terça-feira, 22 de março de 2016

Estamos bem

(aproveito para agradecer o carinho e preocupação de todos os que hoje se lembraram de nós)



Hoje acordámos com a notícia dos atentados em Bruxelas. Ficámos em choque, mas não posso dizer que tenhamos ficado surpreendidos. Desde Novembro, que estávamos no nível 3 de segurança nacional. Desde que conseguiram desmantelar um atentado pouco depois, que se sabia que seríamos o próximo alvo. Era apenas uma questão de tempo. Provavelmente a prisão de Salah Abdeslam, na commune de Molenbeek em Bruxelas, na 6ª feira passada, veio apenas acelerar os acontecimentos.
Engana-se quem pensa que é isto são ataques isolados, lá longe.
Engana-se quem pensa que é isto são ataques à França ou à Bélgica, onde as comunidades árabes estão revoltadas pela maneira como são ostracizadas.
Engana-se quem pensa que é isto são ataques perpetrados por radicais islâmicos que vieram infiltrados no meio dos refugiados.
Isto é um ataque às políticas ocidentais dos últimos anos, em pleno centro nevrálgico da Europa, executado por europeus que se converteram ao Estado islâmico. E não vai por aqui. Fechar as portas da Europa a quem foge desesperado destes loucos só vai piorar as coisas.
Não faço ideia nenhuma de como se irá resolver este problema, nas “altas instâncias”. Até lá, vamos vivendo tranquilamente, sem medos. Não somos temerários, claro. Quando há duas semanas comprei as passagens para os meus filhos irem a Portugal nas próximas férias, escolhi um aeroporto na Holanda. Nos próximos tempos, não tencionamos ir a Bruxelas. Nem sequer ao centro de Verviers, perto do meu trabalho, outro enxame conhecido de terroristas. Mas recuso-me a entrar no jogo desta gente. Nisto (como em muitas outras coisas) sou assumidamente belga. E com muito orgulho.


 

segunda-feira, 21 de março de 2016

A empresa dos dias úteis

(onde se mostra que na dificuldade nasce a cumplicidade)


Estes têm sido dias de muito trabalho. Ainda não consegui alcançar um equilíbrio entre as minhas diferentes ocupações. Melhor dizendo, entre o meu trabalho no centro de documentação e as traduções. Desde que voltei à tradução e legendagem, mantive apenas as aulas de Espanhol. Tudo o resto, tive de deixar para trás. Não há tempo para tudo. Não há tempo de qualidade para tudo. E tive de fazer opções. Fui fiel a mim mesma, optei pelo que mais prazer me dava. Pelo que sei fazer melhor. Talvez não seja o mais seguro, nem o mais rentável. Não será certamente o mais previsível. Passo a vida a organizar e reorganizar os meus dias, em função do trabalho que aparece. A esticá-los. A rentabilizá-los. A torná-los úteis, da única maneira que sei: tornando-os alegres. Sérgio Godinho cantava “a alegria é o que nos torna os dias úteis”. Não podia concordar mais.
Tenho a obrigação de compensar os meus filhos pelo isolamento familiar que lhes impus, quando emigrámos. Não basta ser uma boa mãe. Não basta ser uma mãe presente. Tenho a obrigação de lhes mostrar que aqui, neste país, podemos efectivamente viver melhor. Materialmente, a nossa vida deu um salto qualitativo: tenho um emprego seguro e outro como independente, ganho mais trabalhando bastante menos, tenho uma enorme flexibilidade de horários, fazemos férias no estrangeiro várias vezes por ano, vivemos numa casa incomparavelmente maior, com quintal, consegui comprar um carro novo, que daqui por seis meses estará pago, dou uma excelente educação aos meus filhos.
Felizmente, os nossos dias úteis não se esgotam nas vantagens económicas. Embora seja importante que eles tenham consciência da sorte que temos (e que percebam que essa “sorte” dá imenso trabalho), penso que é muitíssimo mais importante que aprendam a disfrutar da viagem, por assim dizer. O caminho para chegar até aqui tem sido longo, mas é uma aventura que temos vivido todos juntos. Não foram só os rapazes que cresceram nos últimos anos. Desta vez, quando recomecei a trabalhar como freelancer ninguém acusou o embate, muito pelo contrário. Festejámos mais uma meta alcançada, enquanto família. Sou uma empresa, oficialmente. Isso implica passarmos menos tempo juntos? Claro que sim. Mas é largamente compensado pela margem de segurança financeira, pelo crescimento profissional, pelo orgulho de darmos mais um passo em frente. Um passo colectivo. Porque o Diogo às vezes vai buscar o irmão à escola. Porque o Vasco tem de abdicar de “tempo de mãe”. Porque o meu amor faz aquilo que poucos homens fazem… faz de mãe. Tornámo-nos mais flexíveis. Alargámos os dias. Os dias úteis, porque felizes.
Este último fim-de-semana foi passado a trabalhar. Mas, no sábado à tardinha, enfiámo-nos a correr no carro e fomos todos ao cinema. Como acabou tarde, prolongámos a loucura e fomos jantar fora. O improviso soube-nos pela vida. Os miúdos ficaram felizes, os adultos revigorados. No Domingo, levei-os comigo para o trabalho. A associação onde trabalho festejou antecipadamente o dia da Trissomia 21. O Diogo passou a tarde a trabalhar como voluntário e foi incansável. O Vasco conseguiu desafiar uma menina especialmente difícil para brincar. Indiferente ao facto de ela ser quase adulta e deficiente. Senti orgulho neles. Principalmente quando as minhas colegas nos elogiaram a notória cumplicidade. De todos os elogios que nos podiam ter feito, este foi sem dúvida o melhor. Somos cúmplices. Senti orgulho em nós. A empresa dos dias úteis.
 
