(onde se organizam as ideias)
Ando há imenso tempo para
escrever sobre a metamorfose que ocorreu na minha vida, porque não sei bem como
fazê-lo. Na realidade, o pretérito imperfeito talvez se aplique melhor. Ou o
gerúndio. Não aconteceu… vai acontecendo, aos poucos. É difícil falar de
mudanças interiores, que não foram causadas por nenhum efeito exterior
dramático ou urgente. É algo que vem de dentro, que vem de mansinho. Uma
espécie de força telúrica que se impõe inexoravelmente. Naturalmente. Que começa
por mudar a nossa visão do mundo. E, depois, a nossa forma de agir. Mas é um
movimento tão subtil, tão lento, tão certo, que mal damos por ele. São
processos subjectivos. Certezas inexplicáveis que criam raízes. Não somos nós
que impomos o que quer que seja. É algo que se impõe a nós. E, de repente,
parece certo. Faz sentido e dá sentido, numa tautologia perfeita que se
auto-alimenta. Não consigo explicar melhor.
Suponho que seja mais
fácil abraçar uma determinada filosofia de vida e, a partir daí, ir moldando o
nosso comportamento. Irmo-nos adaptando a algo maior do que nós. Como se
precisássemos de uma qualquer aprovação superior para adoptarmos mudanças
inferiores. Como se só o todo pudesse justificar as partes. Tendemos sempre a
etiquetar tudo, numa tentativa desesperada de dar nome e consistência a
conceitos abstractos. De simplificar. De tentar ver na prática como se deve manifestar
essa mudança, agarrando-nos à ideia falaciosa de que a práxis é medida única de
avaliação. A práxis firmemente ancorada numa teoria geral, bem entendido.
Por exemplo, alguém
decide que tem a obrigação de ser ecológico. Os motivos, neste caso, nem são
muito importantes. Cresceu nesse universo. Cresceu num universo paralelo.
Apaixonou-se por um ecologista. Por um filme, um livro, uma música. Um guru. E começa
por destralhar. Rapidamente adere aos 3 R's: reduzir, reutilizar e reciclar. De
permeio, adopta também o 4º R: restaurar. Mais o upcycling, que isto em “estrangeiro” até fica mais bonito. Ou o
armário-cápsula, porque é sempre bom usar expressões que causem alguma
estranheza e fiquem no ouvido. Já para não falar de invenções chocantes, como o
copo menstrual. Quando dá por si, levou a coisa ao extremo e ei-lo adepto fanático
do zero waste, a tentar
desesperadamente condensar uma década de lixo num frasco de compota reciclado.
Talvez o exemplo mais
abjecto sejam as mães. As boas mães, claro. As mães que deificam a função
materna. Que criticam, culpabilizam, doutrinam. Que se esforçam por fazer às
más mães o que estão terminantemente proibidas de fazer aos filhos, sob pena de
a polícia da parentalidade positiva lhes cair em cima. Mães que defendem
cegamente o parto natural, não medicamentado, não hospitalizado. O parto
humano, dizem. Mas que defendem com a vida, se preciso for. A delas e a dos
filhos. Que amamentam em “livre demanda” em exclusivo até passarem ao baby led weaning. Que não dão açúcares,
nem alimentos processados. O rabanete detém a pedra filosofal. Que advogam a
alimentação do paleolítico. E a educação também. Porque não dão ordens aos
filhos, pedem-lhes que cooperem. Porque não batem, nem castigam, nem gritam,
para não humilharem os filhos. Mas explicam. Explicam muito, estas mães. Até
explicam que é normal as criancinhas baterem nos pais, apesar de nunca terem
sequer apanhado uma sapatada na mão, porque é o “instinto animal”. Têm uma
paciência infinita conquistada logo ao amanhecer, graças às corridas, ao ioga,
à meditação. Aos alimentos naturais, biológicos, vegetarianos e ecológicos. Principalmente,
graças ao mindfulness. Só assim
conseguem educar pela positiva. Comunicar. Estimular. Trabalhar a auto-estima. As
emoções. Os afectos. Por isso, dormem todos juntos. Como o homem das cavernas,
lá está. O co-sleeping é que é
natural. E os quartos montessori, para onde as crias se mudam quando entram na pré-adolescência.
