(das
férias e suas consequências)
Estes
dias têm sido complicados. Agridoces. Os rapazes estão de regresso a casa, mas voltaram
estranhos destas últimas férias de Verão em Portugal. Mais estranhos do que o
habitual, entenda-se. Um mês é muito tempo. Mais o mês que passaram connosco
entre a Bélgica, Espanha, Marrocos e Portugal. O Vasco anunciou que estas
tinham sido as melhores férias de sempre. Não é fácil deixar para trás dois
meses de férias e acordar de repente para a realidade. Os meus filhos
responderam de forma diametralmente oposta. Um suspirou de alívio, o outro chorou
de tristeza. Andamos aos pouquinhos a tentar entrar na nossa rotina. Na rotina
do novo ano escolar, que começou na semana passada.
O
Diogo anunciou logo à chegada ao aeroporto que tinha gostado muito das férias,
mas que estava desejoso de voltar. De regressar a casa. À sua casa. À sua
escola, que adora. E fê-lo com um sorriso que espelhava bem a felicidade que
sentia, indiferente à desilusão que isso pudesse causar a quem o rodeava. As
despedidas foram rápidas, banais. Mal aterrou, telefonou-me a dizer que já cá
estava, que tinha saudades minhas, que gostava muito de mim, que dali a cinco
minutos estaríamos juntos. Fiquei de coração cheio, claro. Mas achei estranho. Aos
catorze anos já não é suposto corrermos para o colo da mãe. Tanto mais que estamos
a falar de um miúdo que, ainda há poucos meses, dizia que queria ficar em
Portugal. Sempre defendi que o Diogo dizia isto apenas para agradar ao outro lado, por um qualquer dever
filial pervertido que lhe tinham conseguido inculcar, por estar com os braços
repletos de prendas caras e a cabeça cheia de maledicência contra mim, contra
os emigrantes, contra este país. Penso que agora se tornou evidente.
Pior,
penso que o meu filho crescido já não se sente bem quando fica muito tempo em
Portugal, a viver uma vida que se quer perfeita, artificial e excessivamente social.
Obrigatoriamente familiar. Desta vez, voltou cheio de tiques. Falava e a cara contorcia-se
com movimentos regulares involuntários. O meu amor ficou bastante preocupado. A
madrinha, que veio com eles, também estava estarrecida. Eu tive uma visão de
reconhecimento. O Diogo sempre teve este problema, quando confrontado com
situações que não conseguia gerir. Quando andava no hóquei, quando era vítima
de bullying na escola… Mas, desde que
viemos viver para a Bélgica, os tiques desapareceram por completo. A vida mudou
e ele aproveitou a deixa para se reinventar. Com mestria, diga-se de passagem. Há
três anos que eu não o via ter tiques e partiu-me o coração perceber o que devia
ter sentido. Adivinhar o que se passava naquela cabeça, porque o Diogo recusou
falar sobre as férias. Ainda andou assim três ou quatro dias, foi aflitivo.
Os
tiques foram desaparecendo aos poucos, à medida que a segurança de reencontrar
a sua vida voltava. Adorou o quarto novo, que agradeceu vezes sem conta.
Fartou-se de elogiar a nossa casa e o quintal, que fez questão de mostrar pormenorizadamente
à madrinha. Recusou ir a casa de amigos ou convidar alguém para vir cá dormir. Preferiu
esperar pelo início da escola e passar os primeiros dias a namorar a casa. Dizia
que queria calma, que queria paz. Que estava farto de confusão, de ter muita
gente à sua volta. Voltou ainda mais meiguinho do que o habitual, sobretudo
para com o meu amor que é profundamente nórdico. Mas lá percebeu que o miúdo
precisava mesmo de se sentir seguro e tem retribuído as declarações de amor e as
demonstrações de afecto, que sempre o deixaram desconfortável. Devagarinho, as
coisas foram ao lugar. A escola recomeçou, bem como as aulas de solfejo e de trompete.
Reencontrou os amigos e a namorada. Daqui por uns dias vai começar a aprender
um novo instrumento algo inusitado: órgão de igreja. Só falta convencê-lo a
praticar um desporto qualquer, para ver se espevita… e se gasta a quantidade
absurda de comida que ingere.