 

sexta-feira, 18 de março de 2016

Rectas

(onde se percebe a importância das palavras)



Quando entrei para a universidade, ia morrendo ao ver a quantidade de cadeiras de linguística com que teria de alombar nos quatro anos seguintes. Teria de bom agrado dispensado a parte das “línguas”, ficando apenas com a parte das “literaturas modernas”. Essa era a minha praia. Do alto dos meus 18 anos, não percebia por que diabo tinha de continuar a estudar coisas que detestava, quando tinha finalmente chegado o momento em que podia escolher o que queria. É preciso que se diga que sempre detestei a escola e fui uma aluna bastante medíocre. Até entrar para a universidade onde, pela primeira vez, senti o prazer de aprender. O prazer de reflectir sobre o que tinha aprendido. O prazer de mostrar o que tinha aprendido. Excepto na parte das línguas, bem entendido. Vá… e o Latim, que arrastei a duras penas. Para compensar escolhi sempre cadeiras opcionais relacionadas com a literatura e as artes, outra grande paixão: Literatura Comparada, Literatura e Artes Plásticas, Literatura e Cinema…
Quando entrei para o mestrado de Literatura Comparada, fiquei chocada quando percebi que as línguas não me tinham abandonado por completo. Que mal teria eu feito para merecer aquilo? Desta vez, o suplício era mais subtil. Dois anos de seminários de Tradução, que aguentei estoicamente. Quer dizer, o estoicismo deu-me para o regabofe e caricaturas satíricas rabiscadas nos cadernos. Quando digo que me tornei adulta com o nascimento do meu filho Diogo não estou a mentir. No final do mestrado, fiz um seminário de Leituras Orientadas com uma professora que me obrigou a ler uma série de livros sobre a linguagem. Linguagem e autismo, mais concretamente. A minha tese era sobre literatura infantil. Nem sequer fiquei admirada. Nessa altura, já eu estava convencida de que a linguística era uma espécie de “mau karma” que me iria assombrar até ao final da minha existência.
Sempre pensei que a vida era muito irónica. Repleta de curvas tortuosas. Por mais que me afaste, volto sempre ao ponto de partida. À tradução. E só assim sou completamente feliz. No meio das palavras.
 

No outro dia, o Diogo pediu-me uma fotografia antiga para um trabalho da escola. Pouco esperançosa, fui vasculhar a única caixa com estranhos pertences que trouxe comigo. Ainda hoje não consigo perceber as razões desta minha escolha eclética e completamente aleatória. Mas encontrei uma fotografia de uma miúda novinha com um bebé risonho ao colo. Diz que somos nós. Encontrei também uma caixa com disquetes antigas. Todos os trabalhos que fiz na faculdade. E a minha tese. Por curiosidade, li os títulos desbotados das disquetes. Percebi que todos os trabalhos que fiz nos quase oito anos que passei na Faculdade de Letras estão, de uma maneira ou de outra, relacionados com a linguagem. Inclusivamente os trabalhos que fiz nas cadeiras de literaturas ou culturas. Não é estranho? Afinal a vida já não parece ser feita de curvas, mas antes de uma longa recta que eu nunca tinha conseguido vislumbrar.
Dias depois, li uma entrevista do Rentes de Carvalho no Observador (13/03/16). E fiquei a pensar:
“A maioria das pessoas vive com um vocabulário tão limitado. Mesmo que elas queiram ir mais fundo não têm palavras para pensar e então não podem sair da superfície. Vivem de slogans. Isso é trágico. Porque depois resta-nos imitar, querer imitar os outros. Achamos que eles vivem noutro mundo. Mas não. Aquilo que separa as pessoas é o facto de umas terem palavras e outras não as terem.”