Acho que poucas pessoas
percebem isto, mas ser ateu tem muito mais a ver com rejeitar pensamentos
pré-formatados e desenvolver um espírito crítico do que não acreditar em Deus. Ser
ateu implica recusar filosofias de manada. Movimentos colectivos supostamente superiores.
Adesões massificadas. Doutrinas da moda. Ser ateu implica abolir toda e
qualquer forma de futilidade para ir ao cerne da questão. Num questionamento
permanente que tem como único objectivo aprender a formular novas perguntas. Porque
as respostas, no fundo, interessam muito pouco. Serão sempre temporárias. Até
que um novo véu se levante e deixe entrever outra forma de conhecimento. A
verdade hoje é uma, amanhã será outra. E ainda bem que assim é. O segredo está
exactamente na mudança. Na capacidade de adaptação. Somos seres cambiantes, num
mundo em constante transformação. Acho que, no dia em que parar de mudar, já
não estarei cá a fazer nada. Estarei pronta para morrer e, definitivamente, não
ir para o céu.
Tudo isto para dizer
que mudei. Não foi nada brusco. Súbito. Imposto. Colectivo. Muito menos, doloroso. O que só
prova que não é preciso sofrer para mudar. Não são necessárias experiências limite.
Nem adoptar uma qualquer filosofia de vida, que nos indique o caminho. Acho
apenas que cresci mais um bocadinho enquanto pessoa. Foi um conjunto de
pequenas coisas que, aos poucos, começaram a fazer sentido na minha vida
actual. Principalmente, na vida que quero ter no futuro. Eu e a minha família. Se
tivesse que traduzir essa mudança numa só palavra seria simplicidade. E não vem
de agora. Foi um processo que começou, creio, há cerca de um ano atrás. Mas que
só agora estou a conseguir sistematizar e compreender. Para já, duas grandes
vitórias. Duas vitórias colossais, permitam-me a total ausência de modéstia. A
doença autoimune que me tinham diagnosticado em Outubro não se confirmou. Ou
desapareceu, sei lá. Tive finalmente coragem para repetir todos os exames. E nem
sombra de poliartrite. Há muitos, muitos, muitos, meses que a dor nos ombros não
voltou a atacar. A tendinopatia calcificada não se curou por milagre,
obviamente. Mas é apenas isso, nada mais. E eu aprendi finalmente a
controlá-la, a driblá-la. Conheço os meus limites e não os ultrapasso, é muito
simples. O outro triunfo é igualmente estranho. Mas como não acredito em
milagres, convenci-me de que o meu corpo se tornou meu aliado. O bem-estar
psicológico reflectiu-se de forma inequívoca no plano físico: a estirpe cancerígena
do vírus do papiloma humano entrou em remissão espontânea. Estava farta de viver
com esta bomba-relógio e insisti com o meu médico para fazermos a conização. Expliquei-lhe
que estava finalmente pronta para tirar o que fosse preciso. E, após quase três
anos, os resultados vieram bastante melhores. O meu ginecologista fez uma
festa, eu continuava descrente. Mas as últimas análises vieram negativas. Nada
de nada. Zero VPH. As probabilidades estatísticas, nesta altura do campeonato, eram
ínfimas. Fiquei com uma sensação estúpida de superação pessoal, de capacidade sobrenatural
do meu corpo que, verdade seja dita, só tinha sentido quando tive os meus
filhos. A máquina está boa e recomenda-se, quarenta anos depois.
Estas
duas vitórias deram-me que pensar. Mas tenho a dizer que foi um pensamento algo
passivo, se é que isto faz algum sentido. Era como se houvesse um movimento
qualquer que se tivesse posto em marcha cá dentro, independentemente da minha
vontade. E o puzzle começou a montar-se, peça por peça. As coisas começaram a
fazer sentido. A encaixar. Comecei a mexer-me. E a gostar de me mexer. O corpo
desenferrujou porque deixei de ter medo dele. Emagreci naturalmente o que tinha
ganho com os tratamentos de cortisona. Acho que rejuvenesci. Tive coragem para
voltar à tradução e legendagem em part-time, porque agora sabia que não me iria
perder no processo. Soube perfeitamente manter os hábitos de sono que demorei
anos a conquistar. Ganhei financeiramente, claro. Ganhei sobretudo auto-estima.
