("There is a crack in everything. That's how the light gets in.”
Leonard Cohen)
No
final do primeiro ano do curso de trompete, o Diogo foi obrigado a fazer um
exame face a um júri. Tinha onze anos. O exame correu tão mal, tão mal, tão
mal, que o professor nunca mais o obrigou a passar por uma tortura daquelas.
Acho que ficou completamente traumatizado. O professor, entenda-se. O Diogo –
uma vez terminado o calvário – ficou para as curvas. A malta já sabe o que a
casa gasta, o pobre professor não sabia. Filho grande tem terror de estar em
cima de um palco. Tem terror dos holofotes. Quando digo terror, não estou a
exagerar, acreditem. Nesse primeiro exame, o Diogo teve de sair a correr, ainda
a última nota ecoava no ar. Largou o trompete e fugiu dali para fora. Estava
branco como a cal. Em apneia. Corri atrás dele (com o Vasco a correr atrás de
mim, em pânico), com medo que desmaiasse antes de chegar à porta. E ali
ficámos, comigo a fazer-lhe festinhas nas costas e a pedir-lhe que respirasse.
Quando passou, ríamos os três feitos parvos, nervosos. O professor não
conseguiu rir. Tinha apanhado um susto valente, à medida que o miúdo ia
gastando o pouco ar que ainda conseguia inspirar, a soprar no trompete. Também
ele pensou que o Diogo fosse desmaiar à frente daquela gente toda. Sabe-se lá
como, conseguiu que passassem o Diogo, com base na excelente avaliação que
tinha tido ao longo desse primeiro ano. E repetiu o feito nos anos seguintes.
Invariavelmente, no final do ano letivo, perguntava-lhe: “Mas o Diogo, não tem
de fazer um exame?”. Ao que ele me respondia sempre que deixasse estar, que não
valia a pena, que as boas notas dos boletins bastavam, que não lhe íamos infligir
novamente “aquele suplício”…
O
tempo foi passando. O Diogo fez sempre os seus exames de solfejo sozinho numa
sala, apenas com o director, a professora e o pianista. Os miúdos foram
crescendo, os pais foram deixando de comparecer. Até mesmo porque as provas não
eram públicas. Eu fui sempre. Alguém tinha de o empurrar para dentro da sala. E
de lhe entregar depressa um chocolate à saída. As notas nunca foram excelentes,
mas terminou o curso com boa nota, no ano passado.
Entretanto,
o Diogo começou o curso de órgão de igreja. E, aos 14 anos, já ninguém estava
com grande paciência para as suas crises de nervos face ao público. Este
professor sempre obrigou o Diogo a fazer exames públicos duas vezes por ano.
Claro que a coisa corre mal, mas dá para safar. Não há salas de espectáculo desconhecidas.
Não há palco. Não há luz. Excepto a que provém dos vitrais e das velas da
igreja. E o Diogo toca sempre de costas para o público. Bom… chamar-nos público
é ser generoso. Só há três alunos de órgão de igreja. Um deles tem uma notória
de jeito, apesar de estar um ano à frente do Diogo. A outra está bastante
avançada, pelo que é normal que toque muitíssimo bem. Portanto, o público é
constituído apenas por duas mães, uma irmã, o meu amor e eu. Nada de muito
intimidante. Mas a verdade é que o Diogo é o menino querido daquele estranho
professor e tem sempre excelentes notas.
Há
uns meses atrás, o professor de trompete deu a má notícia. A direcção da
academia mudou no verão e o Diogo teria mesmo duas sessões de exames, no início
de Fevereiro e em Junho. Sinceramente, há muito tempo que não via o filho
crescido tão aplicado. Após o pânico inicial, fartou-se de estudar. Fez um
esforço para tocar para nós (sim, até à nossa frente ele é incapaz de tocar…),
para a namorada e para um amigo. Fora as aulas e os ensaios na academia com o
professor que o acompanharia ao piano, no dia do exame. De manhã, antes de
sairmos, ouvi-o repetir vezes infinitas as duas músicas. Estava perfeito.
Apesar de tudo, achei melhor passar pela farmácia para pedir um tranquilizante
natural qualquer. Aconselharam-me três a cinco compridos de valeriana. A medo,
só lhe dei dois. A medo, ele tomou os outros três às escondidas. Alimentei-o
bem, antes de irmos. Despachei o irmão para casa de um amigo. Pus-me bonita,
para lhe dar confiança. E comprei lasanha e gelado para o jantar, já a prever
um desfecho menos bom.