segunda-feira, 14 de março de 2016

Renascer

(porque embora saibamos que é tudo cíclico,

nem sempre é fácil esperar que a roda volte a girar)



Ainda está bastante frio. A terra fica coberta por um manto gelado, à noite. Mas durante o dia o milagre dá-se. Já cheira a Primavera. As “perce-neige” anunciam o fim do Inverno. Finalmente. São as primeiras flores a nascer, no meio da neve. Acho que em português se chamam campânulas brancas de inverno. Tornaram-se as minhas flores preferidas, delicadas e resistentes. A Primavera tornou-se a minha estação preferida. Parece um filme da Disney. Assiste-se a um renascimento como nunca vi em mais lado nenhum. O sol, aqui, tem outro valor. Em breve, as fachadas das casas vão encher-se de flores. E as pessoas tornam-se mais risonhas. Vive-se uma espécie de euforia colectiva, que assinala o fim do Inverno. Dentro e fora de portas. No nosso corpo também. Às vezes, quase sinto que vale a pena passar por meses tão escuros e frios só para sentir esta alegria, com a chegada dos primeiros raios de sol.
Este fim-de-semana foi assim, mágico. Fomos passear, numa reserva de borboletas. No lago, os cisnes acompanharam-nos durante todo o percurso. Os miúdos voltaram a brincar no quintal, após meses ao abandono. O meu amor jogou à bola com o filho pequeno, enquanto o Diogo e eu ríamos à gargalhada escondidos. No badminton, safaram-se melhor. E no arco e flechas. O coelho voltou a correr no jardim. Filho grande passou horas a ler na rede. Começámos a fazer planos para os próximos trabalhos. É desta que restauramos a estufa e construímos um galinheiro. Para mim – rapariga de Benfica – este quintal ainda me parece um sonho. Para já, temos de pôr mais umas vedações. D. Fuas Roupinho descobriu uma nova maneira de se escapulir para os telhados vizinhos para perseguir os gatos. Mas, quando não está a montar a guarda, corre em círculos pelo quintal, numa alegria pateta que só os cães sabem ter. O Inverno pesou-nos a todos, aqui, em casa. Agora, renascemos.

 





 

quinta-feira, 10 de março de 2016

A caminho dos 40

(onde se redefine a rota e tudo entra nos eixos)


Não sei porquê, tenho dado por mim a pensar no passado. Tenho feito contas à vida, por assim dizer. Felizmente, têm sido mais contas de somar. A vida tem sido generosa comigo. Ainda restam algumas equações com uma ou mais incógnitas por resolver. Mas já são poucas. Sinto um desejo imenso de chegar aos 40 com a casa arrumada e arejada. Estou a meio da minha existência. Literalmente, tenho uma vida pela frente.

Sempre pensei que os 35 anos eram a minha barreira. O meu marco. Provavelmente porque nunca desejei viver até muito tarde, os 70 anos pareciam-me perfeitos como objectivo de vida. Quando os 35 vieram, fiz contas à vida. Nunca tinha tido problemas de saúde. Adorava o meu trabalho de freelancer em tradução e legendagem, onde até nem estava a ganhar muito mal. Tinha um casamento de 13 anos, onde apesar de faltar o essencial havia a cumplicidade de estarmos juntos desde a adolescência. Era a orgulhosa mãe de dois miúdos fantásticos de 10 e 5 anos. Estávamos a pensar adoptar uma menina de 12 anos, que já passava os fins-de-semana connosco. Tinha a família por perto e cada vez mais amigos, o que me parecia inusitado, “a meio da vida”. E no entanto… não conseguia ser feliz. Não estava completa, sentia que me faltava algo. Sentia uma espécie de vazio colado à pele. Uma insatisfação permanente. O estranho sentimento de que a minha vida não podia ser apenas aquilo, tão poucochinho. Não que o verbalizasse, até porque creio que não tinha bem consciência das coisas. Eram apenas sensações vagas, sentimentos inexplicáveis. Injustificados. Lembro-me de que a minha amiga Ana me dizia inúmeras vezes que não poderia continuar assim eternamente, mas eu não percebia bem o que ela queria dizer. Era como se vivesse com os olhos vendados, em piloto automático. Quando fiz 35 anos e tentei olhar para a minha vida de frente, não consegui vislumbrar grande coisa. Lembro-me de escrever no Facebook que ainda não tinha percebido bem o que andava aqui a fazer, mas que contava ter outros 35 anos pela frente para descobrir.

