(porque
até para nascer é preciso sorte)
Vivi
a semana que passou numa espécie de nuvenzinha de felicidade. Posso dizer, sem
sombra de modéstia, que estava toda ufana. Verdadeiramente orgulhosa da minha
pequena pessoa. Consegui cumprir o objectivo a que me propus há três anos
atrás, quando cheguei a este país.
Inscrevi-me
na Commune de Manhay no dia 28 de Agosto de 2012, iniciando o pedido de
autorização de residência na Bélgica. Foi um processo longo e moroso. Não tinha
nada a meu favor. Emigrei sozinha, sem familiares por perto. Aluguei uma casinha
totalmente vazia numa aldeia perdida nas Ardenas, que não fazia ideia de como
iria conseguir pagar. Não tinha emprego. A minha conta bancária não me dava
grande margem de manobra. Trazia comigo dois filhos de 11 e 5 anos que não
falavam a língua. Embora tivesse a autorização paterna, a guarda não estava
legalmente definida.
O
meu dossier era complexo, do ponto de vista burocrático. Eu não reunia nenhuma
das condições exigidas pela Administração. Mas tive a intervenção divina da fé
humana, por assim dizer. Tive um bocadinho de sorte e, principalmente, as
pessoas certas à minha volta. Pessoas boas. Gente que acreditou em mim e que
decidiu fazer o que estava ao seu alcance para me ajudar. Um conjunto eclético
de pessoas que fez toda a diferença. Não tenho qualquer dúvida de que foi o factor
humano que fez a balança pender para o meu lado. Para o nosso lado. Quando tudo
o resto falha, só a humanidade nos salva. A solidariedade.
O
primeiro amor de adolescência que me surpreendeu no aeroporto, quando aterrei
neste país completamente perdida com duas crianças pela mão e uma mala imensa. A
família do coração, que me deu guarida inicialmente e me ajudou a encontrar
casa. Vizinhos-que-depressa-se-transformaram-em-amigos, que a vida se
encarregou de pôr no meu caminho no momento em que mais precisava. Que durante
meses apareceram lá em casa, às horas mais estranhas, com móveis e comida e recortes com ofertas de emprego e tarecos vários. Profissionais que generosamente ofereceram muito
mais do que o seu profissionalismo. Com a distância dos anos, pode parecer
irrisório a quem nunca passou por esta reconstrução de vida. Pela parte que me
toca, sei que tenho uma dívida de gratidão para com todas estas pessoas. O
garagista que me emprestava o carro sempre o velho Saxo avariava. Os professores
e funcionários da escolinha de Malempré que receberam os meus filhos com um
afecto sincero. O agricultor que tantas vezes me tirou da neve com o tractor. A
proprietária do albergue que me deixou lavar lá a roupa, enquanto não tive dinheiro
para comprar uma máquina. O professor de trompete que dava aulas ao Diogo em
nossa casa para me poupar um trajecto semanal. O advogado sui generis, que esperou eu arranjar emprego para lhe pagar. A
funcionária da secundária de Spa que aldrabou a papelada para eu receber os primeiros
salários na conta de uma vizinha, até ter os meus documentos em ordem. A vizinha
que adiantava o ordenado uns dias sem que eu soubesse. O médico de família que
me confortava dizendo que todas as maleitas de que padeci no primeiro Inverno mostravam
que o físico era mais frágil do que o psicológico, mas que o segundo haveria de
ganhar. E que desencantava sempre amostras de medicamentos para eu não gastar
dinheiro.
E
a pessoa mais especial de todas. A senhora encarregue do serviço de estrangeiros
da Commune de Manhay, que moveu mundos e fundos para eu obter a autorização de
residência neste país, contra todas as expectativas. Que foi arranjando maneira
de ir adiando o processo até eu conseguir reunir todas as condições necessárias.
Que celebrou cada nova conquista connosco. E que me telefonou num dia de folga
a dar a boa notícia. O pedido de residência tinha sido aceite. No fim, pediu-me que aguentasse três anos. Os três
primeiros anos. O período mais difícil para um emigrante. Depois, seria uma
cidadã de direito próprio, com acesso a todas as ajudas sociais que qualquer
belga pode usufruir no seu país. Depois, já me podia acontecer qualquer coisa
na vida, que nunca mais ficaria “sem rede”. Eu e os meus filhos. Prometi-lhe
que iria conseguir, que tivesse confiança em mim. Em nós.
No
dia 28 de Agosto de 2015 fui à Commune de Manhay. Assim que me viu, fez-me um
sorriso enorme. Ralhou comigo por não ter dado mais notícias, desde que nos
tínhamos mudado para a Commune de Vielsalm. Mas que sabia por portas e
travessas que estava tudo bem. E eu anunciei orgulhosa que o prazo inicial de
três anos tinha finalmente terminado. Que tinha conseguido. O contrato de
trabalho efectivo. A guarda definitiva dos miúdos, que estavam perfeitamente
adaptados e felizes. Que pareciam outros. O meu amor, que entrou nas nossas
vidas quando este longo processo terminou. E que aqui continua. A casa dos meus
sonhos. Uma vida nova. Consegui construir uma vida nova neste país, que me
acolheu há três anos atrás, onde me sinto muito mais realizada. Ela voltou a
sorrir e deu-me os parabéns. Disse que é sempre bom ver histórias com um final
feliz. Que infelizmente nem sempre é possível. Que ultimamente, com a
quantidade de refugiados que esta zona tem recebido, tem sido muito complicado
de gerir. Há vidas miseráveis, pelas quais ela nada pode. O sorriso
desapareceu. Deu lugar a um olhar triste. Indicou-me discretamente com o queixo
um cantinho da sala onde aguardavam umas quantas pessoas negras. Na minha
altivez, nem as tinha visto. E senti-me envergonhada. O orgulho desvaneceu-se.
