quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Dos amigos

(porque a vida só faz sentido partilhada)


Tenho amigos que nunca me lembro de ter conhecido, de tão pequena que era. Tenho amigos que fiz na primária. E amigos com quem brincava na rua. Amigos que conheci na preparatória. Nas aulas de natação e nas colónias de férias. Tenho amigos de quem conheço a família como se fosse minha, com quem partilho memórias de toda uma infância. Como se fossemos irmãos. Tenho bons amigos que fiz no secundário. E amigos que começaram por ser apenas amigos de amigos. Tenho amigos que fui fazendo durante a licenciatura e o mestrado. Tantos. Tão importantes. Com quem cresci. Amigos que conheci na net e amigos que reencontrei na net. E que nunca mais larguei. Tenho amigos que vieram através dos meus filhos, mães de amigos ou professores. Tenho amigos que fui fazendo ao longo dos anos, nas diferentes profissões e trabalhos por onde passei. Colegas que se transformaram em amigos. E agora tenho novos amigos. Vizinhos que, aos poucos, se tornaram amigos. Novos e velhos amigos por esse mundo fora.

Os meus amigos não são todos iguais, heterogéneos. Nem podem ser todos alvo do mesmo rótulo. Vêm de quadrantes muito diferentes. Com percursos de vida diametralmente opostos. Uns de direita, outros de esquerda. Outros das extremidades, do centro e de coisa nenhuma. Amigos em grupo e amigos desirmanados. Tenho amigos que não têm estudos e que mal sabem escrever. Tenho amigos altamente qualificados. Tenho amigos solteiros e sem filhos. Tenho amigos com um rancho de filhos. Tenho amigos homofóbicos e homossexuais. Amigos ateus e profundamente crentes. Religiosos mesmo. Amigos que fumam ganzas e amigos-Polícia. Tenho amigos muito bem-sucedidos. E amigos a quem a vida infelizmente trocou as voltas. Tenho amigos que falam diferentes línguas. Mais próximos ou mais distantes, a distância no coração é a mesma.

Se me perguntassem qual a minha maior qualidade diria que é a capacidade de fazer amigos. Sou uma tagarela de primeira e meto conversa com facilidade. E, depois, gosto de manter as amizades que faço (para poder continuar a falar, obviamente!). Acho que cuido dos meus amigos. Não sou de escrever nem de grandes telefonemas, mas vou acompanhando de longe as vidas de uns e de outros. De vez em quando, pergunto pelos filhos, pais, avós, periquitos e empregos. As boas notícias que me chegam enchem-me de orgulho e felicidade. E fico triste quando as coisas não correm bem. Quando sou amiga, sou fiel e defendo os meus amigos como uma leoa. Apenas pelo princípio.

É óbvio que perdi amigos pelo caminho. Alguns afastaram-se. Ou a vida encarregou-se de os afastar. E eu terei certamente afastado outros. Todos deixaram saudades. Todos fazem falta. Mas, às vezes, é mesmo assim. É como os amores. Deixam de fazer sentido. Se é triste? Não, nem por isso. Ficam as memórias dos momentos vividos.

A três dias de partir para Portugal, penso nos meus amigos. Em como gostava de lhes dar um abraço sentido. De lhes dizer, sem pudores, o quanto gosto deles. De lhes agradecer por terem sido um muro de energias positivas que ficou na retaguarda e me deu confiança para avançar sozinha.
 



[ Tenho outro género de amigos que também merecem uma palavra… os meus amigos-livro. Aos quais volto muitas vezes. Onde encontro novas respostas a perguntas que nunca formulei. Que gosto de tocar, de cheirar de acarinhar. Onde me encontro sempre. Diferente. ]

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Festejar o Natal em Fevereiro

(gostámos tanto que para o ano há mais)


 
Este ano, acabámos por não festejar o Natal com a minha “família belga” porque fomos para Inglaterra. Depois, dois voltaram para a Rússia. Um mudou de emprego. Outro ficou doente. Três viajaram. Dois ficaram doentes. Outro começou um novo trabalho. E entretanto o tempo foi passando. Não é fácil reunir dez adultos e quatro crianças, que vivem em diferentes cidades (e países).