O
que se passou em cima naquele palco foi algo indescritível. Ele levava uma
camisola de malha justa e via-se bem a taquicardia. Estava branco. Quando
levantou o trompete, as mãos tremiam tanto que pensei que o deixasse cair. O
professor colocou-o estrategicamente virado de lado, de frente para ele e para o
pianista. Não valeu de muito. O Diogo teve a coragem de tocar as duas músicas.
E tocou-as sempre no tempo certo. Mas era como se o ar não chegasse ao
trompete. A música estava lá, mas não estava. O som era praticamente inaudível.
E, no entanto, víamos as mãos a mexer rapidamente. Mas o som não saía. O
professor desta vez já não ficou espantado. O pianista ficou. Passou o tempo todo
a tentar estabelecer contacto visual com ele, como se lhe quisesse perguntar o
que se passava. Não ousei olhar para o painel do júri. Duas mesas cheias de
gente. O meu amor acompanhava a música com a cabeça, de olhos fechados. Pelo
sorriso de satisfação, dir-se-ia que estava a ouvir uma música qualquer imaginária.
Eu tentei fazer aquilo que as mães fazem, quando vêem um filho a sofrer. Fiz
que conta que tinha poderes mágicos e concentrei o meu olhar nele, a enviar-lhe
forças. Tentei respirar por ele. A telepatia materna não resultou, claro.
Quando a primeira música terminou, desejei que ele desistisse do exame. Foi
horrível vê-lo iniciar a segunda música naquele estado. Fiz um esforço enorme
para não chorar. Desta vez, os 15 anos impediram-no de sair disparado. Mas não
se veio sentar ao nosso lado. Ficou em frente ao palco, de cabeça baixa, a
ouvir todos os outros alunos do último ano do curso de sopro. Calculo que
tenham sido quase vinte. Após a deliberação, as notas foram anunciadas
publicamente. Todos tiveram entre muito bom e excelente. O Diogo teve
insuficiente.
No
final, o professor veio falar connosco. Creio que, tal como eu, já estava à
espera que o Diogo chumbasse. Estava triste e desiludido, mas não espantado. E
eu não pude deixar de pensar que, se ele tivesse mostrado um bocadinho mais de
dureza ao longo dos últimos quatro anos, talvez o resultado pudesse ser outro.
Acho que, hoje em dia, à força de tanto querermos poupar as nossas crianças do
fracasso, não lhes estamos a fazer favor rigorosamente nenhum. O Diogo devia
ter feito tantos exames quanto os necessários para chegar ao último ano com
confiança suficiente para enfrentar uma avaliação pública. Se tivesse de
chumbar algum ano, também não viria mal ao mundo. Apesar de tudo, o professor
mostrou-se confiante. Disse-lhe que a avaliação do 1.º período tinha sido
bastante boa e que ainda tinham quatro meses pela frente para preparar o
próximo exame. Que o professor de piano também tinha ficado estarrecido e que
estavam ambos decididos a trabalhar no duro com ele para preparar melhor o
exame de Junho.
O
Diogo quis ir falar com o presidente do júri, como lhe foi aconselhado. E eu
fui com ele. Acho que o senhor foi amoroso. Com uma sinceridade desarmante,
explicou-lhe que era impossível cotar o que ele tinha feito em cima do palco.
Que a prestação dele nem sequer tinha sido má… não tinha sido, simplesmente. Disse-lhe que nenhum músico pode ter
acesso a um diploma se não souber tocar em público. E que, visto o professor e
o pianista terem assegurado que o Diogo sabia tocar na perfeição as duas
músicas, o único problema que ele tinha de resolver era aprender a gerir o stress. O que não deixava de ser uma
aprendizagem valiosa, que lhe iria servir pela vida fora.
Quando
chegámos a casa, comecei por lhe reconfortar o estômago. É o essencial para se
chegar a um adolescente. E, depois, falei a sério com ele. Pouco me importa o
diploma da academia. Eu sei que ele foi obrigado a escolher um instrumento de
sopro de que nunca gostou muito, quando quase perdeu a audição em criança. E
também sei que quer começar a aprender a tocar um terceiro instrumento, no
próximo ano. Obviamente, nunca sabemos as voltas que a vida dá e talvez este
diploma ainda lhe possa vir a ser útil, um dia mais tarde. Mas, o mais
importante, é aprender a não desistir. Honestamente, penso que este fracasso
foi excelente, por mais estranho que isto possa parecer. O Diogo tem um grave
problema de gestão de stress. O medo
de estar em palco é apenas a ponta do iceberg. E nunca é bom deixarmo-nos
dominar pelo medo ou, pior ainda, escondermos os nossos receios debaixo do
tapete. Filho crescido tem apenas 15 anos, está em muito boa idade de perceber
que pode fazer algo para mudar um aspecto problemático da sua personalidade.
