(onde tudo acaba bem, apesar dos pesares)
Acordámos
cedo, no nosso último dia em Marrocos. Na praça de táxis perto do hotel,
conseguimos convencer mais um taxista a levar-nos aos quatro até ao terminal
das camionetas. Depois do susto do dia anterior, achámos melhor passarmos mais
uma vez no multibanco só para termos a certeza de que os problemas nas
comunicações bancárias estavam definitivamente resolvidos. Não levantámos muito
mais dinheiro, íamos apanhar o ferry
para Algeciras dali a poucas horas. O suficiente para tomarmos um merecido pequeno-almoço
de reis… no novíssimo McDonald’s de Tânger, para gaudio da rapaziada. Por
momentos quase nos esquecemos de onde estávamos, tal era a modernidade que nos
rodeava… fast-foods, centros
comerciais gigantescos em construção, uma avenida larguíssima.
Depressa
descemos à Terra, quando chegámos à paragem da camioneta que nos ia levar ao
novo porto de Tânger, a uma hora de distância. Quanto mais viajo, mais me
convenço de que a denominada “fila indiana” é um conceito tipicamente português.
Aquilo era como enfiar a Avenida da Liberdade na Rua da Betesga. Aos encontrões
e empurradelas, um magote de gente nova, menos nova e já mesmo muito velha tentava
entrar à força na camioneta. Tudo ao mesmo tempo, tipo manada em debandada. Bebés,
sacos de comida, garrafões, chapéus-de-sol e insufláveis à mistura. Quando já
não cabia nem mais uma agulha naquele palheiro, a camioneta lá arrancava a uma
velocidade considerável, tendo em conta a pesada carga que transportava. Depois
de assistirmos estupefactos a duas “enchidelas” daquelas, desistimos. Apanhámos
um “grand-taxi” até ao porto. As condições em que viajámos foram outras, é
certo… mas nem por isso nos sentimos mais à-vontade. O taxista voava no meio da
estrada ao longo da costa – lindíssima, diga-se de passagem – com uma destreza
digna de um piloto de Fórmula 1. Nem em Itália vi gente a conduzir de forma tão
destravada. A verdade é que também nunca vi um único acidente, portanto eles lá
devem saber o que fazem.
Apanhar
o ferry para Algeciras é mais complicado
do que apanhar um avião. É preciso preencher documentação com informações
dignas da CIA. Há controlos de passaportes, bilhetes e bagagem. Acho que nos
pediram para mostrar as passagens um cento de vezes. Os barcos que fazem a
travessia são uns colossos. Mal sentimos
o mar durante pouco mais de 45 minutos, o que evitou que eu enjoasse, como de
costume. Dormi o trajecto quase todo, enquanto os miúdos exploravam o barco com
o especialista no assunto. O Vasco ainda conseguiu fazer uns amigos de
tropelias. Chegados a Algeciras, fomos obrigados a passar pelo mesmo controlo
apertado, apesar de sermos europeus. Fomos directos ao guichet da única empresa que vendia bilhetes de camioneta para
Faro. E, aqui, começou mais uma sucessão de azares sem fim. Naquele dia,
percebemos a extensão do provérbio “um azar nunca vem só”…
Dado
que o multibanco do guichet estava avariado, fomos levantar dinheiro num ATM do
porto, enquanto o funcionário ficou com os nossos passaportes a emitir os
bilhetes. Impossível fazer qualquer movimento, dizia-nos o ecrã. O senhor
mandou, então, o meu amor à procura de um banco “melhor”, em Algeciras. Nada
feito, fomos obrigados a anular os bilhetes porque não havia outra forma de
pagamento disponível… Depois de uma discussão séria com o homem que não queria
devolver-nos os passaportes, visto já ter imprimido as nossas passagens.
