sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Bom-dia, Lisboa!


(onde se escreve em tons sépia)



 

Esta semana, aproveitei as folgas no trabalho para ir num pulinho levar os rapazes a Portugal. Foi um pulo tão rápido que até já regressei a casa. Fica-me mais barato ir com eles em low cost, e voltar passados uns dias, do que mandá-los numa companhia de aviação que disponibilize hospedeiras de bordo para acompanhamento de menores. Com a vantagem de poder matar saudades. A desvantagem é que o Vasco vai o caminho todo de lágrimas nos olhos, agarrado a mim. Se tento desvalorizar e brincar, dizendo que já falta pouco para me ver livre dele para poder ir para a borga, chora copiosamente. Diz que já não o amo. Se o abraço e confesso que também vou morrer de saudades, chora ainda mais. É complicado dar a volta a isto, mas tento compensar com palhaçada para aligeirar o ambiente. Até os deixei comer comida de plástico... O Diogo vai sempre muito bem disposto. Diz que adora quando vou com eles, porque impera a parvoíce. Um dia destes prometo que cresço e me torno uma mãe séria. Ou uma mãe à séria, ainda não sei bem.


Demorei algum tempo a impor regras a mim mesma, nestas curtas viagens a Portugal. No início, tentava fazer tudo, ir a todo o lado, ver toda a gente. Voltava estafada, enervada e com a sensação de ter deixado imensas coisas por fazer. De ter falhado. Era um bocado inglório. Agora, viajo incógnita. Prefiro ver duas ou três pessoas, no máximo. Mas vê-las bem. Tratar de uma ou duas burocracias, sem me exaltar. O que der para fazer, dá. Caso contrário, não há problema nenhum, fica para a próxima. Há-de haver mais marés. O mais importante é aproveitar ao máximo o pouco tempo que tenho, sem tentar agradar a gregos e troianos. E, de facto, o tempo foi bastante reduzido, mas pareceu ter rendido muito mais. Tratei de burocracias. Aproveitei para comprar um novo portátil, com o meu programa de tradução e legendagem. Foi a loucura destas férias, embora saiba que é um bem de primeira necessidade, no meu caso específico. Andei a ver as montras num centro comercial para fazer tempo. Acho que não entrava numa Zara há anos. Estou tão habituada a comprar roupa para mim em segunda mão, que os preços me pareceram obscenos. Apesar de tudo, comprei umas calças de ganga da H&M… mas apenas porque emagreci e precisava mesmo. E porque custavam 4.99 euros, vá. Abasteci-me de queijos secos e farinheiras, claro. O Belga que me perdoe, mas desta vez troquei o vinho pelos enchidos. E comi-lhe os travesseiros pelo caminho, mas isso ele nem sonha. Tentei dar um beijinho rápido à D. Fernanda, enquanto íamos ver o mar… mas a minha mãe tem alma de cigana e alertou a minha irmã, cunhado e sobrinho. E teve de meter almoçarada pelo meio, obviamente. Menos mal, matei saudades de mais umas iguarias que não tenho por cá. Pronto... e da família. Custa-me estar longe da minha irmã, porque éramos muito próximas. Tenho saudades daquela cumplicidade gozona que tínhamos.


Desta vez, a verdade é que me apeteceu passar os dias colada à minha melhor amiga. Se a maior perda que os meus filhos sofreram com a ida para a Bélgica foram os avós, no meu caso, foram os amigos. Sinto muita, muita, muita, falta dos meus amigos. São amizades que têm décadas, impossíveis de substituir. É sempre tão bom pôr a conversa e as confidências em dia, com quem nos conhece como ninguém. A Ana também me deu ânimo para fazer algo que andava a adiar. Há quatro anos que não vasculhava as caixas que deixei à pressa na arrecadação da minha madrasta, quando deixei a minha outra existência para trás. Encontrei de tudo um pouco. Ficámos a ver desfilar memórias, eu e a Ana, que faz parte da minha vida há tanto tempo.


Enchi uma mala de livros, o que não deixou de ser estranho. Há uns tempos, comecei a sentir a falta de algumas coisas daquela vida passada. Já me conformei com o que desapareceu misteriosamente (para não dizer que foi roubado…). Com o que foi vendido, sem que soubesse. Com o que foi usurpado, sem vergonha. Dos objectos, não sinto qualquer falta. Das coisas de valor, também não. Muito menos dos meus móveis, que revi no tribunal em fotografias risíveis de uma  casa de família que era suposta acolher o meu filho. A única coisa que queria trazer eram os meus livros. São dezenas de caixas. É difícil escolher. Aos poucos, irão regressar comigo. O desapego que tive de abraçar abruptamente – que hoje agradeço, porque foi uma lição de vida – nunca chegou à literatura. Mas admito que não me custou nada dar uma série de livros à Ana. Ficaram bem entregues, é o que se pretende.


Surpreendentemente, descobri outras coisas que jurava ter deitado fora. Fiquei feliz por ter percebido que a minha loucura destrutiva, anos depois, revelou uma lógica absolutamente genial. Ficaram os diários mais importantes, cartas, documentos, pequenas recordações. Sem pensar muito, pus também na mala o único vestido de noite que tinha (sabe-se lá como acabou no meio dos livros… e ainda me serve), o meu livro das fitas de finalista na FLUL, a primeira mantinha do Diogo. E fotografias antigas. O meu primeiro filho nasceu antes da era digital, o que agora me parece simplesmente maravilhoso. Aqueles caracóis eram a coisa mais fofinha do mundo. Encontrei duas fotografias perdidas, que pus de imediato lado para rasgar e deitar fora. Entretanto, vieram-me parar às mãos imagens de uma Rita pequenina (um Vasco em forma de menina, juro) e dos pais da Rita, apaixonados, bem como dos avós maternos e paternos. E decidi trazer comigo aquelas duas fotografias que me causaram uma repulsa instantânea. Deviam ter escapado por um motivo. Uma para cada um dos meus filhos. Porque, por mais incrível que pareça, os pais deles também estiveram enamorados (ou, pelo menos, assim o pensaram um dia). E, na sua caixinha de memórias, o Diogo e o Vasco têm o direito de guardar uma imagem que prove que foram feitos com amor. Apesar dos pesares.

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