Porque hoje foi um exame sem qualquer importância. Mas, amanhã, pode ser um
exame na universidade ou uma entrevista de emprego. Penso que é importante
perceber o que está subjacente a este medo. Ambos sabemos que cinco ano de
desporto de competição em que ele tinha a tarefa ingrata de exercer (sem grande
jeito) a função de guarda-redes, deram cabo da auto-estima do Diogo. Ambos
sabemos que o Diogo ainda tem de fazer contas à vida, enfrentando uma certa
figura central. A prova disso mesmo foi que, passados poucos dias, o Diogo desabafou
sobre momentos dolorosos do seu passado e começou a colocar as questões certas,
pela primeira vez na vida.
Contudo,
mais importante do que procurar respostas no passado, é definir uma meta para o
futuro. Quando fizer 16 anos, o Diogo terá de fazer um novo exame, se quiser
ter acesso ao diploma do fim de curso de trompete. E, desta vez, tem a
responsabilidade acrescida de precisar de um “bom” para passar. OK… posto isto, o que podemos fazer para
vencer o medo do palco? E, já agora, aprender a controlar melhor o nervosismo?
O Diogo decidiu, finalmente, aceitar a proposta que o professor lhe anda a
fazer há anos e vai começar a tocar com a orquestra. Por enquanto, vai apenas
tocar nos ensaios. Mas, o objectivo final, será apresentar-se em público no
meio dos outros músicos para diluir o nervosismo do palco. Depois, decidimos
trabalhar a respiração. Não sei se será a melhor ideia a longo prazo, mas a
verdade é que, a curto prazo, ele precisa de respirar e de tocar, em simultâneo. Se bem me recordo das aulas de
preparação para o parto, é possível controlar a dor através de exercícios
respiratórios automatizados. Comigo não deu grande resultado, mas o Diogo não
precisa de saber. Já comecei à procura de cursos de sofrologia e afins, que
possam ajudá-lo a relaxar e a controlar melhor a respiração. A ideia
agradou-lhe, o que é meio caminho andado para resultar. Admito que sou um
bocado descrente destas "ciências" alternativas mas, no estado em que nós
estamos, estou disposta a tentar. E, se por acaso conseguirmos descobrir uma
maneira de o Diogo finalmente aprender a lidar com o stress graças à hecatombe que foi aquele exame de trompete, acho
que vou definitivamente convencer-me de que há males que vêm por bem.
[
Infelizmente, há quem esteja sempre à espera na curva para ver se nos
espalhamos, só para conseguir provar uma tese. Há quem deseje o falhanço dos meus
filhos apenas para me poder pôr em causa a mim. Faz parte da nossa vida, termos
constantemente uma vergasta atrás. Nenhum de nós quebra, por mais que tentem.
E, céus, como têm tentado! No final daquele dia, o Diogo não precisava que o
deitassem ainda mais abaixo. Por mais anos que passem, nunca me conseguirei
habituar à ignominia de certas criaturas ]
Querida Rita: não sabe como foi proveitoso ler este post, apesar de ele partir de um "não êxito" do seu filho grande! Aqui pela net só se leem blogues em que tudo se chega às mãos dos pequenos infantes, ainda eles nem sonharam o que almejavam...E dar de mamar até quase irem para a escola primária? Este é o espanto de quem deu de mamar até aos 14 meses, portanto uma defensora da amamentação mas jamais uma louca pela satisfação imediata e de que o mundo pula e avança sempre como sonhámos! Ver os nossos filhos lidar com o stress e as dificuldades é duro mas faz parte da sua aprendizagem para uma entrada na vida adulta...ou mesmo antes, como se vê! O Diogo vai saber olhar para o público e disso até tirar satisfação, espero que consigam descobrir os caminhos e as palavras certas! E sei que vão encontrar!!! Beijinhos
ResponderEliminarConfesso que esta nova geração de mães me faz imensa confusão. Não sei onde diabo foram buscar a ideia de que têm de ser perfeitas, em todas as frentes. Obviamente que, depois, a progenitura tem de ser igualmente perfeita e há pouca margem para erro... :(
EliminarMinha querida Rita, que bom saber que o meu filho não +e caso único, que nem sempre são perfeitos! Usei Hipnose clinica com o meu filho e está muito melhor. Beijinhos e boa sorte :)
ResponderEliminarMas diga-me lá quem é que quer filhos perfeitos, Isabel?! Eles só são perfeitos aos nossos olhos e mesmo assim... ;)
EliminarTambém me lembrei da hipnose, porque li que tinha bons resultados na gestão do stress. Infelizmente, o Diogo diz que "não quer que lhe entrem na cabeça sem ele saber"! Parece-me que vamos mesmo tentar a sofrologia, depois logo digo como correu.
Beijinho!