(onde se percebe que não tenho mesmo sorte nos cabeleireiros)
Não
ia ao cabeleireiro há um ano, quando cortei o cabelo curto. OK… talvez não fosse exactamente curto,
mas foi o que me pareceu na altura. Por isso, decidi deixar crescer o cabelo
tão depressa quanto possível. O que, em bom português, significa não voltar a
cortar nem sequer as pontinhas. Bom, sejamos honestos: não ia ao cabeleireiro
há um ano porque, além de detestar a despesa supérflua e fútil, estou a ficar
um bocadinho farta das minhas aventuras nos malfadados cabeleireiros desta
terra. Mas, entretanto, a Câmara inaugurou um novo projecto: um cabeleireiro
social para as famílias mais desfavorecidas do conselho. Ou as mães solteiras,
como é o meu caso. Achei importante apoiar a iniciativa, mas não consegui
convencer o Diogo a experimentar. Bem argumentei que estavam a dar emprego a
duas mães de família desempregadas, que tínhamos de mostrar interesse… O
adolescente da casa recusou-se terminantemente a pôr os pés num cabeleireiro que
funciona nas instalações da Cruz Vermelha e que, portanto, “não é um
cabeleireiro a sério”. Tendo em conta que o Vasco precisa bem mais do que eu de
deixar crescer o cabelo, porque voltou das últimas férias em Portugal com o
corte à emigrante de leste dos anos 80, tive de me sacrificar. Enchi-me de boa
vontade e espírito humanitário e muitos saquinhos de paciência e mantras motivacionais e fé – principalmente, fé – e lá fui eu dar
uma nova oportunidade aos profissionais do ramo.
A
minha coragem começou logo a esmorecer quando liguei para fazer a marcação.
Atendeu-me um velhote. Quer dizer, atenderam dois velhotes, porque aquilo foi
uma espécie de conversa a três. Depressa percebi que deviam ser voluntários da
Cruz Vermelha, pois percebiam tanto da poda como eu. Ou seja, nada.
Eu: Bom-dia! Queria
fazer uma marcação para o cabeleireiro social.
[Primeiro velhote:
Pergunta o que pretende.]
Segundo velhote: O que
pretende?
Eu: Não sei bem… não
posso decidir na altura?
Segundo velhote: Não,
acho que não. É que dependendo do trabalho, ponho aqui mais ou menos horas.
Está a perceber?
[Primeiro velhote:
Pois, diz que tens apontar aqui o que a senhora vai fazer.]
Eu: Estou a perceber.
Acho que vou cortar só as pontas.
Segundo velhote:
Pronto, vou escrever “cortar”.
[Primeiro velhote:
Pergunta se também vai pintar.]
Segundo velhote: Também
quer pintar?
Eu: Ah… também pintam?
Então, nesse caso, não quero cortar, só quero pintar.
Segundo velhote:
Pronto, vou riscar “cortar” e pôr “pintar”. Mas olhe que não sei se dá…
Eu: Não sabe se dá para
pintar?
[Primeiro velhote: Dá,
dá! Pergunta que cor quer.]
Segundo velhote: Não
sei se dá para pintar sem cortar. Não sei se a menina deixa. Ela não gosta de
ver as pessoas saírem daqui mal-amanhadas, está a ver?
[Primeiro velhote: Dá,
dá! Pergunta mas é a cor.]
Segundo velhote: E que
cor é que pretende?
Eu: Se não der para não
cortar, não faz mal. Corto só as pontinhas. Pode escrever que é só para cortar
as pontas, sim? E a coloração.
[Primeiro velhote:
Pergunta qual é a cor.]
Segundo velhote: Quer
pintar de que cor?
Eu: Não sei bem o nome…
castanho arruivado. É importante?
Segundo velhote: Sim. É
por causa dos stocks. A menina tem de
gerir os stocks das cores.
[Primeiro velhote: Não
sei se há essa cor… que cor é essa? É ruivo?]
Segundo velhote:
Pronto, vou escrever aqui “castanho arruivado”. Mas não sei se haverá… Isso é
uma cor?
Eu: Deixe estar, não se
preocupe. Pinto com o que houver, não é grave.
Segundo velhote: Então,
vou escrever entre parêntesis que, se não houver, pinta de outra cor.
[Primeiro velhote: Tens
de pôr uma cor! Escreve “castanho”, vá...]
Segundo velhote: Pus
castanho, está bem? Para sexta-feira às 10h, sim?
Eu: Está óptimo,
obrigada. Até sexta!
[Primeiro velhote: Diz
que na sexta-feira de manhã não estás cá. Só cá estou eu.]
Eu: Eu percebi, deixe
estar… Então, até qualquer dia!
