têm palavras para pensar e então não podem sair da superfície. Vivem de
slogans. Isso é trágico. Porque depois resta-nos imitar, querer imitar os
outros. Achamos que eles vivem noutro mundo. Mas não. Aquilo que separa as
pessoas é o facto de umas terem palavras e outras não as terem.”
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