Podia ser eu. Podíamos ser nós.
A
vaga de pessoas que arrisca a própria vida e a dos filhos para tentar romper as
fronteiras bem estabelecidas e confortáveis desta nossa velha Europa já não é
apenas constituída por refugiados de guerra, como antigamente. Mas são refugiados políticos,
sim. De séculos de políticas ocidentais de exploração mercantilista. São refugiados
da pobreza, das condições mínimas de vida. São refugiados da fome. Da ausência
de cuidados médicos. São refugiados da falta de oportunidades. Do desemprego. Da
privação do direito à escolaridade. Do desalento. São refugiados iguais a mim,
que em desespero de causa também arrastei os meus filhos para esta aventura sem
ter um plano B. Apenas com a convicção profunda de que os nossos destinos não
estão escritos à partida. De que todos temos direito a uma vida melhor, seja lá
onde for. Esteja ela onde estiver. E de que a minha obrigação como mãe era
lutar para lhes conseguir garantir um futuro melhor. É tão simples quanto isto.
A única diferença é que eu tive a sorte de nascer num cantinho na Europa. Pude
pegar no meu carro e partir. Enviar os meus filhos na segurança de um avião. A
única diferença é que os meus pais puderam oferecer-me um ensino universitário
que me permitiu arranjar um emprego em pé de igualdade com qualquer belga. Tive
sorte. Sorte à nascença e sorte à chegada a este país. Acredito que todas as
pessoas fantásticas que me ajudaram a mim, individualmente, nos confins das
Ardenas belgas, teriam ajudado qualquer mãe sozinha com dois filhos. Uma mãe
síria, egípcia, eritreia, afegã. Uma mãe qualquer. Mas também acredito que ninguém
teria ajudado milhares de portugueses que aqui desembarcassem de repente. Porque
não nos iludamos, desde que a crise nos bateu à porta, os portugueses também
têm estado a emigrar em massa para o estrangeiro. É a debandada. Já não “dão o
salto” como nos anos 60, porque deixou de haver fronteiras. A nossa sorte – a sorte
dos milhares que anualmente saem do país – é que nos vamos espalhando e
diluindo no tecido europeu. A nossa sorte é que somos todos brancos,
vestimo-nos “à ocidental” e temos facilidade em aprender novas línguas. A nossa
sorte é que somos uma nação de emigrantes com uma capacidade de adaptação
e integração fora do comum. Ninguém dá por nós. Mas se fôssemos milhares a
acossar os muros de arame farpado que vão crescendo para proteger a tranquilidade
europeiazinha também seríamos corridos a jactos de água. Podia ser eu. Podíamos
ser nós. Essa é a vergonhosa constatação que tiro de ter orgulhosamente
alcançado a plenitude dos meus direitos de cidadã a viver na Bélgica, ao fim de
três anos de camuflagem e solidariedade.
Só para dizer que não sei o que dizer... e isso é dizer muito, porque eu raramente fico sem palavras...
ResponderEliminarMas esta é mesmo uma daquelas situações em que as palavras não conseguem exprimir o que nos vai na alma, Naná.
EliminarTambém eu, nas últimas horas e depois de ler tanta declaração, tanto post, começo a não saber como me devo pronunciar...Vemos o desespero de quem quase entrega os filhos às águas, pressentimos histórias medonhas, depois ouvimos o silêncio de alguns líderes europeus ou mesmo de um Obama que. lá longe, parece nada ter a ver com estas vidas... Mas como esquecer as vezes em que descalçámos sapatos ou despejámos a água das garrafas para entrar num avião porque havia o perigo de alguém ameaçar o mundo com um ar dito "normal"? Eu, que sempre achei que pertencia ao grupo dos que a ajudaram nessa aldeia perdida? E que sinto vergonha pelos que assinam petições para , à semelhança do que aconteceu com os aterros sanitários, se afirmarem a favor mas à distância... O que sei é que, pelo que tenho lido neste espaço, o seu caminho merece o patamar a que chegou! E escrevo patamar porque, daqui para a frente, é sempre a subir...
ResponderEliminarEu entendo o que quer dizer, Mariana. É impossível não pensar nos cristãos lançados ao mar, na comida rejeitada só porque tinha a cruz da Cruz Vermelha, nas violações de mulheres cristãs nos campos de refugiados, nos 90% de homens... É uma situação muito complexa. Não é fácil separar o trigo do joio. Ninguém tem soluções milagre. Mas, em última análise, são seres humanos. Homens, mulheres, crianças que merecem ser ajudados. Primeiro, a ajuda. Primeiro, a humanidade. Depois, se tratará do resto.
ResponderEliminarO facto de haver (e haverá sempre) terríveis injustiças no mundo não deve, ainda assim, impedir-nos de celebrar as nossas vitórias. Parabéns por mais esta, muito merecida. E que as vitórias nos dêem gratidão e não nos retirem a empatia por aqueles que ainda têm muito que lutar.
ResponderEliminarObrigada, Gralha. Também acho importante que as vitórias e a gratidão andem a par e passo.
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