Na sexta-feira de
manhã, lá fui eu… cheia de medo do que iria encontrar. A “menina” parecia mesmo
uma menina. Mas era eficiente e despachada. E não falava mais do que o
estritamente necessário. Admito que não tenho grande experiência de colorações
em cabeleireiros, mas achei que estava a fazer um bom trabalho. Além de que
massajava cada madeixa que pintava, o que me deixou a flutuar numa nuvenzinha
de bem-estar. Por sorte, ainda havia um tubo do estranhíssimo “castanho
arruivado”. Disse-me que tinha de deixar a tinta agir durante 20 minutos e eu
deixei-me estar, de olhos fechados a relaxar. Foi fumar um cigarro e voltou.
Foi comprar um Ice Tea à máquina e voltou. Depois, pegou nuns papéis e
sentou-se ao meu lado a preenchê-los. Eu continuava de olhos fechados, mas
ouvia-a suspirar. Longos suspiros, um pouco exasperados. O tempo ia passando,
cada vez mais depressa. Achei por bem regressar ao mundo dos vivos e abri os
olhos. Tentar trocar um olhar com ela ou mandar umas mensagens telepáticas.
Nada. Calculei que os meus 20 minutos já deviam ter passado há muito. Olhei de
relance para os papéis e vi o carimbo do Ministério da Educação. Talvez fosse
boa ideia meter conversa…
Eu: Isso parece
complicado.
Menina: Ah, pois é!
Super complicado! Como é que eles querem que uma pessoa se lembre de coisas que
se passaram há tantos anos atrás?!
Eu: É para a escola?
Menina: São os papéis
da escola da minha filha…
Eu: Tem uma filha?!!!
Menina: Sim, tem 5
anos. Vão ao médico com a escola e mandaram estes documentos para eu preencher…
mas isto não são informações médicas!
Eu: Então?
Menina: São datas…
datas! Já não me lembro de nada!
Eu: E não pode ver no
boletim de saúde?
Menina: Perdi-o. Estou
tramada! Sei lá eu quando é que ela se começou a sentar sozinha!
Eu: Costuma ser por
volta dos 6/7 meses, não?
Menina: Ah, a senhora
lembra-se! Tem filhos pequeninos?
Eu: Não, tenho filhos
crescidos… mas tenho boa memória!
Menina: Então, próxima
pergunta: Quando começou a gatinhar?
Eu: 9 meses é uma boa
idade.
Menina: E a andar?
Eu: Aos 12?
Menina: Quando disse a
primeira palavra?
Eu: Aos 11.
Menina: A sério? Eu achava
que era mais tarde. Os seus começaram a falar com que idade?
Eu: 7 meses… mas os
meus foram precoces! É melhor pôr um bocadinho mais tarde. Vamos pôr idades
normais, não?
Menina: Sim, é melhor.
Eu: Vá… então, diga lá.
Vai ver que despachamos isso num instante.
Menina: Quando largou
as fraldas?
Eu: 2 anos.
Menina: E à noite?
Eu: 3 anos… não, não!
Com as meninas é sempre mais cedo, ponha 2 anos e meio.
Menina: Com que idade
fez o primeiro amigo?
Eu: Essa é fácil, 3
anos!
…
….
…..
……
……..
As perguntas
sucederam-se e eu fui inventando o melhor que pude. A menina-mãe abria os olhos
de espanto e ia acenando em sinal de concordância. Acho que ficou com uma filha
perfeitamente mediana. Descobri que sou tão boa a recordar datas que até me
lembro com que idade a criança foi operada aos ouvidos. Acredito que me consegui
despachar relativamente depressa. Felizmente, a tempo de ficar com algum cabelo
na cabeça. Infelizmente, fiquei ruiva. Completamente ruiva. Mas, uma vez
lançado o último suspiro e terminada a revisão das datas, a menina voltou ao
silêncio e eficiência anteriores. Insistiu para cortar as pontas estragadas… e
surpresa… cortou só mesmo as pontinhas, madeixa por madeixa. Nem sequer se pode
dizer que me tenha feito um corte. A verdade é que cobrou apenas a coloração,
que deve estar para lavar e durar… literalmente, apesar de ter custado a módica
quantia de 15 euros.
Como é óbvio, depois de
ver a mãe transformada em Jessica Rabbit, o meu filho Diogo jurou que nem morto
havia de o apanhar lá. Não fiquei muito surpreendida, confesso. O que vale é
que já vou tendo experiência em desastres capilares e sei que isto há-de acabar
por passar, mais cedo ou mais tarde. Hum…
cheira-me que, desta vez, há-de ser mais tarde que mais cedo. Serei ruiva nos
tempos mais próximos. E talvez nos mais distantes também. Lá longe, o meu amor
riu-se da minha nova aventura. Disse que, pela primeira vez, tenho o cabelo a
condizer com o meu temperamento explosivo.