domingo, 2 de agosto de 2015

Viagem a Marrocos – dias 8 e 9

(onde as coisas começam a descambar)



Chegámos a Tânger à noitinha, após quase 7 horas de viagem. Desta vez, o comboio estava completamente lotado e tivemos de viajar em primeira classe. Era isso ou ficar em Fez mais um dia. A diferença de preços não era grande, mas por uma questão de princípio o meu amor recusa sempre viajar em primeira classe. Tive de lhe dar razão, quando vi as pessoas a empilharem-se nas carruagens e nos corredores, no meio do calor sufocante do início da tarde. Nós seguimos calmamente numa carruagem climatizada, confortável, limpa. As nossas duas companheiras de viagem, cobertas da cabeça aos pés, falavam um neerlandês impecável. Emigrantes, como nós, com dinheiro para comprar comodidade.

As coisas começaram a dar para o torto logo à chegada. Estávamos cansados, rabugentos e com fome. Decidimos não arriscar e ir directos ao complexo urbanístico onde tínhamos alugado um apartamento. Em Marrocos, quando se chega muito tarde ao hotel, corre-se o risco de a reserva ter ficado para alguém que apareceu entretanto. Quando o “grand taxi” nos deixou à porta da urbanização, percebemos que a portaria já estava fechada. Nada a fazer. Estávamos nos arredores de Tânger, bastante longe do centro urbano. Arrastámo-nos até um café com wifi para tentar encontrar outro hotel onde pudéssemos passar os nossos dois últimos dias em Marrocos. O meu amor às voltas na tablet, eu agarrada ao “Routard”. Os miúdos a implicar por tudo e por nada. Por sorte, conseguimos desencantar um hotelzito relativamente depressa. O problema era ir até lá, noite serrada…

Os “petits taxis” que servem as cidades só podem transportar, no máximo, três passageiros. Teoricamente, claro. Eu finquei pé para tentarmos encontrar um táxi que estivesse disposto a fechar os olhos a esta regra. Na última vez que tínhamos apanhado dois táxis diferentes – numa dupla de sucesso constituída pelo meu amor e o Vasco/eu e o Diogo (a fazer as vezes de homem que me acompanhava) – o nosso táxi parou subitamente para levar mais um transeunte. Ah… e voltou a parar para o taxista ir comprar tabaco ao café. Os táxis, para todos os efeitos, são um transporte público que a qualquer momento pode parar para apanhar mais um cliente… até esgotar a lotação. Escusado será dizer que o percurso se vai adaptando à clientela presente. Ou seja, o melhor é não apanhar um táxi quando se está com pressa e não se quer mesmo perder o resto da família que segue à frente/atrás/ao lado (há muitaaaas faixas nas estradas marroquinas, tantas quantas as necessárias).

Passados uns quantos taxistas mais rigorosos, lá apareceu um velhote que se dispôs a levar-nos todos até ao centro. Cobrou bastante mais do que era suposto, mas isso é apenas um detalhe. Vá… também não fazia a mínima ideia do caminho até ao hotel e suponho que fosse quase vesgo, porque ia colado ao volante de olhos muito franzidos. Digamos que foi uma viagem emocionante. Tivemos pena do velhote e acabámos por lhe pedir para nos deixar perto do porto antigo. Seguimos a pé o resto do percurso, perseguidos pelos já habituais habitantes “muito prestáveis” que o Vasco aprendeu a afastar com mestria. Conseguimos encontrar o hotel já perto das onze da noite. O jantar foi tardio, mas absolutamente delicioso, como sempre.

Na manhã seguinte, descobrimos Tânger à luz do dia. Não posso dizer que tenhamos ficado exactamente muito encantados. Foi a primeira cidade que nos desiludiu, desde o início da viagem. Uma espécie de estância turística bastante feia encavalitada sobre uma cidadela antiga e um porto desactivado. A praia bastante suja, apinhada, rodeada de prédios altos supostamente modernos. A civilização no seu pior. Depois de pagarmos o hotel e de comprarmos os bilhetes do ferry para o dia seguinte, decidimos fugir dali para fora o mais depressa possível. Lembrámo-nos de fazer uma pequena excursão para visitarmos um promontório a vários quilómetros dali. Fomos levantar mais uma vez dinheiro. Desde o roubo que nos tornámos visitas frequentes do multibanco, preferimos andar "mais ligeiros". Foi nesse momento que apanhámos um valente susto: era impossível fazer qualquer movimento bancário. Regressámos ao hotel para tentarmos reflectir sobre o que iríamos fazer, sem preocupar os miúdos. Como o Diogo se estava a queixar da barriga, aproveitámos a deixa para anunciar que era melhor mudarmos de planos e ficarmos pela praia, não muito longe do hotel.