Todas as pedras basilares que compunham a minha existência começaram a ruir, uma após outra, nesse mesmo ano, pouco depois de fazer 35 anos. Parecia uma ironia do destino ter-me deixado atingir a meta que tinha imposto a mim mesma para, logo em seguida, me tirar tudo, sem sequer me dar tempo de perceber o que se estava a passar. Quando celebrei o meu 36º aniversário, dei por mim sozinha em casa com duas crianças. Uma casa que não podia pagar e crianças que não tinha como sustentar, visto ter ficado sem trabalho. Ou por outra, tinha trabalho, mas tinham deixado de mo pagar. Ainda hoje me devem milhares de euros. A família e amigos deram o apoio que puderam, mas depressa percebi que todos temos os nossos problemas e que ninguém ia conseguir ajudar-me a resolver os meus. Foi nesse momento que decidi emigrar, com os rapazes. Sentia um medo surdo, não conseguia explicar do quê. Uma ânsia de fugir, de me afastar o mais possível. Hoje sei que tinha razão. Nunca teria sobrevivido se tivesse ficado em Portugal.
Os anos seguintes, passei-os a reconstruir-me enquanto pessoa. Inicialmente às cegas, movida por puro instinto de sobrevivência. Aos poucos, as coisas foram entrando nos eixos. A dor deixou de doer, a saudade esbateu-se. Apareceu uma casa e, depois, outra. A Casa com que sempre sonhei (embora no meu sonho tivesse duas casas de banho). Apareceu um trabalho e, depois, outro. Um trabalho com tempo para o essencial, os filhos. Um trabalho onde faço a diferença. Um trabalho seguro que me permitiu voltar ao Meu Trabalho na tradução e legendagem, (desta vez, sem preocupações financeiras). Apareceu um único amor. O que tinha de ser. Mas primeiro despedi-me de um fantasma belga que me assombrou vinte anos. Nunca percebi por que o mantive vivo tanto tempo… até o ver sorridente a carregar-me malas e filhos rumo a esta nova vida. Há amores que nunca acabam, são eternos. São amores que se transformam, no dia em que efectivamente a pessoa certa irrompe na nossa vida. Apareceram também novos amigos. Os velhos nunca desapareceram, felizmente. Manteve-se o núcleo duro familiar, o resto dissolveu-se naturalmente com o tempo. A família, afinal, somos nós que a construímos. E os filhos cresceram. Quase 15 e 10 anos de gente boa. Tornei-me muito melhor mãe. Eles tornaram-me melhor mãe. Temos descoberto mundo juntos, no sentido literal e figurado.
O vento amainou finalmente este ano. O ano dos meus 40 anos. De vez em quando, ainda se ouve uma ventania longínqua. Nada que me faça mudar de rota. O caminho está traçado em linhas gerais, resta-me segui-lo. Talvez por isso, algures do fundo da minha memória, têm surgido histórias antigas. É engraçado ver como a minha visão do passado mudou, em tão pouco tempo. Agora, está mais estruturada. Bem resolvida. As relações familiares, as diferentes fases da minha vida, os estudos, os mil ofícios que experimentei, os períodos menos bons, as pessoas que cruzaram a minha existência, por uma razão ou por outra, os filhos que tive (e os que não tive). Principalmente, as escolhas que fui fazendo, ao longo dos anos, que condicionaram tudo o resto. Que me trouxeram até aqui. Tenho passado muito tempo a arrumar gavetas mentais. A organizar a papelada nos arquivos mortos do meu cérebro. A desempoeirar. Provavelmente enganei-me, quando tentei apressar a vida e antecipei o meu marco. Agora, quando faço contas à vida, o resultado parece-me óbvio. Não que tenha milagrosamente percebido o que ando aqui a fazer. Ou o que é suposto andar aqui a fazer. Mas percebi para onde quero ir. Quem quero levar comigo. E isso chega-me perfeitamente. Redefini os meus objectivos de vida. Redefini a minha vida, tout court. Aquela velha sensação de insatisfação permanente desapareceu. Foi substituída por um sentimento de realização pessoal, de “ser inteiro”. Talvez seja isto a felicidade, este aconchego que se traz no peito quando temos consciência do nosso mundo. Se não o exterior, pelo menos o interior. 

