(num fim de tarde sufocante, num local inusitado)
Quase quatro da tarde.
Estava um calor abafado. Pesado. A estação dos comboios estava completamente
deserta. Rivage, dizia a placa. Um apeadeiro no meio de parte nenhuma. Um
enclave claustrofóbico entre dois rochedos monumentais. Meia dúzia de casinhas
perdidas no meio dos bosques. Uma aldeia fantasma, visitada apenas por
personagens insólitas de passagem. Tinham descido todos do mesmo comboio. Após
alguma hesitação, tinham atravessado todos para o outro lado da linha. Estavam
todos pacientemente à espera do comboio seguinte. Rivage, apeadeiro anódino onde
duas linhas e várias personagens se cruzam por momentos.
O rapazito rechonchudo,
saído de um livro da Enid Blyton. Os dois velhotes que coxeavam da mesma perna.
A senhora pequena com o livro aberto, como se não conseguisse parar de ler. A
rapariga muito bonita, muito arranjada, com vários sacos velhos de supermercado
a destoar. O moço ansioso, o único que parecia dominar os meandros do apeadeiro
de Rivage.
Dez minutos de espera
para estas seis personagens. O moço maltrapilho puxou de um cigarro e foi
sentar-se na guarita. Parecia saber que o próximo comboio não vinha de
imediato. A senhora do livro seguiu-o, confiante de que ele sabia o que fazia. E
voltou a mergulhar na leitura. Ou, pelo menos, assim parecia. A rapariga distinta
arrastou os sacos de plástico até à ponta da plataforma, distanciando-se de
imediato. Os dois velhotes consultaram o mapa. A intimidade e o claudicar
exactamente igual parecia indicar um laço de familiaridade. Mas, enquanto um deles
era muito branco, com fofos cabelos brancos, o outro era tisnado e quase careca.
Eram holandeses. E estavam meios perdidos. O rapazito de outros tempos, com uma cana às costas e malinha com o material de pesca pela mão, foi à procura de um
funcionário. Quando finalmente o desencantou, atrás de uma porta poeirenta,
tirou o chapéu para o cumprimentar. O maltrapilho arregalou os olhos. A senhora
sorriu. Os velhotes decidiram imitá-lo. Tinham ambos uma mala de lona a
tiracolo. Daquelas malas de qualidade duvidosa oferecidas nas excursões da terceira
idade para vender colchões. Ou baixelas. As malas eram diferentes, mas tinham
um baralho de cartas preto e encarnado bordado. Talvez fossem antigos jogadores
de póquer. Talvez fossem velhos
parceiros de jogo, o que explicaria a similitude dos gestos.
Ao longe, não se ouvia
a conversa do menino com o chefe da estação. Mas notava-se o enfado com que o
funcionário respondia laconicamente ao entusiasmo juvenil. O rapaz despediu-se
efusivamente, pôs o chapéu e voltou a atravessar a linha. Os velhotes quase apanharam
com a porta na cara e hesitaram em bater. O funcionário acabou por abrir e
sorriu ao ver dois adultos. Velhotes e estrangeiros. Uma dupla sem dúvida rara
por aquelas paragens inóspitas. O aprendiz de pescador aproximou-se da guarita
e ficou a observar a conversa dos jogadores. O chefe da estação parecia saber falar holandês. Num movimento claudicante espantosamente idêntico, os velhotes cruzaram novamente a
linha. O moço humilde olhou para o relógio, apagou o cigarro com os ténis
Adidas esfarrapados e levantou-se para deitar a beata no lixo. A rapariga dos
sacos de plástico, que seguia a cena ao longe, decidiu aproximar-se das outras
personagens, aparentemente mais bem informadas do que ela.
Ouviu-se um comboio distante. Uma voz anunciou pelo altifalante o destino. Marloie. Será que o chefe da estação passava ali o dia apenas para fazer aqueles anúncios? As estranhas
personagens entraram no comboio à vez, todas pela mesma porta. Sentaram-se todas no
mesmo compartimento. O menino fez um grande sorriso à senhora do livro.
- Minha senhora, boa
tarde. Desculpe incomodá-la… tem horas que me diga?
- São quatro e dez.
- Muito obrigado pela sua simpatia. Sabe, eu vou pescar...
- Já tinha percebido.
- Como? Pela cana de
pesca, não pode ter sido… está desmontada, dentro do saco.
- Não, pela caixinha do
isco.
- Ah… Quer ver a minha
cana de pesca, minha senhora? Posso montá-la para lhe mostrar.
- Pode ser… Mas vê lá
não te distraias. Em que estação tens de sair?
- Ainda não sei bem. Tenho de me informar junto do senhor controlador. Vou pescar em Hotton. E a
senhora, para onde vai?
- Para Barvaux.
- Barvaux tem um rio.
Já lá pesquei, com o meu avô.
- Acho que sim.
- E o que vai lá fazer
a senhora, se não é indiscrição?
- Vou buscar o meu
carro novo.
- Muitos parabéns pelo
seu carro novo, minha senhora! Mas não me lembro de ter visto uma loja de carros em Barvaux…
- Não é em Barvaux. É
quase em Durbuy, vou o resto do caminho a pé.
- Que estranho! A
senhora vai a pé buscar um carro tão longe…
- Tu é que falas de maneira estranha para um menino da tua idade e apanhas dois comboios para ir pescar atrás do sol posto!
O menino riu-se muito. Os velhotes
piscaram-lhe o olho, com um movimento simétrico sem falhas. A senhora elegante também deixou escapar uma gargalhada. O moço continuava a
olhar muito espantado para o rapazinho inglês do século passado. Certamente
tinha sido um apaixonado dos Cinco,
na sua infância. A senhora do livro suspirou. A vida dava sempre certo, embora os
caminhos fossem meio enviesados.
Obrigada por esta história. Adorei.
ResponderEliminarEu é que agradeço, Helena. Também gostei muito de a viver. :)
EliminarA senhora pequena que gosta muito de ler sabe contar tão bem os mais estranhos momentos da sua vida...Parabéns pelo carro novo e felicidades para o mesmo!
ResponderEliminarSe calhar é porque a senhora pequena lê muito que gosta tanto de narrar as suas aventuras...
EliminarBeijinho, Mariana.