(após
uma vida recheada de aventuras)
Ontem
à noite, fechei a tampa da ventilação da caixa da Belle, quando o Vasco se foi
deitar. Reparei que já tinha começado a roer aquele canto, o único ponto fraco
desta nova caixa que desencantei há tão pouco tempo. Por isso, afastei a roda para
ela não poder trepar. Enchi o comedouro com os seus cereais de cenoura preferidos.
São uma guloseima dura como pedra, pensei que a manteria ocupada boa parte da
noite. Fechei bem a tampa. E disse para mim mesma que, no dia seguinte, tinha
de reparar o novo ponto de fuga em perspectiva.
Por
volta da meia-noite, começámos a ouvir uns barulhos estranhos. Uma espécie de
arranhadelas que pareciam vir do interior da parede da sala. Pensámos que
estávamos a alucinar e procurámos uma explicação plausível. Eu achei que eram os
cães da vizinha do lado a brincar. O meu amor pensou logo que era a Belle a
roer a caixa. Foi espreitar o quarto do Vasco, mas não se ouvia barulho nenhum.
Os ruídos esquisitos acabaram por acalmar. Fomos deitar-nos e fechámos o D.
Fuas na sala de jantar, como sempre. Agora que está frio, ele deita-se na cama
dele e temos de o tapar com uma manta. Faz sempre um grunhido de satisfação que
dá vontade de rir.
Esta
manhã, fui acordar o Vasco. Vi a tampa da ventilação da caixa da Belle
escancarada. E um buraco suficientemente grande para ela passar. A caixa estava
vazia. O Vasco começou logo a chorar. Recordei aquela vez em que a Belle fugiu
e passou a noite roubar Sugos da mochila do Diogo. Ele riu-se. “É verdade, mãe.
Acabámos por encontrá-la ferrada a dormir na gaveta das camisolas da minha cómoda”,
lembrou-se. Tinha feito um ninho com etiquetas ratadas das camisolas do Vasco e
dormia rodeada de pedaços de Sugos meio comidos.
Desta
vez, não estava em nenhuma gaveta. Nem atrás dos móveis, nem dentro das caixas dos
brinquedos. Revirámos o quarto e nada da Belle. O Vasco já não chorava,
convencido de que o seu hamster tinha encontrado um esconderijo ainda mais
ardiloso. O tempo passava. Mandei-o vestir-se e fui preparar o almoço para ele
levar para a escola.
Quando
cheguei à cozinha, vi-a. Estava morta, numa pequena poça de sangue. Em frente ao
frigorífico. No andar de baixo. O cão nem lhe tocou, apesar de terem ficado
fechados a noite toda nas mesmas duas divisões da casa. O que nos levou a pensar
que morreu por envenenamento. Deve ter conseguido descer pela antiga chaminé ou
por um tubo qualquer até cá abaixo. Os ruídos estranhos atrás da parede da
sala, ontem à noite, devia ser ela a desbravar caminho. Sabe-se lá como. O
proprietário avisou-nos que a casa era velha, que havia veneno para ratos escondido
um pouco por toda a parte.
A
Belle sobreviveu à queda da caixa até ao chão. Sobreviveu à passagem por trás
das paredes, do segundo para o primeiro andar. Sobreviveu ao emaranhado das
ligações eléctricas do fogão e do frigorífico encastrados. Sobreviveu a tudo,
menos à gulodice que lhe era tão característica. Viveu uma vida longa, repleta
de aventuras. Deu cabo de sete gaiolas, no total. Por vezes, fazia um barulho
desgraçado durante a noite. Mas nós gostávamos muito dela e estamos tristes. Devia
ter um ano quando a adoptámos, passou perto de dois connosco. Deixou de ser aquele
animal arisco que mordia e guinchava sempre que lhe pegávamos. Tornou-se um ratinho
dócil, que todos adoravam. Dava beijinhos. Passava a vida enfiada nos meus cachecóis
e lenços, andava comigo para todo o lado. Fazia companhia ao Vasco, quando ele
lia as suas BD antes de dormir. Trepava pelas páginas dos livros e metia-se na
cama com ele, fazendo-lhe cócegas nos pés. Fazia companhia ao meu amor, que de
vez em quando trabalhava no computador com a Belle enfiada no bolso da camisa. Fazia
companhia ao Diogo, que volta e meia a enfiava na manga das camisolas. A Belle
era apenas um hamster. Mas vai deixar muitas saudades.
Ohh, abraço apertadinho aos 4...
ResponderEliminarPodia ser "apenas um hamster", mas era o vosso.
(esta cena de perder animais é tramada...)
Tens razão, Ana. Acabamos por nos afeiçoar mesmo aos bichos. Sejam gatos ou hamsters, são "os nossos", como tu bem dizes...
Eliminar:(
ResponderEliminarParecia que estavas a adivinhar, quando falaste em ratoeiras no outro dia... Diabo de bichos que só pensam com a barriga! :(
EliminarAdeus, Belle!
ResponderEliminar:(
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