(porque
também há comércio sem dinheiro)
No
Domingo passado, fomos a um mercado gratuito em Marche-en-Famenne, organizado
pelo SEL - Système d'Echange Local. Já tinha andado a bisbilhotar os diferentes
sites do grupo e queria muito vê-los
em acção, antes de me inscrever no Sel da nossa região. Gostei do que li,
porque cada vez mais me identifico com a ideia de um sistema de trocas local de
bens e serviços que não envolva dinheiro e ponha em contacto os habitantes de
zonas limítrofes… mas uma coisa é gostar da filosofia do grupo, outra coisa é
gostar das pessoas envolvidas. Portanto, nada como fazer de cliente-mistério. E,
de facto, fiquei encantada com a organização, a amabilidade das pessoas, a tolerância,
a confiança no livre-arbítrio de cada um.
O
mercado gratuito é uma espécie de venda de garagem gigantesca, onde cada um
expõe produtos novos ou usados que já não quer e, em contrapartida, pode levar o
que quiser. No entanto, não é obrigatório fazer trocas, ou seja, pode-se levar
o que se precisar mesmo que não se tenha trazido nada para dar. A ideia é
evitar o desperdício, incentivar a recuperação e provar que é possível fazer
comércio sem usar dinheiro. Havia bancas de roupa, loiça, livros, brinquedos,
electrodomésticos, material informático, plantas, comida, etc. No final, o que
restar é entregue a instituições de solidariedade locais.
Obviamente,
a experiência deixou o Vasco todo animado… e o Diogo bastante constrangido. Apesar
de termos levado imensos livros, brinquedos e jogos da wii praticamente novos para
dar, o Diogo não se sentia bem em “trazer o que lhe apetecesse”. Dizia que não
era justo, que sentia que estava a roubar. “É como se fôssemos pobres!”, exclamava
indignado. Isto só prova que, a partir de certa idade, já estamos completamente
formatados para comprar, para gastar dinheiro. Trocar ainda é aceitável, mas
aproveitar uma dádiva é inconcebível.
A
vergonha do meu filho crescido foi passando à medida que ia encontrando livros
que lhe interessavam. Montes e montes de livros, que não pareciam ter muita
clientela interessada. Tanto ele como o meu amor só quiseram trazer livros. Eu ganhei
o dia quando desencantei umas Levi’s novas do meu número. Há tantos anos que
não tenho umas Levi’s! Ainda hesitei na banca dos candeeiros, mas acabei por
não trazer nenhum. Não achei justo estar a trazer uma coisa que podia fazer
falta a alguém, só para aproveitar os fios para fazer os meus próprios
candeeiros. O Vasco foi toda uma outra história… A coisa pequena tem sempre olho
para descobrir objectos estranhos nas vendas de garagem. Aliás, acho que o
Diogo acabou por transferir para o irmão a vergonha que sentia por estar a ensacar
livros como se não houvesse amanhã. Volta e meia, dizia-me: “Ó mãe, por favor, diz-lhe
para parar! Já viste o que ele tem na mão?!” Sem nunca se afastar muito de nós,
o Vasco conseguiu desencantar um manual antigo para aprender grego, uma pedra
com um relógio embutido, um sol e uma lua em gesso e uma arca de folha para
guardar os seus tesouros. Saiu de lá com um sorriso de felicidade estampado na
cara imunda.
Penso
que o Vasco andou tão entretido nas suas pesquisas, que nem ligou muito ao que se
passava à sua volta. Mas o Diogo já tem maturidade para perceber que, além das
pessoas que partilham a nossa filosofia de vida e que passeavam tranquilamente de
banca em banca, havia ali gente verdadeiramente necessitada. Perto de Marche há
dois centros de refugiados que aproveitaram a ocasião para levar gratuitamente objectos
de primeira necessidade. E eu, que ainda há tão pouco tempo também estava a
recomeçar uma vida do zero com duas crianças, sem dinheiro, sem nada, comovi-me
ao ver mulheres com bebés às costas e um alguidar na cabeça cheio de tachos,
toalhas e tupperwares. Arrependi-me de ter levado apenas os objectos que já não
nos fazem falta, nesta fase da nossa vida. Arrependi-me de não ter levado também
objectos que fizeram parte de uma outra fase da nossa história, que vou
guardando num caixote sempre que os consigo substituir por outros melhores,
mais novos. Foram coisas que me deram, aqui e ali, para desenrascar nos
primeiros tempos e que guardo com carinho, porque nunca me esqueço do jeito que
me fizeram. Por termos sempre tanto pudor em oferecer o que já não nos serve a
nós, perdi uma boa oportunidade de ajudar alguém. Mais oportunidades virão
certamente, pois inscrevi-me hoje no Sel’Ardenne. A minha conta está a
zeros, mas espero em breve começar amealhar rebentos, a moeda de troca do grupo,
oferecendo o meu tempo e conhecimentos. E tenho esperança de, em troca,
conhecer alguém que me possa ajudar a fazer uma horta. Na pior das
hipóteses, conheço pessoas novas... que também é um bem essencial que faz muita falta
e não envolve dinheiro.
Bolas, agora deixaste-me a pensar... saber que podemos ajudar e não o fizemos por uma qualquer razão meio sem razão... isso custa-me!
ResponderEliminarÀs vezes dou coisas que tenho a mais ou que fiz, e mesmo assim sinto que foi tão pouco...
Li isto e inspirei-me para escrever pequenas histórias dos meus tempos de trabalho na construção civil...
Hum... agora fiquei curiosa. Fico à espera desse post no teu estaminé!
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