Fomos
à procura de um lugar com wifi para fugirmos ao calor e, calmamente, tentarmos
encontrar outra solução. O restaurante do porto de Algeciras tinha wifi a
conta-gotas, mas servia almoços. Aproveitámos para dar de comer aos rapazes,
com os euros que nos restavam. Enquanto o meu amor se concentrou noutras
hipóteses via Net, eu fui explorar as diferentes saídas que o porto nos
oferecia. Um táxi até Ayamonte custava 550 euros. A empresa de aluguer de
carros não tinha nada disponível nos próximos dias. A única hipótese era irmos de
camioneta até à estação de Algeciras, apanharmos um comboio para Sevilha e,
depois, uma camioneta para Faro. Mas só podíamos fazer o pagamento em dinheiro
e os multibancos continuavam a não nos deixar fazer movimentos. Numa pesquisa demorada
na Net, o meu amor percebeu que não havia nenhuma empresa de aluguer de carros
na região com viaturas disponíveis naquele dia. Quando nos reencontrámos no
restaurante, estávamos ambos algo aflitos. Os miúdos, de barriga cheia e
alheados destes problemas todos, jogavam nas consolas.
Numa
volta rápida pelos arredores do porto, percebemos que todas as empresas de transportes
públicos de longo curso estavam encerradas ao sábado à tarde. É nestas alturas
que nos damos conta de como estamos dependentes do nosso telemóvel para
resolvermos tudo e mais alguma coisa. Já ninguém sabe números de telefone de
cor, nem usa agendas, como noutros tempos. Com os meus contactos todos perdidos
no roubo do velhinho Nokia cor-de-rosa, poucas soluções restavam. Através do
facebook, consegui recuperar o número fixo de casa da minha melhor amiga, numa
mensagem perdida de há meses atrás. Liguei-lhe, em desespero de causa.
Atendeu-me a irmã. Entre elas e os amigos que por lá apareceram naquela tarde,
ninguém tinha soluções à vista. Excepto uma: arranjar um hotel para dormirmos
com os miúdos e alguém se pôr a caminho durante a noite para nos vir buscar de
carro. Foi o que decidimos fazer, até porque já se estava a fazer tarde. No
site do booking.com encontrámos um porreiro em frente à praia, o hotel Bahia, com
uma suite para os quatro. Parecia milagre.
Contámos
o dinheiro, mais uma vez. E decidimos que era melhor guardar o que tínhamos
para alimentar os miúdos. Tivemos, por isso, que ir a pé até ao hotel. A versão
oficial era que os transportes públicos levavam demasiado tempo e que os amigos
de sempre tinham decidido vir buscar-nos. Só tínhamos de chegar ao hotel e
esperar. Estávamos todos cansados, mas a ideia de um mergulho no mar ao
entardecer deu alento às pernas. Parámos para descansar, brincar, tirar fotos. O
facto de termos finalmente arranjado uma solução após horas de indecisão,
deixou-nos, a nós adultos, bastante bem-dispostos. Levámos à vez a mochila do
Vasco, que avançava devagarinho sem se queixar. O meu amor e o Diogo entraram
primeiro no hotel. Quando o Vasco e eu chegámos, percebi logo que algo de
errado se passava. O meu amor anunciou com aquela sua calma nórdica que o site se tinha enganado e que não havia
quartos disponíveis. E eu, com a minha calma mediterrânea, pus a minha mochila
no chão, sentei-me em cima dela e comecei a chorar.
Quando
me acalmei, pedi desculpa. Expliquei resumidamente a situação ao gerente e à
menina da recepção. O roubo em El Jadida, os problemas do dia anterior em
Tânger para levantar dinheiro, o multibanco avariado do guichet dos bilhetes para
Faro, a impossibilidade de sair dali pelos nossos próprios meios... O pessoal
do hotel foi absolutamente amoroso. Eramos o terceiro casal que aparecia,
enviados pelo Booking.com, desde que a vaga tinha ficado preenchida. Já deviam
estar fartos de ver ali gente, mas insistiram em dar-nos comida e bebida. “Daqui
não saem com fome”, disse o gerente. Percebi que o meu amor e eu não tínhamos
comido nada desde o pequeno-almoço de manhãzinha. Também não tínhamos sentido
fome, verdade seja dita. Obriguei-me a engolir meia tosta mista, o Belga enfiou
a metade dele discretamente no bolso, para não ofender os nossos anfitriões. O adolescente
recusou tudo com vergonha. O meu Vasco, que é um desbocado, pediu logo um sumo
em vez do leite com chocolate que lhe ofereceram. Pelo menos, o pessoal do
hotel viu que as crianças estavam alimentadas! Entretanto, acampámos atrás da
recepção à procura de outro hotel. O Booking.com propôs-nos um demasiado longe,
face a Gibraltar, mas as pernas já não davam para tanto. As minhas amigas em
Portugal ficaram desmoralizadas quando souberam de mais esta desventura, mas
trataram de encontrar uma vaga mais pertinho de nós. Depois de nos despedirmos
efusivamente do pessoal do hotel, pusemo-nos novamente a caminho.
