(sonhei
que tinha recebido um e-mail tão ridículo que nem resposta merecia, mas não
podia desperdiçar o seu imenso potencial literário)
Ora,
então, muito boa tarde!
Aguardo
ansiosamente que te pronuncies sobre
a sentença, como prometido… até porque pensava que apenas os juízes podiam fazê-lo.
Sempre achei que a única forma que o comum dos mortais tinha de se pronunciar
sobre uma decisão jurídica era interpondo recurso. Agradeço-te imenso a
correcção.
Aproveito
também para agradecer a sugestão de reprimenda que tenho de dar a minha
advogada, que teve acesso à decisão do tribunal três dias depois de a acta do
julgamento ter sido lavrada. Uma pessoa a pensar que está a lidar com uma
profissional séria e vai-se a ver é uma malandra de primeira que tem acesso a
informações confidenciais sabe-se lá como. Prometo que vou seguir a sugestão e
passar a ter mais cuidado com estas questões legais.
Quando
à viagem de regresso dos rapazes, estou perfeitamente de acordo: o Vasco não
pode viajar de avião vestido de fato treino. É uma autêntica vergonha! A partir de
agora, passarei a mandá-lo de fato e gravata para estar à altura de tão selecto
meio de transporte. Agradeço o cuidado posto no envio do dito fato de treino,
que vinha tão bem engomado. Sou uma desleixada de primeira! Não só mando o
miúdo nesses preparos, como nem lhe sei engomar a roupa… pfff! Já agora, se me é permitido, gostaria apenas de esclarecer
que as meias número 23-26 que o Vasco trazia calçadas não me pertencem. Sei que
sou má mãe e que as meias que mandei não eram de marca… mas, pelo menos, eram
um 34 e não lhe apertavam os pés.
Fico
imensamente feliz por saber que os meus filhos passaram umas excelentes férias.
De facto, como bem dizes, a batalha contra o vento que travei para pedir uma
pensão de alimentos deve tê-los deixado completamente desnorteados. Pobres
crianças, que injustiça! Garanto que nunca mais os farei passar por esse
infortúnio. Graças a Deus, existe quem ponha o seu bem-estar em primeiro lugar,
quem lhes dê o amor e respeito que, manifestamente, sou incapaz de lhes
oferecer. Tenho a certeza de que a minha família agradecerá efusivamente quando
souber que os consideras como membros da tua própria família. Haja amor! Fiquei
muitíssimo espantada ao descobrir que a minha irmã do meio é bem-educada e
manda cumprimentos! Afinal, sempre há esperança nessa rapariga! De facto,
sinto-me muito triste e sozinha aqui, no exílio, longe dessa família unida,
como tão bem explicaste. Prometo fazer o que pedes e tentar aprender que agir
bem trás sempre bons resultados.
Aliás, também tenho de aprender a escrever correctamente com urgência! E a usar
o novo acordo ortográfico para poder justificar os meus erros (mesmo os
sintácticos ou semânticos).
Não
fazia ideia nenhuma que, no centro de Lisboa, se respirava ar puro do mar que
tão bem faz aos pulmões… Aposto que também abre o apetite e que é por isso que
os rapazes vão tantas vezes comer ao McDonalds! Ainda bem que vão intercalando
essa alimentação saudável com a sopa de gengibre com que curaste a constipação
do Diogo. Tens toda a razão, xaropes para a tosse e pingos no nariz são uma
medicamentação completamente desnecessária nos dias que correm. Eu e a minha
mania dos químicos! Por favor, manda-me já a receita. Já agora, a sopa de
gengibre também serve para a tosse alérgica ou é só para tomar quando o Diogo
estiver constipado?
Gostaria
de aproveitar ainda para perguntar qual o comprimento de cabelos mais adequado.
