(onde
se abre a porta a uma pessoa e se encontra outra)
Faz
hoje um ano que abri a porta de casa para o meu amor entrar. Quando o vi,
achei-o lindo. E corei, como se ele me pudesse ler os pensamentos. Porque eu
tinha aberto a porta a um amigo.
Ele
entrou e sentou-se logo à mesa connosco, como se sempre ali tivesse estado. O
lugar que ocupou ficou para sempre dele. Jantámos bolonhesa de soja, mas não me
lembro da sobremesa. Provavelmente só havia fruta. E água. Porque eu tinha
convidado um amigo para jantar.
O
meu filho perguntou como nos tínhamos conhecido. Expliquei que tínhamos dois
amigos em comum: Jorge Luis Borges e Umberto Eco. Entretanto, juntaram-se
outros, mas sentimos uma ternura especial por estes.
Quando
os rapazes se foram deitar, continuávamos sentados à mesa a conversar.
Avisei-os que íamos dar um passeio grande pelos bosques com o D. Fuas. Há tanto
tempo que eu queria mostrar o céu estrelado de Malempré ao meu amigo!
Passeámos
durante horas com o cão. Percorremos a minha aldeia, subimos pelos bosques, fomos
até à estrada principal. Sempre a falar. Não me lembro bem do quê. Mas acho que
finalmente saímos do contexto da literatura, da oceanografia, da astronomia e
das viagens. Entrámos no contexto da nossa vida real, passada e futura, que até
então não tinha qualquer importância.
Regressámos
a casa e eu não queria que ele se fosse embora. Ainda tinha tanto para falar
com o meu amigo! Ofereci-lhe um café. O primeiro de muitos. Fomos alternando
com chá.
Não
demos pelo tempo passar até o meu filho crescido descer de manhã e ficar
especado a olhar para nós. “Ainda estão sentados à mesa a conversar?!”
Estávamos. E assim continuámos até a coisa pequena descer. O quotidiano chamava
por mim.
O
meu amigo percebeu que estava na altura de se ir embora. Fui acompanhá-lo ao
carro. E despedi-me dele com um beijo. Daqueles infantis, na bochecha. Ele
ficou a olhar para mim, com um ar meio perdido. Virei costas e encaminhei-me
para casa aos saltinhos por entre a neve. Antes de entrar, voltei-me para lhe
dizer um último adeus. Ele continuava exactamente no mesmo sítio, com o mesmo
olhar triste. Fiz-lhe um sorriso que me saiu do coração. Mais tarde, ele
disse-me que foi nesse momento que percebeu que estava apaixonado por mim.
Nessa
noite, o meu amigo voltou. Trouxe-me clementinas. Sentámo-nos à mesa a
conversar, como se ele nunca se tivesse ido embora. Quando os meninos se foram
deitar, avisei-os que íamos dar um passeio grande pelos bosques com o D. Fuas.
“Outro?!”
Nessa
noite, o céu estava finalmente estrelado. Os bosques estavam cobertos de neve.
Fazia um frio de rachar. Mas nós íamos alheados do mundo, de nariz no ar a ver
as constelações. Ver as estrelas através dos olhos de quem as conhece bem tem
outra magia. E falámos, falámos, falámos. E andámos, andámos, andámos. Até que
nos perdemos. Estávamos a andar em círculos há horas. Eu fiei-me no sentido de
orientação de marinheiro do meu amigo. Ele fiou-se no meu suposto conhecimento
do terreno. O cão fiou-se na inteligência humana. Mas nenhum de nós sabia o
caminho de volta. Decidimos seguir em direcção às luzes da auto-estrada.
Eu
estava cansada. Não era fácil seguir as passadas rápidas do meu amigo, num
terreno acidentado no meio do escuro, com botas da neve que me estavam
demasiado grandes. Mas não queria dar parte fraca. Até que escorreguei e caí
numa poça gelada. O meu amigo estendeu-me a mão para me levantar. Mal me pus de
pé, largou-me a mão. E eu fiquei tão triste que percebi que estava apaixonada por
ele.
Ao
chegar a Manhay, a alguns quilómetros da minha aldeia, D. Fuas parou na berma
da estrada. Estacou. Tive de o trazer ao colo durante o resto do caminho,
porque o cão estava meio morto.
Chegámos
a casa eram seis da manhã, o sol nascia. Quando o Diogo acordou, estávamos nós
sentados à mesa a beber um merecido café. “Mas vocês ainda aí estão?! Bolas,
devem ter mesmo muito que conversar!” E tínhamos. Tanto que, nessa manhã, ele
já não se foi embora. Passou o Domingo connosco.
No
final do dia, os miúdos brincavam no quarto, quando me levantei para fazer mais
um chá. Tinha o corpo moído dos quilómetros percorridos, das directas, das
horas passadas sentada à mesa a conversar. Deitei-me no sofá com a cabeça no
colo do meu amigo. Com a maior naturalidade do mundo. Mas, depois, senti-me pouco à-vontade. Se me levantasse podia parecer mal, afinal tratava-se do meu
amigo. Se ficasse podia dar uma ideia errada, e eu não queria intimidar o meu
amigo. Deixei de prestar atenção à conversa, concentrada em respirar como se
nada fosse, a pensar numa maneira de me sair airosamente daquela situação
embaraçosa. E, estava eu perdida nestas considerações, quando fui surpreendida
com um primeiro beijo.
Depois
de duas directas e, aproximadamente, 40 quilómetros. Há um ano atrás.
Que história tão, tão, tão bonita :) Obrigada, já trouxeste uns bons raios de sol para o meu dia. Beijinhos e (continuação de) felicidades.
ResponderEliminarOhhh... obrigada, Gralha! :)
ResponderEliminarBelo começo literário. Fez-me lembrar o meu :)
ResponderEliminarSó pode ter um desfecho feliz. Boa sorte!
Uau! Adorei :D
ResponderEliminarQuero conhecer o amigoamor, quando é que o trazes cá?
" Ver as estrelas através dos olhos de quem as conhece bem tem outra magia."
ResponderEliminarOh se tem... e eu que o diga!
Gostei tanto de ler esta história de amor (verdadeiro!).
felicidades