[ O meu amor fez-me uma surpresa, no outro dia. Comprou um disco rígido externo, onde gravou as fotografias que tinha. Estou longe de ter recuperado tudo o que perdi, mas recuperei algo que tinha propositadamente apagado, nos registos do computador moribundo: as fotografias que ele me foi tirando, nestes últimos três anos. Guardo sempre as fotografias em que estou com os rapazes, mas normalmente apago as dezenas que o meu amor me tira à revelia. Não sou uma criatura vaidosa, nunca gosto de me ver. Hoje, agradeço-lhe a paciência. Esta sou eu, pelos olhos do meu amor. Esta sou eu, a caminho dos 40. Esta sou eu, feliz. ] 


 

 




 
 




(não se preocupem que este foi o meu primeiro e último registo fotográfico egocêntrico…
ih, ih, ih!)

 

quarta-feira, 9 de março de 2016

Alienação parental

(onde se apresenta a figura do progenitor auto-alienado)



Em Portugal, a alienação parental está na ordem do dia. Na Bélgica, nem por isso. Aliás, quem passa pelo site dos alienados belgas depara-se com coisas tão bonitas como um pai a dizer que não reconhece competências parentais à mãe, que comprou uma mochila roxa “ameninada” para o filho de 10 anos. Ou uma madrasta a queixar-se que o marido é obrigado a dar uma pensão “total” ao filho, apesar de só o ver em fins-de-semana alternados. Enfim, não é de admirar que ninguém os leve a muito a sério. Mas em Portugal – dizia eu – a alienação parental parece estar na moda. E é triste um assunto tão grave estar na moda. Primeiro, porque retira credibilidade aos residuais casos de verdadeira alienação parental, cuja complexidade é difícil de destrinçar e de solucionar. Segundo, porque fornece uma série de conhecimentos que podem, posteriormente, vir a ser (mal) utilizados por gente mentalmente perturbada. Terceiro, porque alimenta a sede de histórias rocambolescas por parte da opinião pública. Um bocadinho à imagem das vagas de incêndios que dominam todos os meios de comunicação no Verão e que incitam inadvertidamente os potenciais incendiários a passar à acção. Neste caso concreto, a passar muitas vezes à “falsa acção”, por assim dizer.
Mas o que é, afinal, a alienação parental? Resumidamente, é a manipulação por parte de um progenitor para denegrir o outro aos olhos da criança e, assim, destruir os laços afectivos entre ambos. Contrariamente ao que se pensa, não é um fenómeno recente. Em meados dos anos 80, o psiquiatra infantil A. Gardner definiu a Síndrome de Alienação Parental (SAP), caracterizada por oito sintomas apresentados pela criança: 1) campanha de difamação e ódio contra o progenitor-alvo; 2) argumentação fraca e absurda para justificar esse sentimento; 3) ausência de ambivalência em relação ao progenitor-alvo; 4) reiteração de que a decisão de rejeitar o progenitor é exclusivamente sua; 5) apoio ao progenitor favorecido no conflito; 6) ausência de culpa quanto ao modo como trata o progenitor-alvo; 7) repetição de cenários e frases do progenitor alienante; 8) difamação não apenas do progenitor, mas também da sua família e amigos. Segundo Gardner, a SAP podia ser ligeira, moderada ou severa, segundo a quantidade de sintomas apresentados pela criança e a sua severidade.
Embora não haja fundamento estatístico, a alienação parental em Portugal é apresentada como um fenómeno em franco crescimento. Há cada vez mais divórcios, sendo que a guarda dos filhos ainda é maioritariamente atribuída às mães. O busílis da questão parece ser que os pais de hoje exigem ter um papel activo na vida dos filhos. E as mães têm dificuldade em aceitar este investimento parental, preferindo cortar o mal pela raiz. Deste modo, há uma promoção clara do fenómeno da “mãe alienadora” e do “pai vítima”, inicialmente promovida por Gardner.
O Brasil é o único país que reconhece a existência da SAP em tribunal, o que pode explicar o motivo pelo qual esta problemática extravasou o oceano e aterrou em força em terras lusas. Basta inserir o termo num qualquer motor de pesquisa e, segundos depois, temos uma panóplia de informação altamente fidedigna de inúmeros sites brasileiros, passível de ser lida e aplicada com destreza pelo progenitor mais básico. Suponho que será um dos malefícios da democratização dos meios de informação. O que as pessoas não sabem – dado que esse esclarecimento convenientemente não aparece nos textos ditos de vulgarização científica – é que a SAP não é reconhecida pela comunidade científica. Em 2012, 8 mil profissionais americanos opuseram-se à sua inscrição no DSM-V, o manual de diagnóstico que lista todas as doenças mentais. A síndrome definida por Gardner foi, então, claramente rejeitada enquanto perturbação de ordem psíquica, impossibilitando que os tribunais da família a utilizem para justificar a atribuição da guarda de uma criança ao progenitor vítima, em detrimento do alienado. Na Bélgica, por exemplo, há indicações para os técnicos que lidam com as famílias evitarem o uso do termo “alienação parental”, de modo a moderar o seu abuso e a promover uma óptica de resolução do conflito parental.