Certamente há uma medida ditada pela etiqueta que me escapa. Peço imensa
desculpa pelo desleixo! Aliás, fiquei morta de vergonha quando disseste que o
Vasco ia com as unhas enormes. Sacana do miúdo, pedi-lhe que as roesse no
avião, mas ele deve ter-se esquecido! Pelo menos, isso permitiu-te conquistar o
título de “melhor cortador de unhas do mundo”, que te deixou tão vaidoso! Por
mais que me custe, vejo-me obrigada a dar-te os meus sinceros parabéns.
Agradeço-te
a explicação dada sobre esse flagelo que tento infligir quotidianamente aos
meus pobres filhos. Graças a ti, fiquei a saber que a alienação parental é uma
das maiores variantes de violência psicológica. Prometo nunca mais ir por esse
caminho, de modo a evitar mostrar quem verdadeiramente sou aos olhos de toda a
humanidade (e até mesmo dos extraterrestres).
Dei
pulos de alegria quando soube que leste um livro inteiro em português com o
Vasco! Inteiro, hein?! Uau… deve ter sido um esforço inimaginável! E que
felicidade ao ver que ele trouxe mais dois na mala para eu ler com ele!
Infelizmente, não são o estilo de livro que o rapaz mais gosta, mas está descansado
que vou obrigá-lo, nem que seja ao estalo. Aliás, aproveito para responder ao
teu pedido urgente de informações: o Vasco vai passar a fazer duas horas
diárias de exercícios nos livros escolares em português. Acho que as oito horas
que passa na escola, mais os trabalhos que faz depois em casa, são claramente
insuficientes. É um preguiçoso! A partir de agora, vai passar a trabalhar 11
horas por dia e acabou-se a conversa!
Lamento
dizer que fiquei estupefacta com o grave problema que me colocas. O Vasco ainda
não sabe nadar bem?! As aulas de natação na escola são insuficientes?! Apesar
de saber que não o vês a nadar há mais de 8 meses, longe de mim duvidar. Pensava
sinceramente que ele já sabia… no ano passado, recebeu um certificado a dizer
que já conseguia nadar 50 metros. São uns gatunos! Fazes muito bem em não pagar
o 1.10€ por semana que eles exigem! É um roubo! Proponho meter os três professores
de natação que ele já teve aqui, na Bélgica, em tribunal. E, já agora, o
Ministério da Educação, por ser cúmplice nesta vigarice. Mas não te preocupes,
para além das 11 horas de estudo diárias, do solfejo, das aulas de violino e do
ballet, o Vasco vai passar a ter aulas de natação também fora da escola. Nem
que tenha de acordar às 6h da manhã… quem madruga, Deus ajuda, não é verdade?
No pior dos casos, tiro-o do ballet. Tens toda a razão, aquilo são influências
nefastas do Billy Elliot e mais nada! Escusas de te preocupar com míseros
detalhes de ordem financeira, quem paga integralmente quatro actividades,
também paga cinco! E o meu patrão tem de compreender que tenho de deixar de
trabalhar para poder acompanhar este marinheiro de água doce. É que se não fosses
tu, nem me lembraria do risco enorme que o Vasco corre por morarmos perto de um
lago. Só andam por lá patos, mas nunca se sabe se o miúdo não se lembra de se
mandar à água quando o calor infernal típico das Ardenas apertar!
O
próximo problema que levantas é, sem dúvida, o mais vergonhoso para a minha
pessoa. Sou obrigada a concordar contigo e a declarar que sou uma incompetente
a educar o meu filho mais novo. Tens toda a razão, não lhe sei passar as regras
mínimas. Eu tento, juro que sim… mas não consigo. Não tenho resposta para te
dar, desculpa. Não consigo explicar o porquê de o Vasco ainda comer com as
mãos, de meter os dedos dentro da boca e de falar com a boca cheia. E
esqueceste-te de referir os puns à mesa. É um javardo, não há outra palavra. Eu
até gosto do miúdo, mas é um autêntico porco. No entanto, lamento informar-te
que a educação extremosa que lhe tentam dar nesse sentido em Portugal não
surtiu grande efeito… Ainda ontem o vi tirar a cebola do prato com os dedos.