Uma
vez chegados ao novo hotel, deparámo-nos com um funcionário extremoso que não
aceitava que pagássemos na manhã seguinte. Explicámos novamente a história do
roubo e os problemas todos em levantar dinheiro… mas nada. Aquela alma nem um
quarto para as crianças, que nós ainda tínhamos dinheiro para pagar, queria
aceitar. A minha veia mediterrânea, desta vez, deu-me para a raiva. Estava
capaz de matar o homem da recepção, quando o meu amor decidiu estender-lhe o
cartão de crédito com a sua fleuma nórdica. E uma boa dose de fé, devo dizer.
Não sei como, os cartões decidiram finalmente cooperar. Só faltou largarmos a
rir, feitos tolinhos. Agora, bastava esperar que os reforços chegassem.
Depois
de deixarmos as mochilas no quarto, decidimos que tínhamos de salvar o dia para
bem dos miúdos. O Diogo e o Vasco já tinham percebido o que se estava a passar
e estavam naquele tipo de excitação que só as crianças conseguem sentir, uma
vez ultrapassados os obstáculos. Tipo videojogo ou coisa que o valha, algo
distante da realidade. Portanto, lá fomos nós de volta a caminho da praia.
Tomámos um belo banho no mar, à luz das estrelas e da lua. Tomaram eles, que eu
só me consegui molhar até à cintura com o frio. Fartámo-nos de tirar fotografias
palermas, do meu amor de cuecas na praia e o Vasco todo nu. Agora que o susto
passou, acho que estas são as melhores fotografias que tirámos estas férias.
Agora que o susto passou, acho que este dia vai deixar memórias para sempre.
Fomos
jantar num restaurante à beira-mar, já passava das onze, umas tapas deliciosas que
nos souberam pela vida. Quando demos a nossa única moeda de dois euros aos
senhores que estavam a tocar na rua, os miúdos riram-se. “Nem quando vos falta
o dinheiro, deixam de dar!”, gozou o Diogo. Eu acho que é exactamente nos
momentos mais complicados que a necessidade dos outros se torna mais visível
aos nossos olhos, tantas vezes distraídos pelo corrupio da vida. E é também
quando mais precisamos que nos damos conta de que somos verdadeiramente ricos. Estávamos
ali os quatro a rir, em sintonia, num momento perfeito. Depois de um dia que
tinha tudo para nos deitar abaixo. O meu amor abraçava-me com força e
piscava-me o olho, como quem diz que tínhamos mais uma aventura para juntar às
outras todas que compõem a nossa história. Os miúdos agradeceram as férias que tínhamos
passado juntos. Perceberam que a aventura também pode ser um elemento estruturante.
Disseram que tinham sido as melhores férias de sempre. Tínhamos amigos capazes
de se meter num carro e conduzir a noite toda para nos virem buscar a 600
quilómetros de casa. O que mais precisamos para sermos felizes? Nada. Absolutamente
nada.
Bolas... para te ser sincera, a minha calma mediterrânica teria simplesmente chorado a bom chorar, com direito a bloqueio mental.
ResponderEliminarEu sou a mestre do desenrascanço, mas não em terra alheia. Aí sinto-me pequenina e perco o norte!
Ainda bem que no fim tudo acabou bem ;)
Não acredito, Naná... os mestres do desenrascanço têm um chip especial que lhes permite sempre encontrar uma solução (depois de chorar um bocadinho, claro está!).
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