No entanto, não há dúvida de que a alienação parental existe. Não a síndrome – a "doença da criança" – mas o comportamento parental conflituoso. Infelizmente, há muitas crianças vítimas de alienação parental. E muitos pais impedidos de assistir ao crescimento dos filhos. Homens e mulheres. Contudo, segundo um estudo de 2003 do ministério da Justiça do Canadá, embora inúmeros divórcios apresentem conflitos, este é grave em apenas 10 a 20% das situações, verificando-se comportamentos alienantes em 2% desses conflitos graves. Quer isto dizer que a alienação parental, no máximo, ocorre em 0,4% das situações de divórcio.
Ontem foi dia da mulher. A tal mulher tantas vezes catalogada de alienadora. De típica alienadora. A tal mulher acusada de fazer uma completa lavagem cerebral aos filhos para os afastar definitivamente do pai, normalmente no seguimento de um divórcio que dizem nunca ter sido capaz de aceitar. Repito, não duvido que existam mulheres destas. Mas não tenho quaisquer dúvidas de que existem muitas, muitíssimas mais mulheres falsamente acusadas de alienação parental. Apenas porque são boas mães. Este é o seu único crime. Não podem ser acusadas de abandónicas, porque a sua presença e investimento na vida dos filhos são concretos. Não podem ser acusadas de negligentes, porque são progenitoras competentes. Não podem ser acusadas de maus tratos, porque é evidente que os filhos são bem tratados. Não podem ser acusadas de pedofilia, porque a sociedade ainda só aceita a existência de pedófilos homens. Não podem ser acusadas de violência psicológica, porque o bem-estar psíquico das crianças é notório. Não podem ser acusadas de substituir o pai dos filhos por outro homem, porque este se limita a ajudá-las a serem melhores mães. Não podem ser acusadas de perturbações psíquicas graves, porque continuam a gerir a sua vida com uma normalidade imperturbável. Não podem ser acusadas de serem más mães – simplesmente más mães – porque os filhos continuam a crescer saudáveis, felizes, equilibrados, com um bom desenvolvimento, autónomos, inteligentes, bons alunos, bem integrados, rodeados de amigos, cheios de actividades, com um conhecimento alargado do mundo e uma alegria de vida imensa. Por isso, a única acusação que se pode fazer a estas mulheres é a de alienação parental. Uma denúncia facílima de fazer, mas infelizmente quase impossível de provar. E ainda mais difícil de resolver, que é exactamente o que estes pais pretendem. Pais que, à falta de melhor, decidem conscientemente auto-alienar-se da vida dos filhos, apenas com o sórdido objectivo de aniquilar a mãe.
Os pais auto-alienados são seres inseguros, mal resolvidos, infelizes, poucochinhos na sua paternidade (se não mesmo na sua masculinidade). Pais que não conseguem aceitar a liberdade que estas mulheres ousaram conquistar para si. Pais que, na verdade, investem muito pouco na relação parental, porque não sabem ser pais. Nem querem aprender, cegos que estão pela ânsia de vingança. Os tribunais portugueses já acusaram muitos progenitores de alienação parental. Mas quantos foram acusados de falsa alienação? E não estou a referir-me a acusações que se revelaram infundadas e que até são, posteriormente, punidas por difamação. Estou a falar de pais que tentam concertadamente destruir a vida das mães, anos a fio, sem sequer se preocuparem com os danos que infligem aos filhos. Quantos já foram chamados à barra do tribunal para serem punidos por esta atitude? Só quem é submetido perfidamente a esta tortura quotidiana sabe o valor que se pode dar a um pedaço de papel legal que lhe garanta a paz de espírito. A sua e a dos filhos, que não são tidos nem achados nos conflitos de gente gravemente perturbada a nível psíquico.
Diz-se muitas vezes que as imagens não mentem, mas não há nada mais falso. O que não falta por aí são redes sociais pejadas de “crianças alienadas” que esbanjam sorrisos de felicidade quando estão com ambos os pais, o alienador e o alienado. Ou o falsamente alienado e a horda de cães-sabujos que o rodeiam. Porque as supostas alienadoras sofrem em silêncio, no intuito de minimizar os danos deste sofrimento nos filhos, mas os auto-alienados alimentam-se dos elogios públicos de gente convertida para a nobre causa da alienação parental que grassa nas redes sociais. Os registos fotográficos não provam nada. Os registos escritos também não, cada um terá a sua versão do problema e nós nada sabemos sobre a vida de todos eles para emitir opiniões avisadas. A única evidência inquestionável é o registo temporal. A passagem inexorável do tempo na vida destas mães alienadoras. Uma criança que cresce feliz, ano após ano, é uma criança muito amada. E uma criança amada é sempre, sem qualquer sombra de dúvida, uma criança bem tratada, nunca uma vítima do que quer que seja. Por mais que insistam em fazê-la passar por tal. Por mais que tentem fazê-la passar por tal... o que, bem vistas as coisas, é uma forma de alienação parental em si mesma, não?