Felizmente, usou apenas dois dedos, como manda a etiqueta. Mas, pronto, sei que
é grave. Vou passar a flagelá-lo todos os dias à mesa. Olha… com um bocado de
sorte, vai chegar a casa tão cansado das 11 horas de estudo seguidas e das suas
inúmeras actividades, que adormece sem jantar e o problema fica automaticamente
resolvido.
Já
escrevi à ortodontista do Vasco a pedir explicações sobre a ausência do kit de higiene ortodôntico. Nunca tinha
visto nada de tão sofisticado, muito obrigada pela generosa oferta do
escovilhão! Não há dúvida que o mau profissionalismo grassa neste país! Peço
imensa desculpa pelo meu desleixo, pensava que esses escovilhões eram usados
apenas por quem tem aparelhos tipo caminho-de-ferro nos dentes. O do Vasco é
amovível e lava-se com a escova de dentes. Aliás, a ortodontista disse que o
Vasco devia mexer o mínimo possível no aparelho que une os dois dentes da frente
para evitar voltar a parti-lo e eu, parva, acreditei! Agora que estou
devidamente informada, prometo corroborar.
Embora,
a principal preocupação seja com o selvagem pequeno que tenho aqui por casa,
vejo que também há inquietação em relação ao Diogo. Concordo perfeitamente que
a conexão que ele tem com Portugal é
muito boa (e eu que estava com medo que o wifi não chegasse ao 3º andar…). Lamento
todas as injustiças, desrespeitos e desigualdades que ele é obrigado a sofrer
diariamente. Juro que vou esforçar-me por lhe fazer todas as vontades daqui para
a frente e mantê-lo sempre satisfeito. Só não entendo quando dizes que, se não
cumprir a minha palavra, ele terá de ficar aqui mais um ano. Desculpa a
burrice, mas pensei que o tribunal tinha decidido que os rapazes ficavam
entregues à minha guarda definitivamente. Tipo, até à maioridade. Se calhar,
tenho de reler aquela papelada toda para perceber melhor porque sou nitidamente
estúpida.
Não
é preciso zangares-te em relação à escolaridade do Diogo! Eu ainda não tinha
percebido que desejavas estar presente em todas as reuniões escolares, tendo em
conta que não falas a língua, não percebes patavina do que se diz e estás a 2500 km de
distância. Mas, a partir de agora, passarei a comunicar-te todas as datas, de
modo a poderes estar presente quando for para decidir se escolhe 4 ou 5 horas de Matemática
no próximo ano. Longe de mim querer tomar decisões desta ordem de importância,
capazes de comprometer para todo o sempre o futuro do rapaz!
Quanto
ao último boletim escolar do Diogo, nada feito. Lamento mesmo muito a minha negligência.
Os rapazes recebem 4 boletins escolares, mais 6 na música. Anualmente, mando 20
boletins escolares. Como há quase três anos que aqui estamos, já vamos em perto
de 60 boletins enviados… Por uma vez, não encontro um scanner que fiz. Sou uma despistada!
Obviamente, é motivo mais do que suficiente para escrever ao tribunal a
queixares-te. Tens toda a razão, factos graves deste tipo devem ser de imediato
notificados a instâncias superiores. Aquele bando de preguiçosos também
tem de tratar disso, para além dos casos menos graves de crianças maltratadas ou
abusadas. Já agora, poupa-me o trabalho e o selo e explica-lhes, de uma vez por todas, os motivos que te levam a não desembolsar
a verba que te condenaram a pagar. Parece-me que, agora, ficou perfeitamente
esclarecido o porquê de não pagares despesas médicas, escolares e
extracurriculares, tendo em conta a falta de profissionalismo bem patente de
todos os envolvidos neste país merdoso.
Fico
a aguardar novas instruções de vida, críticas diversas, informações adicionais
e rectificações de vária ordem, sempre no intuito de me tornar uma pessoa melhor
e uma mãe à altura da progenitura. Afigura-se uma missão quase impossível, mas
com a tua simpática ajuda talvez ainda um dia chegue lá…
Com
os meus melhores cumprimentos,
Amigo
Imaginário.
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