terça-feira, 4 de agosto de 2015

Viagem a Marrocos – dia 10

(onde tudo acaba bem, apesar dos pesares)


 

Acordámos cedo, no nosso último dia em Marrocos. Na praça de táxis perto do hotel, conseguimos convencer mais um taxista a levar-nos aos quatro até ao terminal das camionetas. Depois do susto do dia anterior, achámos melhor passarmos mais uma vez no multibanco só para termos a certeza de que os problemas nas comunicações bancárias estavam definitivamente resolvidos. Não levantámos muito mais dinheiro, íamos apanhar o ferry para Algeciras dali a poucas horas. O suficiente para tomarmos um merecido pequeno-almoço de reis… no novíssimo McDonald’s de Tânger, para gaudio da rapaziada. Por momentos quase nos esquecemos de onde estávamos, tal era a modernidade que nos rodeava… fast-foods, centros comerciais gigantescos em construção, uma avenida larguíssima.

Depressa descemos à Terra, quando chegámos à paragem da camioneta que nos ia levar ao novo porto de Tânger, a uma hora de distância. Quanto mais viajo, mais me convenço de que a denominada “fila indiana” é um conceito tipicamente português. Aquilo era como enfiar a Avenida da Liberdade na Rua da Betesga. Aos encontrões e empurradelas, um magote de gente nova, menos nova e já mesmo muito velha tentava entrar à força na camioneta. Tudo ao mesmo tempo, tipo manada em debandada. Bebés, sacos de comida, garrafões, chapéus-de-sol e insufláveis à mistura. Quando já não cabia nem mais uma agulha naquele palheiro, a camioneta lá arrancava a uma velocidade considerável, tendo em conta a pesada carga que transportava. Depois de assistirmos estupefactos a duas “enchidelas” daquelas, desistimos. Apanhámos um “grand-taxi” até ao porto. As condições em que viajámos foram outras, é certo… mas nem por isso nos sentimos mais à-vontade. O taxista voava no meio da estrada ao longo da costa – lindíssima, diga-se de passagem – com uma destreza digna de um piloto de Fórmula 1. Nem em Itália vi gente a conduzir de forma tão destravada. A verdade é que também nunca vi um único acidente, portanto eles lá devem saber o que fazem.

Apanhar o ferry para Algeciras é mais complicado do que apanhar um avião. É preciso preencher documentação com informações dignas da CIA. Há controlos de passaportes, bilhetes e bagagem. Acho que nos pediram para mostrar as passagens um cento de vezes. Os barcos que fazem a travessia são uns colossos. Mal sentimos o mar durante pouco mais de 45 minutos, o que evitou que eu enjoasse, como de costume. Dormi o trajecto quase todo, enquanto os miúdos exploravam o barco com o especialista no assunto. O Vasco ainda conseguiu fazer uns amigos de tropelias. Chegados a Algeciras, fomos obrigados a passar pelo mesmo controlo apertado, apesar de sermos europeus. Fomos directos ao guichet da única empresa que vendia bilhetes de camioneta para Faro. E, aqui, começou mais uma sucessão de azares sem fim. Naquele dia, percebemos a extensão do provérbio “um azar nunca vem só”…

Dado que o multibanco do guichet estava avariado, fomos levantar dinheiro num ATM do porto, enquanto o funcionário ficou com os nossos passaportes a emitir os bilhetes. Impossível fazer qualquer movimento, dizia-nos o ecrã. O senhor mandou, então, o meu amor à procura de um banco “melhor”, em Algeciras. Nada feito, fomos obrigados a anular os bilhetes porque não havia outra forma de pagamento disponível… Depois de uma discussão séria com o homem que não queria devolver-nos os passaportes, visto já ter imprimido as nossas passagens.