É isto que eu gosto de fazer, que eu sei fazer. Trabalhar numa área que
adoramos não é bem trabalho, pois não? E, depois, o “trabalho verdadeiro”.
Quando o meu chefe se demitiu, senti-me algo ao abandono. Entretanto, o centro
de documentação ganhou vida própria. Ou será que fui eu que soube dinamizá-lo e
dar-lhe um novo rumo? Outras portas estão a abrir-se. E, para quem começou uma “carreira”
aos 38 anos, quando emigrou sozinha com duas crianças para um país estrangeiro,
isto é para lá de fenomenal. O mais engraçado é que os bons ventos invadiram
também a nossa casa. Dois anos depois da mudança, o velho casarão reflecte finalmente
a alma da tribo que o habita. O nosso jardim está lindo! A nossa estufa ficou pronta,
podemos começar a semear. E quem diz semear, diz tentar adoptar um estilo de
vida mais saudável. Ainda mais saudável. Ainda mais simples. Recuperar o que for
recuperável. Fazer o máximo que conseguirmos. Comprar o que for totalmente
impossível fazer. Mas, em primeiro lugar, procurar artigos usados. Em última
instância, comprar novo. Sem nunca nos desviarmos do princípio de que, na
verdade, precisamos de muito pouco. E que, para entrar, algo tem de sair
primeiro. Não são teorias da moda, não adoptamos tudo por atacado. Não somos
fundamentalistas. É aquilo que, neste momento, faz sentido na nossa vida.
Este
Verão tem sido complicado. Os problemas sucedem-se, uns mais graves do que
outros. Mas recusei-me a entrar na espiral destrutiva. Tentei resolver o que
pude com o bom humor e a despreocupação que já me caracterizam. Rindo-me muito
de mim mesma e das minhas desventuras. Arrancando gargalhadas ao meu amor.
Gozando tanto com os meus filhos que até eles já começaram a cultivar esta
capacidade de ridicularização de si próprios. A autodérision é uma característica deliciosa dos belgas. Não sei se
conhecem algum teckel… mas são cães que riem muito para os donos. Se, nesta
casa, até o D. Fuas consegue rir, nós também havemos de conseguir. Haja o que
houver. Desde que haja amor e isso há a rodos. Desde que haja simplicidade e
gosto de viver. E isso vai havendo sempre, porque nós fazemos questão. Com muitas
gargalhadas parvas à mistura.
Bom Dia, Rita! Long time no writing...não apetece ligar o computador e o telemóvel esperto regista sempre o post a dobrar (não carece...). Quando a descobri foi por um acaso, surgiu depois a admiração por quem, contra tanto e tudo, conseguiu o que tem vindo a descrever. Ao longo deste vir aqui "abrir a porta" vim a descobrir que, não obstante a diferença de gerações, há descobertas que nos unem por termos passado por processos de males semelhantes...Quando me foi diagnosticado o HPV ainda eu não tinha juntado várias pistas e chegado à conclusão que tinha uma doença auto imune, corroborada por um teste tão simples! Mais tarde pensei que problemas nos olhos e na cavidade bocal eram os únicos "males" que me tinham calhado...Ignorância pura: o que o stress e a constante busca de um mundo melhor, sendo eu também ateia e não procurando a ajuda superior, me causam fez com que eu hoje quase me veja obrigada a ser o mais contentinha possível, evitando ser tolinha! Mal me sobe a angústia o corpo dá sinal e mostra que tenho de procurar razões para o mundo não ser escuro e não conforme ao que eu desejava e, já agora, merecia! Parabéns a nós que nos estamos a descobrir e procurar que a cortisona não nos entre na vida...Beijinhos, Rita!
ResponderEliminarNão tenho bem a certeza, Mariana, mas acho que há experiências pelas quais temos de passar para percebermos melhor o mundo que nos rodeia e, principalmente, para aprendermos mais sobre nós mesmos. Nunca mudaremos o mundo, mas podemos perfeitamente mudar o nosso mundo. E nós próprios. É quanto baste, não?
ResponderEliminarBeijinho grande.