O
Vasco também voltou estranho, embora fosse uma estranheza diferente da do
irmão. Ainda no aeroporto fez a cena do costume, com o choro e os vómitos
esperados. Mal a plateia sedenta de drama virou costas, a madrinha disse que o
Vasco recuperou instantaneamente o sorriso. Começou a tagarelar alegremente sobre
a vida aqui, sobre o meu amor e todas as coisas que faziam juntos. Só não
estava lá muito contente por recomeçar a escola dali a dois dias…
Na
verdade, custou-lhe imenso regressar à normalidade. À vida regrada. À rotina do
quotidiano. Aos horários de deitar e de levantar. Às obrigações, tout court. A escola e as actividades e as refeições e os
trabalhos de casa e as inúmeras tarefas
pequeninas que é mesmo preciso fazer. A coisa pequena só queria brincar. E
jogar videojogos. Nos primeiros dias, pavoneava-se pela casa como se fosse um
príncipe, a quem tudo é devido e nada lhe é exigido. Altivo e ufano. A falta de
autonomia atingiu níveis assustadores. A má-educação. Ignorava ostensivamente
conselhos, ordens e ralhetes. Não se podia ir a lado nenhum com o Vasco, estava
sempre a pedinchar. Só tinha uma ideia na cabeça: comprar, comprar, comprar. Fartou-se
de pedir coisas a mim, ao meu amor, à madrinha. Tanto podiam ser insignificâncias,
como artigos caríssimos cujo valor lhe era indiferente. Principalmente doces. Vinha
completamente viciado em doces. Maluquinho. Juro que nunca tinha visto tal
coisa na minha vida, era como se o miúdo estivesse a ressacar. Babava para cima
de tudo o que fosse doce e andava sempre a ver o que conseguia apanhar. Nem que
fosse às escondidas, nada lhe escapava. Tivemos de fazer uma espécie de cura de
desintoxicação da diva, o que não foi nada fácil. Custou-lhe horrores. Ficou
impossível de aturar, rezingão e choramingas. Dormia mal. Como se não bastasse
tudo o que deve ter enfardado durante as férias, ainda trouxe uma mochila cheia
de porcarias que parecia um poço sem fundo. Dias depois de chegarem, ainda
havia gomas e pastilhas espalhadas pelo quarto. Até que o meu amor se passou,
declarou que aquilo era uma obscenidade e, num acto déspota, espetou com os doces
todos que restavam no lixo.
Nenhum
de nós estava feliz com este reencontro tão esperado. Tentei resolver o
problema com várias aproximações diferentes, nenhuma resultou. Falei
meigamente, expliquei, tentei passar mais tempo sozinha com o Vasco. Ralhei,
zanguei-me, castiguei. Mostrei-me desiludida. As coisas em casa iam de mal a
pior. Na escola não era muito melhor. No primeiro dia, perdeu um casaco. Dias
depois, foi a lancheira novinha em folha. Também houve aquela vez em que dormiu
com um marcador preto sem tampa e manchou a roupa de cama toda… e o colchão
novo. Decidi que precisávamos de medidas drásticas para impor os limites que o
Vasco parecia incapaz de voltar a aceitar, no regresso das férias. Comprei um
quadro branco onde fiz uma lista das tarefas diárias que o filho pequeno tem de
fazer. O meu amor acrescentou mais algumas, que entretanto lhe ocorreram. Pregámos
o quadro por cima da mesinha de cabeceira do Vasco. Todos os dias, tem de fazer
uma auto-avaliação antes de se deitar e marcar com uma cruz as tarefas
realizadas. No fim-de-semana, fazemos o ponto de situação. Se tiver sido uma
boa semana, terá direito a um prémio (mais uma hora de videojogos, escolher um
passeio, escolher o bolo da semana, etc.). Se tiver sido uma má semana, terá um
castigo (menos tempo de televisão, um ditado, etc.). A ideia não é apenas recompensá-lo
ou castigá-lo, mediante o comportamento. O objectivo do quadro é ajudá-lo a lembrar-se
das suas tarefas diárias, visualizando-as, para que progressivamente consiga
voltar a organizar-se de forma autónoma. Vamos no terceiro dia e as melhorias
são notórias. A principal mudança, para mim, foi vê-lo recuperar o sorriso. Não
há dúvida de que as crianças precisam mesmo de regras e de limites, mas as
coisas funcionam bastante melhor se forem eles próprios a autodisciplinarem-se.
Por aqui, esperamos ansiosamente que daqui por uns tempos nada disto seja preciso
e que tudo volte ao normal. À realidade banal dos nossos dias, em que o mimo é
doseado com disciplina, em que as crianças não são compradas com doces, em que
cada um tem direito à sua individualidade. E à paz de espírito.
Ai, os regressos. Acho que os regressos também custam mais porque eles crescem tanto nas férias (neste caso, no sentido intelectual e emocional) que lhes custa voltar ao ponto inicial, do "eu" de há meses atrás. Mas depois vem a rotina e logo nos encaixamos todos nos eixos, com maior ou menor queixume.
ResponderEliminarSim, ainda há mais essa... nós também temos de nos readaptar às rotinas. :(
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