(ou onde se depara com outro tipo de emigração)
No Sábado, enfiei-me com
os miúdos no carro a caminho da cidade do Luxemburgo. Estava tudo em alvoroço
para ir buscar a avódrasta ao aeroporto. Quer dizer, a alegria deles prendia-se
com a chegada da avó, a minha com a chegada das farinheiras. Vai tudo dar ao
mesmo, certo?
Desde que descobri que o
caminho pela autoestrada tem mais 50 quilómetros, vou pelas estradas nacionais.
Demoro o mesmo tempo, mas sinto-me mais ecológica. Estávamos quase a chegar, a
passar por uns túneis que odeio porque parece que estamos a ser sugados por um
buraco negro, quando toca o telemóvel. Estiquei o braço para o agarrar e passar
ao Diogo, convencida de que era a avó a avisar que já tinha aterrado. E vai de
bater com o pneu traseiro no lancil. Nada de especial, até porque não ia
depressa. No Luxemburgo é impossível, os limites de velocidade estão sempre a
mudar e dão com uma pessoa em doida. Seguimos caminho, túnel afora, mas
ouvia-se um “tac-tac-tac” plástico insistente. Quando pude, abrandei e parei na
berma da estrada, para ver o que se passava. Era o tampão partido que estava a
bater no chassis. Tiro o tampão, verifico toda contente que o carro não tinha
uma única beliscadura e preparo-me para arrancar. Nada. A caixa de velocidades
tinha bloqueado. A única mudança que dava para pôr era a 5ª. Comecei a ver a
vida a andar para trás. Estava parada na berma de uma via rápida, atrás do
sol-posto, sem assistência em viagem. A malta habitua-se a saltar de país em
país e esquece-se de que são efectivamente outros
países. Já lá vai o tempo em que os rapazes batiam palmas sempre que
passávamos uma fronteira. A suar em bica, decido que tínhamos de sair dali em
5ª. E saímos, não me perguntem como.
O Diogo procurou na Net a
morada da garagem mais perto do aeroporto do Luxemburgo e pô-la no GPS.
Faltavam uns bons quilómetros para lá chegar, mas decidi arriscar. É de referir
que este aeroporto é tipo a Casal Ribeiro, mas em grande. Não muito grande. E
fica no meio de uma zona industrial que, aos fins-de-semana, está quase deserta.
Deixei-os perto do aeroporto, no cimo de uma longa descida, com indicações para
esperarem pela avó e irem sentar-se no café a comer até novas instruções. É o
tipo de ordem que os meus filhos mais gostam: Avó+comida+mãe à distância. E lá
voltei a arrancar em 5ª, na descida.
Chegada à garagem, estava
fechada. Andei às voltas até encontrar outra descida, onde pudesse parar o
carro. Assegurei-me que os rapazes já estavam com a avó a enfardar. Liguei ao
meu amor para procurar contactos de garagens nas redondezas. Tentei os vários
números que ele me foi enviando, sem sucesso. Até que lá acabei por apanhar
alguém que me explicou que fechava tudo ao meio-dia, que antes de segunda-feira
seria impossível resolver o problema do carro. Decidi que o melhor seria tentar
voltar ao aeroporto, estacionar na estação de serviço mais próxima e voltarmos
todos de comboio para casa. Não sei bem como, consegui. Tive a sorte de apanhar
uma sincronização de sinais verdes e estradas vazias.
Quando estava a caminho
do aeroporto a pé, num descampado, ouço falar português. Eram dois homens que
tinha acabado de largar a obra onde estavam a trabalhar. Entrei no estaleiro e
meti conversa. Expliquei o que se tinha passado com o carro e perguntei se
conheciam alguma garagem por ali que ainda pudesse estar aberta. Não queriam
acreditar que tivesse vindo a conduzir em 5ª desde os túneis, à entrada da
cidade do Luxemburgo. E que ainda tivesse conseguido largar os miúdos de
permeio no aeroporto. Agarram-se de imediato os dois ao telemóvel, a tentar
encontrar uma alma que me ajudasse. A bem ou a mal. Foi o pobre Miguel,
mecânico do patrão, que teve o azar de atender o telefone. Pela conversa que se
seguiu, percebi que o mecânico-salvador já devia ter programa para sábado…
“Estás aonde, pá?!
Estamos aqui com uma senhora… uma menina!”
