(e
de uns velhos All Star demasiado grandes)
Nunca
fui uma adolescente que ligasse muito a marcas até andar num colégio para
meninos finos, quando fiz um ano de intercâmbio na Bélgica. A mania passou-me
quando comecei a comprar roupa com o meu dinheiro (e a pensar pela minha própria
cabeça). Mas ainda durou uns anos. O meu pai reclamava, questionava, indignava-se,
mas acabava sempre por ceder. Uma das compras que mais discussão deu foram os
primeiros ténis-bota All Star em pele que foram lançados em Portugal. Custaram
uma fortuna e tive de esperar semanas pela encomenda feita um pouco às cegas,
na loja do costume. Infelizmente, o número mais pequeno que chegou era um 38.
Durante largos meses, fui uma adolescente feliz e trapalhona, sempre a
cair, porque andava feita palhaça com uns pés enormes.
Lembrei-me
desta história no outro dia, quando me passei e fui comprar calçado para o
Diogo. Depois de um braço de ferro que me deixou desgastada. Andávamos desde o
Natal a discutir, todos os dias. Ele insistia em ir para a escola de ténis no
meio da neve, eu tentava convencê-lo a comprar um par de botas quentes e
impermeáveis. Até que chegou a casa, num final de tarde, com os pés completamente
encharcados e cheio de tosse. E eu atingi o meu limite. Deixei-o no solfejo e,
sem admitir discussões, fui ao Luxemburgo comprar umas botas. Fui sozinha de
propósito, para evitar as cenas do costume. Porque botas da neve é o que usam
os miúdos da Primária. Porque botas de pele é coisa de velho. Porque as botas
da Decathlon são “outdoor”. E já se sabe que ninguém pode ir para a escola com
aquilo nos pés que arruína por completo a imagem. Porque ténis-bota é coisa de pessoal
das barracas. Porque sapatos é o que usam os profs e também não serve. É pior
que à velho. Porque, porque, porque…
Cheguei
à loja furiosa, disposta a comprar um bom par de botas. Afinal de contas a mãe
sou eu, ele tem mais é de fazer o que eu mando. Se a única coisa que sobrasse
no armário fossem umas botas, ele teria mesmo de calçar aquilo se quisesse
ir para a escola. Ou, então, que fosse descalço, porque a porcaria dos ténis só
voltariam a aparecer aos fins-de-semana. A minha paciência para esquisitices de
adolescente mimado tinha-se esgotado.
Mas
depois vi uns ténis-bota All Star em pele. Caros. Muito caros. Com pêlo de
ovelha por dentro e impermeáveis. Termo-coisos, isto é, que conservam o calor
do corpo. Com uma sola grossa para esmagar a neve. E lembrei-me de mim,
adolescente mimada. Lembrei-me de mim, a discutir com o meu pai que nunca me
disse que não. Lembrei-me de mim, a tentar enquadrar-me num colégio de meninos
finos. No mesmo colégio onde o Diogo anda, um Sacré-Coeur. De repente, tentei
olhar em volta… não com os meus olhos de mãe, mas com os olhos de filho. E, de
facto, todos os outros pares de sapatos me pareceram feios e desadequados. Só
aqueles brilhavam. Peguei na caixa e, antes que me arrependesse, paguei sem
ver.
O
Diogo foi amoroso, quando cheguei a casa já mais calma com os sapatos novos.
Devia estar a tremer de medo quando lhe entreguei o saco, mas agradeceu e prometeu
calçar o que eu tivesse comprado. E depois viu os All Star. Tão adolescente.
Tão giros. Tão fora do vulgar. Um piscar de olho à miúda mimada que eu também fui.
Que me permitiram ser até ter maturidade para deixar de dar importâncias às
aparências. Um justo compromisso entre o que ele gostaria e o que eu queria. Que
tiveram o sucesso esperado na escola. E que o fizeram pôr completamente de lado
os ténis, inclusivamente ao fim-de-semana. Que me arruinaram o mês, mas que o
encheram de felicidade.
[
Estou a aprender a ser mãe de um adolescente. E isto não é fácil, tenho sempre
muitas dúvidas. Não tenho outro ponto de comparação, excepto a minha própria adolescência.
Há muita coisa que gostaria de transmitir ao Diogo mas, às vezes, também sabe
bem apenas mimá-lo. ]
Uma história muito enternecedora. Às vezes, temos de nos colocar nos "sapatos" dos outros. É um pequeno esforço (de vontade e financeiro), mas que vai dar muitos frutos. Um dia, ele vai relembrar esta história.
ResponderEliminarNão tinha pensado nisso, Miss Smile... talvez um dia um neto meu também receba uns All Star fantásticos! :)
EliminarAinda bem que a adolescente que foste não deixa de conversar com a mãe que és. Afinal, quem é que é dono de verdades absolutas? Espero seguir esse exemplo.
ResponderEliminarOhhh... às vezes, acho que ainda sou um bocadito adolescente, Gralha... ;)
ResponderEliminarConcordo com a compra e com a explicação.
ResponderEliminarMas tu disseste: "Lembrei-me de mim, a discutir com o meu pai que nunca me disse que não."
Ora tenho para mim que o problema foi mesmo esse pateta não te ter dito que não algumas vezes que lhe apeteceu... Olha para começar, e para dar só um exemplo, não tinhas ido de intercâmbio para a Bélgica com 15 anos. A ires para algum lado, era depois de teres 18 anos e seres adulta... E com uma declaração assinada por ti de que ele ficava desobrigado de quaisquer responsabilidades emergentes da tua decisão.
[E já viste como depois tudo (todo o futuro, digo, o actual presente) seria diferente?...] [Aliás, acho que isto é uma aplicação da "teoria do caos", de onde Prigogine deduziu a "flecha do tempo", ou seja, a irreversibilidade. Fazes, está feito. Terá sempre consequências. Mas voltar atrás e fazer diferente NÃO É opção... ]
Sim, sim... o bater das asinhas da borboleta e tal...
ResponderEliminarApesar de tudo, acho que tive um bom pai. Vá... um pai bonzinho, para retomar a discussão do outro dia. ;)