Fomos à procura de um lugar com wifi para fugirmos ao calor e, calmamente, tentarmos encontrar outra solução. O restaurante do porto de Algeciras tinha wifi a conta-gotas, mas servia almoços. Aproveitámos para dar de comer aos rapazes, com os euros que nos restavam. Enquanto o meu amor se concentrou noutras hipóteses via Net, eu fui explorar as diferentes saídas que o porto nos oferecia. Um táxi até Ayamonte custava 550 euros. A empresa de aluguer de carros não tinha nada disponível nos próximos dias. A única hipótese era irmos de camioneta até à estação de Algeciras, apanharmos um comboio para Sevilha e, depois, uma camioneta para Faro. Mas só podíamos fazer o pagamento em dinheiro e os multibancos continuavam a não nos deixar fazer movimentos. Numa pesquisa demorada na Net, o meu amor percebeu que não havia nenhuma empresa de aluguer de carros na região com viaturas disponíveis naquele dia. Quando nos reencontrámos no restaurante, estávamos ambos algo aflitos. Os miúdos, de barriga cheia e alheados destes problemas todos, jogavam nas consolas.
 
Numa volta rápida pelos arredores do porto, percebemos que todas as empresas de transportes públicos de longo curso estavam encerradas ao sábado à tarde. É nestas alturas que nos damos conta de como estamos dependentes do nosso telemóvel para resolvermos tudo e mais alguma coisa. Já ninguém sabe números de telefone de cor, nem usa agendas, como noutros tempos. Com os meus contactos todos perdidos no roubo do velhinho Nokia cor-de-rosa, poucas soluções restavam. Através do facebook, consegui recuperar o número fixo de casa da minha melhor amiga, numa mensagem perdida de há meses atrás. Liguei-lhe, em desespero de causa. Atendeu-me a irmã. Entre elas e os amigos que por lá apareceram naquela tarde, ninguém tinha soluções à vista. Excepto uma: arranjar um hotel para dormirmos com os miúdos e alguém se pôr a caminho durante a noite para nos vir buscar de carro. Foi o que decidimos fazer, até porque já se estava a fazer tarde. No site do booking.com encontrámos um porreiro em frente à praia, o hotel Bahia, com uma suite para os quatro. Parecia milagre.

Contámos o dinheiro, mais uma vez. E decidimos que era melhor guardar o que tínhamos para alimentar os miúdos. Tivemos, por isso, que ir a pé até ao hotel. A versão oficial era que os transportes públicos levavam demasiado tempo e que os amigos de sempre tinham decidido vir buscar-nos. Só tínhamos de chegar ao hotel e esperar. Estávamos todos cansados, mas a ideia de um mergulho no mar ao entardecer deu alento às pernas. Parámos para descansar, brincar, tirar fotos. O facto de termos finalmente arranjado uma solução após horas de indecisão, deixou-nos, a nós adultos, bastante bem-dispostos. Levámos à vez a mochila do Vasco, que avançava devagarinho sem se queixar. O meu amor e o Diogo entraram primeiro no hotel. Quando o Vasco e eu chegámos, percebi logo que algo de errado se passava. O meu amor anunciou com aquela sua calma nórdica que o site se tinha enganado e que não havia quartos disponíveis. E eu, com a minha calma mediterrânea, pus a minha mochila no chão, sentei-me em cima dela e comecei a chorar.

Quando me acalmei, pedi desculpa. Expliquei resumidamente a situação ao gerente e à menina da recepção. O roubo em El Jadida, os problemas do dia anterior em Tânger para levantar dinheiro, o multibanco avariado do guichet dos bilhetes para Faro, a impossibilidade de sair dali pelos nossos próprios meios... O pessoal do hotel foi absolutamente amoroso. Eramos o terceiro casal que aparecia, enviados pelo Booking.com, desde que a vaga tinha ficado preenchida. Já deviam estar fartos de ver ali gente, mas insistiram em dar-nos comida e bebida. “Daqui não saem com fome”, disse o gerente. Percebi que o meu amor e eu não tínhamos comido nada desde o pequeno-almoço de manhãzinha. Também não tínhamos sentido fome, verdade seja dita. Obriguei-me a engolir meia tosta mista, o Belga enfiou a metade dele discretamente no bolso, para não ofender os nossos anfitriões. O adolescente recusou tudo com vergonha. O meu Vasco, que é um desbocado, pediu logo um sumo em vez do leite com chocolate que lhe ofereceram. Pelo menos, o pessoal do hotel viu que as crianças estavam alimentadas! Entretanto, acampámos atrás da recepção à procura de outro hotel. O Booking.com propôs-nos um demasiado longe, face a Gibraltar, mas as pernas já não davam para tanto. As minhas amigas em Portugal ficaram desmoralizadas quando souberam de mais esta desventura, mas trataram de encontrar uma vaga mais pertinho de nós. Depois de nos despedirmos efusivamente do pessoal do hotel, pusemo-nos novamente a caminho.