sexta-feira, 4 de março de 2016

Quatro vantagens

(porque o desespero é grande

e ainda não se vislumbra uma luz ao fundo do túnel)



Embora este Inverno não tenha nada a ver com o horror de 2012, também não se pode dizer que esteja a ser clemente. Longe disso. Acho que, nos dois últimos anos, ficámos foi mal-habituados. Quer dizer, o problema é que a memória é curta e tem tendência para acreditar naquilo que mais lhe convém. Neste caso concreto, que talvez o tal do aquecimento global tivesse decidido começar aqui, pelas gélidas Ardenas. Mas, não, a inexplicada trégua parece ter terminado. De modos que voltámos às temperaturas invernais obscenamente baixas. Corriqueiramente baixas.
Eu – que me desloco no eixo das zonas mais frias desta terra fria – já começo a desesperar. É difícil acreditar que um país tão pequeno possa ter uma amplitude térmica tão grande. E ainda é mais difícil acreditar que eu tenha tido o azar de assentar arraiais na zona piorzinha. Diz que ali mesmo ao lado, em Liège, chuvisca. Em Verviers, onde trabalho, neva. Na Baraque, pertinho de nossa casa, as pistas de ski estão abertas. Toda uma alegria.
A modos que me pus a pensar nas vantagens disto. Tem de haver alguma, mesmo que remota. Depois de muito lembrar, ocorreram-me quatro:
1) Contrariamente à chuva, a neve não molha. Basta sacudir a roupa, quando se chega a casa. Contrariamente ao gelo, a neve não magoa o rabo. Também não escorrega tanto. Pensado bem, talvez seja um bocadinho mais humilhante cair num monte de neve…
2) Posso aproveitar a minha hora de almoço para ir às compras, no supermercado. Inclusivamente para comprar carne e peixe. Principalmente, congelados. O meu porta-bagagens transformou-se numa arca frigorífica móvel, altamente eficiente em termos energéticos (esta pode ser considerada a vantagem 2,5).
3) Os refugiados do sexo masculino, por bandas, também andam com uma espécie de burca. Por entre mil camadas de agasalhos, só se lhes vêem os olhos. O karma da liberdade feminina funciona com temperaturas negativas, portanto.
4) A neve permite tirar fotografias bonitas. O que é uma triste recompensa, quando se volta de um breve passeio com os olhos congelados, mas é melhor que nada.
 

quarta-feira, 2 de março de 2016

Audição

(e outras histórias)