“É menina ou senhora? É menina, prontos!” “Olha, tens de vir cá agora! Podes, não
podes? Naquela obra ao pé do aeroporto. O carro da menina ficou com a caixa de
velocidades bloqueada. Deve ter sido alguma cena que saltou, eu não percebo
nada de mecânica! Podes vir cá ver o que se passa? Traz material, que podes
precisar. A ver que consegues desenrascar a menina, que tem os filhos com a avó
no aeroporto à espera. Pois, não é uma menina é uma senhora. Quando?! Agora,
c******! Depressa que estamos à espera e está aqui um calor do c******!”
Fomos esperar o
bem-aventurado Miguel para a estação de serviço. Os dois homens andaram à volta
do carro, a ver se descobriam o que se tinha passado. O primeiro ia olhando
para o relógio, com uma certa apreensão. Estavam à espera dele em França, ainda
tinha muito caminho pela frente. Mas, como era o único que percebia qualquer
coisa de mecânica, deixou-se ir ficando para ver se conseguia ajudar. Fez o
primeiro diagnóstico: “Sabe que isto não é bom… Não foi nenhum grampo que
saltou, é mesmo da caixa. Mas olhe que tem a parte de baixo do carro toda
enferrujada, c******! Onde é que andou metida com o carro?!” Lá lhes expliquei
que vivia nas Ardenas belgas, que este Inverno tinha ficado presa numa
tempestade de neve e que o gelo tinha demorado uma semana a descongelar, na
parte de baixo do carro.
E pronto. Palavra puxa
palavra, cada um de nós contou a sua história. O dito Miguel não havia meio de
chegar. Ainda lhe ligaram mais umas duas vezes, a ralhar pela demora. Em menos
de um nada, estavam a tratar-me por tu e as línguas soltaram-se. Ou seja, a
linguagem tornou-se mais brejeira. Bastante mais brejeira. Ao nível do Mercado
da Ribeira. Ficaram estarrecidos por ter emigrado sozinha com duas crianças.
“Mas és viúva?!” Lá lhes expliquei a maioria das mulheres sozinhas, em pleno
século XXI, era divorciada e não viúva. Tive de repetir várias vezes que não,
não tinha os meus pais comigo, nem os meus irmãos, nem os meus primos, nem os
meus amigos. “F***-**! Estás mesmo completamente sozinha!” Dito assim, até eu
estava capaz de começar a chorar, com pena da minha própria situação.
O primeiro teve mesmo de
se ir embora, mal chegou o desgraçado do Miguel. Depois de justificar o atraso,
o mecânico meteu de imediato mãos à obra. Assentou o macaco na gravilha e
perdeu-se debaixo do meu carro com um martelo improvisado. Fiquei só eu e o
António. Emigrado há 30 anos no Luxemburgo, mas com o pensamento em Portugal. E
o coração. E a alma. A minha história, tão díspar da sua, impressionou-o. Não
dependo de nenhum homem. Não tenho filhos com problemas na escola, nem em
situação de exclusão social. Não ganho rios de dinheiro, apesar do bom emprego.
Não tenho um carro imponente. Não conto os anos para a reforma, para poder
regressar “ao país”. Não faço parte de nenhum grupo de portugueses emigrados.
Não digo mal do país onde vivo, nem sinto que sou mal recebida. Não vou de
férias em Agosto para Portugal. Não vivo em contagem decrescente. Não tenciono
regressar à pátria-mãe. “Nunca mais?” “Não.”
“E nas férias, não voltas?” “Às vezes. Mas prefiro ir conhecer o mundo.
Há muito mundo, lá fora.”
Uma hora depois, o Miguel
deu o seu veredicto: a caixa de velocidades estava morta. O carro tinha mesmo
de ser levado para uma garagem. Agradeci efusivamente a ajuda. Percebi que os
teria ofendido que me oferecesse para pagar. A ajuda era de coração. “Farias o
mesmo por nós.” É verdade que faria, sem hesitar. Iniciei as despedidas para me
pôr novamente a caminho do aeroporto a pé. O António não deixou. Estava fora de
questão ir com os meninos e a avó de transportes públicos para casa. Ele levava-nos
de carro. Só podia levar três, mas de certeza que o Miguel também nos podia dar
boleia. O desgraçado do Miguel ficou atrapalhado, mas não recusou. Lá lhes
expliquei que tinha comboio directo até à porta de casa. Ficou decidido que nos
levariam só até à estação do Luxemburgo.
