(vem isto a propósito de me ter deitado às duas e meia da manhã
e estar aqui que não me aguento, porque a idade não perdoa)
Os
nossos pais trabalhavam ambos na IBM e nós seguíamos o mesmo ramerram… colónias
da ACM e natação no Sporting. Tínhamos pais sem nome próprio, só apelido. Que trabalhavam "nos computadores", numa altura em que ninguém sabia muito bem o que isso era. E que viajavam. Vivíamos entre irmãs mais velhas e irmãos mais novos mimados.
Portanto,
tínhamos tudo para ser amigas ou talvez não.
Ela
era uma menina queque, eu uma maria-rapaz. Ela era uma girafa escanzelada, eu uma
bolinha minúscula. Ela era boa aluna, eu detestava a escola. Ela era incapaz de
ler um livro, eu devorava-os. Ela gostava do mainstream, eu tinha a mania que era intelectual. Ela vinha de uma
família normal, eu de uma família atípica. Ela tinha vestidos e saias e tops e sapatos bonitos, eu tinha calças
de ganga e t-shirts herdadas. Ela admirava a minha irmã mais velha e eu a dela.
Ela dizia que a alface sabia a terra, eu era vegetariana. Ela era super-protegida,
eu fui educada para o desenrascanço. Ela vivia em Loures, eu em Lisboa.
E,
assim, fomos tecendo uma amizade umbilical, que atravessou a nossa infância e
adolescência. Que irrompeu, intermitente e trapalhona, na vida adulta. Uma
amizade construída em campos de férias, Verão após Verão. Cimentada em fins-de-semana
passados em casa uma da outra, ao longo dos anos. Uma amizade que exigia horas
diárias ao telefone e longas cartas durante as férias. Uma amizade feita de idas ao
cinema nas Amoreiras e tostas de fiambre em Alvalade. Uma amizade feita de
leituras de diários para colmatar as pequenas falhas numa existência em tudo
partilhada. Uma amizade telepática que sabia prever quem estava do lado da
linha ao primeiro toque do telefone. E que reconhecia namorados nunca antes
vistos no autocarro. Uma amizade que nem um cadeado no telefone conseguiu
calar.
Foi
uma amizade feita de morangos com leite condensado pela noite dentro. Aparelhos
perdidos. Revistas brasileiras para adolescentes. Omeletes que a mãe dela fazia
como mais ninguém. Séries idiotas ao domingo à tarde, amplamente dissecadas de
madrugada. E discos do Leonard Cohen, que faziam medo quando ecoavam no
silêncio da minha casa vazia. Uma amizade em que partilhámos os primeiros
disparates, substâncias ilícitas, paixões, saídas à noite. Concertos em
Alvalade. Paus de incenso que não deitavam estrelinhas. Muitas, muitas, muitas,
primeiras vezes. Principalmente ataques de riso que não faziam rir mais
ninguém. E prantos compartilhados.
Nunca
chegámos a viver juntas num estúdio, no início da nossa vida adulta. Nem fizemos
as viagens todas com que sonhávamos. As nossas existências não seguiram os
planos cuidadosamente traçados quando tínhamos 12 anos. Páginas repletas de listas
de coisas que ficaram por realizar. A vida, a dada altura, afastou-nos um
bocadinho. Não sei bem porquê. E ficou um vazio que ninguém conseguiu colmatar.
Porque a nossa amizade era feita de uma irmandade assente na soma das experiências
vividas, que nos permitiram crescer. A pessoa que hoje sou, devo-o também a ela. Melhor
amiga oficial, mesmo que mais tarde o título nem sempre reflectisse a realidade dos
dias.
Tantos
anos se passaram e, às vezes, ainda penso: “Tenho de contar isto à Marta!”.
Esqueço-me que 2500 km e 30 anos nos afastam das miúdas que fomos. Meninas
patetas, adolescentes ridículas, jovens adultas cheias de certezas. Mães de filhos, com bastante menos certezas.
Mas,
quando nos encontramos, o tempo pára. Ou quando falamos ao telefone. Horas e
horas e horas a fio, como ontem. Porque há pessoas que não precisam de estar
fisicamente ao nosso lado para dividir a nossa vida. E chorar as nossas dores.
E rir das nossas alegrias. Numa lealdade feroz que nunca vacila. Para serem uma
peça essencial da nossa história sem a qual ficamos amputados.
Pode
o tempo encurtar e o espaço alargar. Pode a vida dar as voltas que der,
mobilada por muita ou pouca gente. Podemos ser quem somos ou outro alguém. Pode
tudo mudar. 180 graus e mais outros 180 graus, se preciso for. A minha amizade pela
Marta é uma constante. Uma amizade que atravessa vidas e quilómetros. A certeza de que estaremos sempre aqui uma para a outra.
Na
última vez que estive em Portugal, de todas as pessoas que reencontrei, de
todas as longas conversas que tive, de tudo o que vivi e senti, o que mais me
marcou foi ver os nossos filhos juntos a brincarem. O Vasco e a Matilde, cópias
conformes das crianças que outrora fomos. O meu mais novo e a mais velha dela,
com poucos meses de diferença e igual vida no corpo. A correr um atrás do
outro, numa Lisboa nocturna e amena. Os risos deles.
[ Parabéns
a ti, pela quarta vez. A Cris tinha razão, quando dizia que as pré-adolescentes
feiinhas se transformavam em mulheres lindíssimas. Tenho um orgulho enorme na
mulher em que te tornaste. E uma gratidão sem fim por ter acompanhado esse
processo. Bem sei que já ninguém diz isto, quando se tem quase 40 anos, mas eu
amo-te muito. ]
Pergunto-me se alguma amizade de infância chega à idade adulta com a plenitude e a simplicidade que imaginamos quando somos pequenos e tudo parece óbvio. Mas também isso não é o mais importante, o mais importante é o lugar que ocupam essas pessoas na nossa vida.
ResponderEliminarTambém tenho muitas dúvidas, Gralha... Mas, sim, o que interessa é a importância que esses amigos de sempre continuam a ter hoje nas nossas vidas.
ResponderEliminarA esses amigos/as diz-se que os amamos, sim!
ResponderEliminarEu cá digo, Gabzia, sem vergonhas. :)
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