terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Um adeus sentido

(após uma vida recheada de aventuras)


 

Ontem à noite, fechei a tampa da ventilação da caixa da Belle, quando o Vasco se foi deitar. Reparei que já tinha começado a roer aquele canto, o único ponto fraco desta nova caixa que desencantei há tão pouco tempo. Por isso, afastei a roda para ela não poder trepar. Enchi o comedouro com os seus cereais de cenoura preferidos. São uma guloseima dura como pedra, pensei que a manteria ocupada boa parte da noite. Fechei bem a tampa. E disse para mim mesma que, no dia seguinte, tinha de reparar o novo ponto de fuga em perspectiva.

Por volta da meia-noite, começámos a ouvir uns barulhos estranhos. Uma espécie de arranhadelas que pareciam vir do interior da parede da sala. Pensámos que estávamos a alucinar e procurámos uma explicação plausível. Eu achei que eram os cães da vizinha do lado a brincar. O meu amor pensou logo que era a Belle a roer a caixa. Foi espreitar o quarto do Vasco, mas não se ouvia barulho nenhum. Os ruídos esquisitos acabaram por acalmar. Fomos deitar-nos e fechámos o D. Fuas na sala de jantar, como sempre. Agora que está frio, ele deita-se na cama dele e temos de o tapar com uma manta. Faz sempre um grunhido de satisfação que dá vontade de rir.

Esta manhã, fui acordar o Vasco. Vi a tampa da ventilação da caixa da Belle escancarada. E um buraco suficientemente grande para ela passar. A caixa estava vazia. O Vasco começou logo a chorar. Recordei aquela vez em que a Belle fugiu e passou a noite roubar Sugos da mochila do Diogo. Ele riu-se. “É verdade, mãe. Acabámos por encontrá-la ferrada a dormir na gaveta das camisolas da minha cómoda”, lembrou-se. Tinha feito um ninho com etiquetas ratadas das camisolas do Vasco e dormia rodeada de pedaços de Sugos meio comidos.

Desta vez, não estava em nenhuma gaveta. Nem atrás dos móveis, nem dentro das caixas dos brinquedos. Revirámos o quarto e nada da Belle. O Vasco já não chorava, convencido de que o seu hamster tinha encontrado um esconderijo ainda mais ardiloso. O tempo passava. Mandei-o vestir-se e fui preparar o almoço para ele levar para a escola.

Quando cheguei à cozinha, vi-a. Estava morta, numa pequena poça de sangue. Em frente ao frigorífico. No andar de baixo. O cão nem lhe tocou, apesar de terem ficado fechados a noite toda nas mesmas duas divisões da casa. O que nos levou a pensar que morreu por envenenamento. Deve ter conseguido descer pela antiga chaminé ou por um tubo qualquer até cá abaixo. Os ruídos estranhos atrás da parede da sala, ontem à noite, devia ser ela a desbravar caminho. Sabe-se lá como. O proprietário avisou-nos que a casa era velha, que havia veneno para ratos escondido um pouco por toda a parte.

A Belle sobreviveu à queda da caixa até ao chão. Sobreviveu à passagem por trás das paredes, do segundo para o primeiro andar. Sobreviveu ao emaranhado das ligações eléctricas do fogão e do frigorífico encastrados. Sobreviveu a tudo, menos à gulodice que lhe era tão característica. Viveu uma vida longa, repleta de aventuras. Deu cabo de sete gaiolas, no total. Por vezes, fazia um barulho desgraçado durante a noite. Mas nós gostávamos muito dela e estamos tristes. Devia ter um ano quando a adoptámos, passou perto de dois connosco. Deixou de ser aquele animal arisco que mordia e guinchava sempre que lhe pegávamos. Tornou-se um ratinho dócil, que todos adoravam. Dava beijinhos. Passava a vida enfiada nos meus cachecóis e lenços, andava comigo para todo o lado. Fazia companhia ao Vasco, quando ele lia as suas BD antes de dormir. Trepava pelas páginas dos livros e metia-se na cama com ele, fazendo-lhe cócegas nos pés. Fazia companhia ao meu amor, que de vez em quando trabalhava no computador com a Belle enfiada no bolso da camisa. Fazia companhia ao Diogo, que volta e meia a enfiava na manga das camisolas. A Belle era apenas um hamster. Mas vai deixar muitas saudades.

6 comentários:

  1. Ohh, abraço apertadinho aos 4...
    Podia ser "apenas um hamster", mas era o vosso.
    (esta cena de perder animais é tramada...)

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    1. Tens razão, Ana. Acabamos por nos afeiçoar mesmo aos bichos. Sejam gatos ou hamsters, são "os nossos", como tu bem dizes...

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    1. Parecia que estavas a adivinhar, quando falaste em ratoeiras no outro dia... Diabo de bichos que só pensam com a barriga! :(

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