Filho crescido teve hoje a sua primeira audição de órgão. Não deixa de ter a sua piada fazer um exame na igreja, rodeado por aqueles santos todos nas cornijas. E se ele precisava de protecção! O Diogo tem terror absoluto de tocar em público. O professor de trompete – que o conhece bem de outros Carnavais – dispensou-o de todos os exames, no ano passado. Acho que deve ter ficado traumatizado com a última audição, quando o Diogo saiu a correr da sala ainda o som ecoava no ar, branco como a cal, com falta de ar. Quer dizer, não sei se ficou mais traumatizado com a apneia do Diogo ou com a nossa reacção de gozo absoluto, porque sabemos bem o que a casa gasta.
[ Sempre que mencionamos este trauma do professor de trompete, lembramo-nos de um outro, bastante mais cómico. Para a história familiar ficou o dia em que o dito professor de trompete, homem bonacheirão dos seus cinquenta anos, foi como habitualmente lá a casa dar aula, ainda nós vivíamos em Malempré. Estava um dia chuvoso e eu tinha posto o estendal da roupa na sala. O senhor estava em amena conversa comigo, enquanto o Diogo ia buscar o trompete lá a cima. Nisto, foi-se aproximando cada vez mais do estendal... até que bateu com os olhos numas cuecas de renda vermelhas com umas fitinhas de cetim de lado. O pobre homem deu um pulo para trás, como se tivesse apanhado um choque. E ficou todo corado. Eu acho que também corei, mas depois fiquei cheia de vontade de rir com a atrapalhação dele. A partir dessa altura, passámos a ter o cuidado de meter o estendal na casa de banho, sempre que era dia de trompete, para não ferir a susceptibilidade do senhor. ]
A audição de órgão correu bem, embora o ensaio antes da chegada do director da Académie tivesse corrido bastante melhor. Pelo menos, o filho grande conseguiu respirar. E tocar, que era o que se pretendia. Engasgou-se um bocadinho no início da primeira música, mas a segunda saiu impecável. Eu – que não percebo rigorosamente nada de música – fico sempre espantada ao ouvi-lo tocar, após apenas cinco meses de aulas.
[ Desta vez, também fiquei espantada por vê-lo todo aperaltado para a ocasião. Na Bélgica, a partir do 10º ano, é suposto os alunos irem bem vestidos para as orais na escola. Os rapazes costumam levar uma camisa e casaco de fato. Por isso, nos últimos saldos, aproveitei para lhe comprar um casaco azul de gente grande na H&M, que me pareceu ficar giro com umas calças de ganga. A ideia não é transformá-los em “mini-homens”, é apenas ensiná-los a adaptarem a indumentária às diferentes ocasiões. Com esforço, lá o conseguimos convencer a vestir uma camisa e o casaco novo para a audição. Pensei que íamos fazer um trajecto de porta a porta, que ele só ia passar um bocado de frio na igreja. Enganei-me. No final das audições, fomos convidados a esperar lá fora pelo resultado das deliberações. O Diogo, que tinha a custo sobrevivido aos nervos, ia morrendo de frio. Está visto que vou ter de lhe comprar também um sobretudo de gente grande para as ocasiões… ]
Desta vez, não me esqueci da máquina fotográfica. Apesar de o Diogo me ter implorado por todos os santinhos que não o filmasse. Felizmente, os santos presentes naquela igreja estavam de certeza completamente congelados de frio e consegui filmá-lo, mal o apanhei sentado de costas para a audiência. Estava tão bonito! Bom…não consegui filmar grande coisa, é preciso que se diga. Lembrei-me da máquina, é certo. Até me lembrei de carregar a bateria, acto inédito. Mas esqueci-me completamente de esvaziar o cartão de memória, pelo que só deu para uns minutos de filme. Mas ficaram mesmo bem filmados, caramba! Os bancos da igreja têm uns apoios altos para o pessoal descansar os bracinhos enquanto reza, que dá um jeitaço para apoiar a máquina e evitar os tremeliques habituais. Portanto, bem vistas as coisas, a reportagem materna até correu relativamente bem. O único problema foi ter-me esquecido da bolsa da máquina fotográfica num banco da igreja, com o carregador lá dentro. Detalhe menor, que espero corrigir amanhã, mal a primeira rata de sacristia der o ar da sua graça. A culpa deste esquecimento foi da coisa pequena, que não pára quieta e me obrigou a procurar rapidamente um pouso seguro, num banco afastado.
[ O Diogo fez uma birra enorme, porque não queria que o irmão fosse à audição. Aparentemente era um convite-só-para-pais-não-extensível-a-irmãos-bicho-carpinteiro-com-cabelos-em-desalinho-e-fato-de-treino-todo-porco. Resumindo, não queria que fôssemos em comitiva, tipo família de ciganos. O meu rapaz gosta de se manter low-profile. Tentei argumentar que três pessoas dificilmente poderiam ser consideradas uma multidão, mas não consegui demovê-lo. “Só-para-pais”, grunhiu. Lá lhe expliquei que já estávamos a quebrar essa regra, dado que ele também tinha convidado o meu amor. Respondeu, muito senhor de si, que o meu amor era “uma-figura-paterna”. E eu encerrei a conversa, dizendo que ou íamos todos ou não ia ninguém, porque recusava-me a deixar o irmão em casa sozinho, como se fosse um cão sarnento. O Vasco é uma peste, mas nós gostamos dele assim. ]
O resultado finalmente lá apareceu, antes que enregelássemos todos. Pouco depois, começou a nevar (e ainda não parou…). O Diogo teve “Muito Bom”, mas ficou desiludido. Achou que podia ter feito melhor. Eu fiquei absolutamente deliciada com o que ele fez. O meu amor também. O Vasco ficaria de qualquer modo, mesmo que o irmão tivesse trocado as notas todas. É o seu ídolo máximo. Elogiei-lhe os progressos, no que ao controlo dos nervos diz respeito. E o casaco janota, claro. Aliás, não fui a única. O professor também o elogiou. E a loirinha mais velha que por lá anda, que ele vai mais cedo só para ouvir, também lhe deitou um olhar de admiração, que eu bem vi…

terça-feira, 1 de março de 2016

Charlies aqui do burgo

(porque um dia destes tenho de traduzir em palavras

 o conflito entre a minha filosofia de vida e a realidade do que vejo)