O António ficou
surpreendido quando viu “os meninos e a avó”, à porta do aeroporto. Devia ter imaginado
duas crianças pequenas e uma velhota de luto com um lenço na cabeça. Saiu-lhe
um rapagão maior do que ele, uma pequena criatura muito educada e uma mulher
ainda para as curvas. Metemo-nos todos a correr nos carros, que estavam a
entupir a saída do estacionamento. Felizmente a estação dos comboios não era
longe. Num carro e noutro, a conversa foi exactamente a mesma… os dias que
faltavam para as férias no saudoso Portugal. A família. O Verão. A praia. O
calor. Segundo o Miguel, o Luxemburgo só tem duas estações: o Inverno e a
estação de comboios. Quando chegámos, voltámos a agradecer. Trocámos números de
telefone e beijinhos. “Se precisares de alguma coisa, não hesites!”
A viagem foi caótica. A
linha estava cortada, tivemos de apanhar uma camioneta a meio. E esperar imenso
tempo, num apeadeiro perdido do Luxemburgo, pelo comboio seguinte. Valeu-nos os
croquetes, as chamuças e os travesseiros que a avó trazia para nós na mala.
Acho que nunca me senti tão emigrante na vida. Quando regressámos a casa,
voltamos a cair no belgicismo
habitual. O meu amor já tinha a mesa posta com vários pratos. E velas
perfumadas. Com o seu tom calmo, informou que já tinha ido a casa dos pais buscar
um carro, para poder levar o Diogo ao trabalho no dia seguinte. Que não era
preciso preocupar-me com nada.
No Domingo de manhã,
recebo uma mensagem do António a dizer que não tinha conseguido encontrar
nenhuma garagem onde pudessem desenrascar o arranjo do carro. Os portugueses
estão todos na recta final para voltarem a casa nas férias. Estou desconfiada
que 35% do Luxemburgo deve parar em Agosto. Nessa madrugada, o meu amor e eu
decidimos arriscar a trazer o Twingo para a Bélgica. Levámos os cabos para o
rebocar, caso corresse mal. Fiz quase 150 quilómetros sempre em 5ª, da estação
de serviço do aeroporto até ao meu mecânico. Abrandei o mínimo possível
e nunca me arrisquei a parar. Entrei e saí da autoestrada pela faixa de
emergência. Atravessei a rotunda em forma de amendoim da Baraque Fraiture a
direito. Tive mesmo de queimar um sinal vermelho, já quase a chegar a Vielsalm.
Cruzei-me com uma raposa. Quando estacionei o carro à porta do mecânico, suspirei de alívio. Estava a tremer. Eram
3h30 da manhã. Vim o caminho todo a falar com o Twingo. A recordar as aventuras
dos últimos três anos. Já vivemos umas quantas e nunca me deixou ficar mal. Deve
ter sido o mais perto que estive de ser crente, em 40 anos de existência ateia.
Funcionou.
Adormecemos a rir,
aninhados como sempre. A recordar no escuro as peripécias da fuga do Luxemburgo.
Desde o início do Verão, não têm parado de chover despesas inesperadas. Problemas
vários. A 2500 quilómetros a Sul, alguém decidiu deixar de pagar a pensão de
alimentos. A máquina de lavar morreu definitivamente. O carro está a ser ressuscitado. Acho que se pode dizer que ando em maré de
azar. Maré de azar financeira, entenda-se. Tenho saúde. Trabalho. Amor à
minha volta. Uma casa que devagarinho se transformou num lar. O companheiro de aventuras perfeito. E filhos felizes.
Tenho uma maneira descontraída de encarar as adversidades. Encontro sempre
personagens adjuvantes pelo caminho. Sempre. O exercício da gratidão repete-se, todas
as noites. Sou uma pessoa de sorte.
Guardo com carinho a última mensagem do António: “Es fiche”.
Guardo com carinho a última mensagem do António: “Es fiche”.
Emoção não te falta :)
ResponderEliminarGostava tanto que a minha vida fosse um mar calmo, Gralha!
EliminarUau!
ResponderEliminar;)
EliminarSempre a achei muito fixe, não sei se é a mesma definição da usada na outra mensagem...Como este ano faltaram na viagem à Dinamarca as peripécias da viagem do ano passado a Marrocos, tiveram que "apimentar" um percurso normal para nos alegrar como espectadores à distância! Bom fim de semana, grande Rita!
ResponderEliminarSim, a nossa pequena aventura anual desta vez foi com o pequeno Twingo, que ainda anda a pagar a factura da aventura que sofremos este inverno na neve! É o que dá encadear aventuras... :)
EliminarUm beijinho, Mariana.