segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Um quarto

(ou um salto de fé)

 
Adiei este momento até onde pude. Nem sei bem porquê.
 
Em Malempré, dormia no sofá da sala. Muitas vezes me perguntaram com admiração: “Mas tu não tens quarto?!”. Não, não tinha. Propositadamente. Para mim, o quarto era símbolo de uma vida de casal infeliz e eu tinha decidido que esse era um capítulo completamente encerrado na minha vida. Mas, depois, apareceu o meu amor. Que foi ficando de mansinho, sem nunca se queixar da falta de privacidade. Do espaço exíguo. Que se ria e brincava, dizendo que compensávamos o que faltava com imaginação.
 
Adiei este momento até onde pude, mesmo quando nos mudámos para Vielsalm.
 
Era suposto o meu amor ficar por pouco tempo. Nenhum de nós queria saber quanto. Por isso, escolhemos o quarto mais pequenino da casa. O mais feio. Escuro. Uma espécie de câmara funerária claustrofóbica. Com papel de parede pintado de roxo a descascar. No chão, um velho linóleo amarelo.
 
Comprei um colchão de casal, mas não uma cama. Um suporte para cabides do Ikea servia de armário. Desencantei duas mesinhas de cabeceira por três euros numa venda de garagem. Improvisei uma cómoda com um móvel antigo que encontrei no sótão. Pintei tudo de branco, sem decapar. Uma só camada de tinta meio tosca para uniformizar aquele conjunto improvável.
 
Adiei este momento até onde pude e os meses foram passando. Até que tropecei numa cama. Literalmente.
 
Tinha ido com o Vasco à nossa loja preferida de coisas em segunda mão. Íamos em missão para o projecto do Home Cinema, porque nos delegaram a parte decorativa da coisa. Desencantámos um tapete de corda enorme e dois cadeirões de verga todos catitas. Deixei o Vasco a guardar os achados e fui chamar um homem para me ajudar a meter aquilo tudo no carro. E, nisto, tropecei numa cama. De madeira maciça, com as medidas exactas. Impecável. Linda. Fiquei ali especada a olhar para a cama. Até que o homem disse: “Faço-lhe 120 euros por tudo. Vá... 100, se levar isto tudo hoje.” Decidi aproveitar.
 
O meu amor foi buscar a cama, mais tarde. Insistiu em pagá-la. E depois deixámo-la desmontada vários dias à entrada.
 
Adiei este momento até onde pude. Nem sei bem porquê. Pensando bem, se calhar até sei. Adiei este momento até onde pude, porque me recuso a pensar em nós enquanto casal. Gosto de pensar que somos apenas namorados. E os namorados partilham espaços, não dividem o quarto. Partilham momentos, não uma vida.
 
Adiei este momento até onde pude também pelo meu amor. Que nunca partilhou nem vida, nem casa, nem quarto. Muito menos filhos.
 
Adiei este momento até onde pude porque ambos precisámos de tempo para combater os nossos fantasmas, em silêncio. Para aceitar que o facto de sermos namorados – namorados que dividem quarto – não nos torna menos livres. O amor continua a não ser uma obrigação, uma amarra, uma prisão. Uma fonte de infelicidade. O amor continua a ser eterno enquanto dura, como dizia Vinícius. Mas agora tem um poiso.
 
O meu amor passou dois dias fora, porque anda a fazer uma formação. Achei que era o momento ideal, embora não tivesse muito tempo. Mas eu precisava de fazer isto sozinha. Era o meu projecto. Pedi emprestado o escadote e material de obras ao proprietário. Lavei paredes e tectos e janelas. Pintei o quarto de cor de amêndoa. Era o que dizia na lata e é verdade. É bem bonita. E suave. Arranquei três camadas de linóleo. E centenas de pregos minúsculos sem cabeça. Deixei à vista o chão de tábua corrida. Lindíssimo. Lixei e dei outra demão no móvel antigo. Envernizei um dos troncos que vieram de Malempré. Comprei outra mesinha de cabeceira. Pus umas cortinas...
 
No meio disto, fui com o Diogo ao tribunal e passámos uma tarde deliciosa os dois juntos. O melhor amigo dele foi lá dormir a casa. Desenrasquei o jantar no turco da esquina. Fui buscar a minha madrasta ao aeroporto do Luxemburgo e apanhei um trânsito medonho. E o meu amor apareceu. Trazia sushi para o jantar e a quarta série da “Guerra dos Tronos” para o serão. Era dia dos namorados.
 
Mostrei-lhe a surpresa incompleta. Ajudou-me a montar a cama, ainda meio surpreendido. A fazê-la de lavado com um novo edredão, nos mesmos tons da decoração do nosso quarto. O nosso quarto... Tão bonito. Perfeito.“Como é que conseguiste fazer isto tudo sozinha em tão pouco tempo?!”, repetia o meu amor a rir. Eu não lhe disse, mas acho que dois anos é muito tempo.

4 comentários:

  1. O simbolismo de uma cama e de um quarto de casal é muito grande. Ainda bem que têm o vosso novo ninho em tons de amêndoa (bem apropriado, agora que as amendoeiras estão em flor, pelo menos aqui onde as há).

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    1. Nunca tinha pensado muito nisso, Gralha... mas acabei por perceber que tens razão, o quarto de casal tem de facto um simbolismo muito particular.

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  2. É importante vencer o medo e confiar na nossa intuição. Somos mais sábios do que julgamos. Provavelmente só viu a cama quando, interiormente, já estava preparada para dar mais um passo em frente na vossa partilha de momentos, dias e pedaços de vida. Felicidades!

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    1. Eu até ia vendo outras camas, Miss Smile, mas nenhuma me chamou mesmo a atenção. Provavelmente, nenhuma era a "certa". :)

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