Uma vez chegados ao novo hotel, deparámo-nos com um funcionário extremoso que não aceitava que pagássemos na manhã seguinte. Explicámos novamente a história do roubo e os problemas todos em levantar dinheiro… mas nada. Aquela alma nem um quarto para as crianças, que nós ainda tínhamos dinheiro para pagar, queria aceitar. A minha veia mediterrânea, desta vez, deu-me para a raiva. Estava capaz de matar o homem da recepção, quando o meu amor decidiu estender-lhe o cartão de crédito com a sua fleuma nórdica. E uma boa dose de fé, devo dizer. Não sei como, os cartões decidiram finalmente cooperar. Só faltou largarmos a rir, feitos tolinhos. Agora, bastava esperar que os reforços chegassem.

Depois de deixarmos as mochilas no quarto, decidimos que tínhamos de salvar o dia para bem dos miúdos. O Diogo e o Vasco já tinham percebido o que se estava a passar e estavam naquele tipo de excitação que só as crianças conseguem sentir, uma vez ultrapassados os obstáculos. Tipo videojogo ou coisa que o valha, algo distante da realidade. Portanto, lá fomos nós de volta a caminho da praia. Tomámos um belo banho no mar, à luz das estrelas e da lua. Tomaram eles, que eu só me consegui molhar até à cintura com o frio. Fartámo-nos de tirar fotografias palermas, do meu amor de cuecas na praia e o Vasco todo nu. Agora que o susto passou, acho que estas são as melhores fotografias que tirámos estas férias. Agora que o susto passou, acho que este dia vai deixar memórias para sempre.

Fomos jantar num restaurante à beira-mar, já passava das onze, umas tapas deliciosas que nos souberam pela vida. Quando demos a nossa única moeda de dois euros aos senhores que estavam a tocar na rua, os miúdos riram-se. “Nem quando vos falta o dinheiro, deixam de dar!”, gozou o Diogo. Eu acho que é exactamente nos momentos mais complicados que a necessidade dos outros se torna mais visível aos nossos olhos, tantas vezes distraídos pelo corrupio da vida. E é também quando mais precisamos que nos damos conta de que somos verdadeiramente ricos. Estávamos ali os quatro a rir, em sintonia, num momento perfeito. Depois de um dia que tinha tudo para nos deitar abaixo. O meu amor abraçava-me com força e piscava-me o olho, como quem diz que tínhamos mais uma aventura para juntar às outras todas que compõem a nossa história. Os miúdos agradeceram as férias que tínhamos passado juntos. Perceberam que a aventura também pode ser um elemento estruturante. Disseram que tinham sido as melhores férias de sempre. Tínhamos amigos capazes de se meter num carro e conduzir a noite toda para nos virem buscar a 600 quilómetros de casa. O que mais precisamos para sermos felizes? Nada. Absolutamente nada.

2 comentários:

  1. Bolas... para te ser sincera, a minha calma mediterrânica teria simplesmente chorado a bom chorar, com direito a bloqueio mental.
    Eu sou a mestre do desenrascanço, mas não em terra alheia. Aí sinto-me pequenina e perco o norte!

    Ainda bem que no fim tudo acabou bem ;)

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  2. Não acredito, Naná... os mestres do desenrascanço têm um chip especial que lhes permite sempre encontrar uma solução (depois de chorar um bocadinho, claro está!).

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