O meu amor deixou-nos aos três na praia, em frente ao farol, e foi à procura de um banco europeu no centro de Tânger. Os rapazes ficaram horas de molho, divertidíssimos. No areal, mesmo vestida com calções e t-shirt, não me senti muito à-vontade. Amaldiçoei as madeixas louras que o cabeleireiro-vidente se lembrou de me fazer. Quando finalmente regressou, o meu amor não trazia boas notícias. Todos os multibancos continuavam a indicar problemas de comunicação e não deixavam fazer levantamentos. Fizemos as contas por alto, estávamos ambos muito longe de termos atingindo os plafonds dos cartões Visa que nos restavam. Será que era porque era sexta-feira, dia santo? Será que aquela multidão de turistas marroquinos provenientes da Europa tinha esgotado as verbas disponíveis nas caixas multibanco? Será que tínhamos metido as mãos pelos pés no meio dos milhentos telefonemas que fizemos logo após o roubo para anular cartões de vários bancos portugueses e belgas, bem como as assinaturas dos telemóveis? Será que tínhamos pedido para nos porem um plafond máximo de levantamento semanal, por exemplo?

Decidimos esperar pela meia-noite para voltarmos a tentar. Entretanto, achámos melhor pôr o meu pai e a minha melhor amiga de sobreaviso, não fosse o diabo tecê-las. Contámos discretamente todo o dinheiro que nos restava até à mais pequena moedinha. Incluindo os 300 dirhams que desde o início da viagem eu tinha guardado no fundo da minha mochila, remanescência das recomendações parentais que recebi quando comecei as fazer as primeiras viagens a solo na adolescência. Dessa verba retirámos de imediato o necessário para o bilhete de autocarro para porto de Tânger, onde iríamos apanhar o ferry na manhã seguinte, a uma hora de distância do centro. O pouco que sobrava, teria de dar para comermos os quatro até lá. Estávamos ambos convictos de que a situação se desbloquearia, o mais tardar, uma vez chegados a Espanha.

Alheados às nossas contas apertadas, os miúdos iam pedindo comida sem parar. Os mergulhos demorados no mar abriram-lhes o apetite já de si voraz. Para mal dos nossos pecados, as praias em Marrocos estão cheias de vendedores ambulantes de todo o tipo de produtos alimentares, uns mais esquisitos do que outros. Emborcaram gelados, bolos, sumos… Achámos que era mais prudente tirar as marabuntas da água antes que nos desgraçássemos definitivamente.

À noite, decidimos aventurar-nos no souk, perto do hotel. O ambiente é sempre bastante pitoresco, por mais mercados deste género que se visitem. Tirámos as últimas fotografias. Recordámos pormenores da viagem, situações engraçadas. Rimos, já um bocadinho nostálgicos. Começámos a despedir-nos de Marrocos, que vai deixar saudades. Jantámos numas barraquinhas ambulantes, que tinham uma carne no churrasco que cheirava divinalmente. Depois, comprei-lhes fruta no mercado. Os rapazes comeram até se fartarem, nós fomos mais contidos. Vá… dividimos uma sandes, porque desde de manhã não tínhamos comido mais nada. Queríamos guardar dinheiro para o pequeno-almoço do dia seguinte, caso o problema com os levantamentos se mantivesse.

Pouco antes da meia-noite, esperançoso, o meu amor percorreu novamente o caminho até à enorme avenida do centro. Os miúdos já dormiam a sono solto, cansados dos banhos de mar. Eu fiquei-me pela recepção, a espreitar as novidades dos amigos no facebook. Nervosa, incapaz de fazer muito mais. Ele voltou depressa, com um sorriso aberto. Tinha conseguido finalmente levantar dinheiro, aquele dia infernal tinha acabado. Perguntou-me se tinha fome, se queria que fosse buscar qualquer coisa para comer. Talvez fruta, que ele reparou que eu tinha ficado a namorar à hora do jantar. Acredito que, para quem vem de Portugal, a fruta em Marrocos seja apenas deliciosa e docinha. Para quem vem da Bélgica, aquela fruta é um verdadeiro manjar dos deuses. Mas não, eu não tinha fome. Apesar de o centro nevrálgico das grandes cidades marroquinas se manter acordado pela noite dentro, eu estava esgotada. Só me apetecia dormir, naquela última noite. Até porque sabia que seria acordada pelo muezzin às cinco da manhã a chamar a malta para rezar…

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