As nossas prendas continuavam no parapeito da janela, que é o local de arrumação provisória preferido dos belgas em geral (e da minha família em particular). Cada vez que íamos lá a casa, os miúdos queriam abri-las, mas nunca deixámos. Ainda faltava festejar o Natal. Mais importante do que as prendas era estarmos todos juntos, o que é raro.

Mas este sábado finalmente conseguimos! Quer dizer, conseguimos reunir a família quase toda. Um dos meus irmãos e a namorada tinham a desculpa de estarem em Moscovo a gelar feitos pinguins. E o meu irmão mais novo enganou-se e apareceu no dia seguinte.

Trocámos prendas como se fosse Natal. Mas com mais piada, porque não abríamos embrulhos há imenso tempo. Pusemos a conversa em dia. Corremos atrás dos miúdos. Os miúdos correram atrás do cão. Comemos um jantar digno de reis. E um bolo de bolacha de laranja português para sobremesa.

Acabámos a noite enroscados a ver o “Corcunda de Notre-Dame” da Disney que passava na televisão. Soube mesmo a Natal, caraças! Para o ano repetimos, que isto em Fevereiro tem muito mais piada.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Qual é o antónimo de check-in?

(resposta a. Check-out, resposta b. Filho doente)


 
Na 2ª feira, o Vasco recusou um pain au chocolat. E eu não precisei de mais nada para saber que ele estava doente.

Umas horas depois, em pleno jantar de aniversário de uma amiga, o Vasco dá um arroto tipo Shrek. Ainda estávamos todos a rir à gargalhada quando desata a vomitar em jacto. Pois… não foi um espectáculo bonito de se ver.

Quer dizer, continua a não ser um espectáculo bonito de se ver, tendo em conta que ainda não parou. Desde 2ª feira que está com febre altíssima e não aguenta nada no estômago.

Mantém o bom humor e o sorriso. Orgulhosíssimo por estar doente pela primeira vez na vida. Com direito a ida de urgência ao médico e medicamentos a sério. Cada vez que o termómetro sobe mais um bocadinho é uma festa. Passeia-se pela casa de pijama e alguidar na mão, já de boca aberta para “estar preparado”.

E eu aqui estou, em casa. Quando arranjei um novo emprego há menos de um mês. A diferença é que, na Bélgica, o chefe manda-me um e-mail a dizer para ficar descansada, que o importante é tratar do miúdo. Que fique o tempo que precisar. E a desejar-me coragem.

Decido aproveitar para ser mãe de filhos únicos.

Durante o dia (e madrugadas adentro), dedico-me ao Vasco. Com o alguidar sempre ao lado, vemos desenhos animados, fazemos pinturas, legos, jogos. Falamos muito. Trocamos mimo. Só nos zangámos uma vez esta semana, porque ele queria à força ir à aula de violino e eu não deixei. No início da noite, quando o Vasco sucumbe ao cansaço, sou só mãe do Diogo. E fazemos maratonas a ver os Jogos Olímpicos de Inverno. Percebo que o meu filho crescido ainda gosta de deitar a cabeça no meu colo.

Agora é rezar ao deus dos ateus para a bicheza passar. Sem contagiar mais ninguém. Porque o check-in está feito. Daqui por uma semana estamos em Portugal. Com o meu amor. Felicidade pura.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Balanço

(no princípio era o verbo, mas neste caso é mais o caos)


 
Após duas semanas no meu novo emprego, acho que já percebi mais ou menos quais são as minhas funções. Mas demorou, bolas! Parecia que todos os dias aparecia mais alguma coisa que era suposto fazer.

Felizmente, vou dividir o trabalho no Centro de Documentação e Comunicação da associação com uma psicóloga. Ela ficará encarregue da parte mais científica e eu dos aspectos mais literários. Entre as duas vamos dinamizar a biblioteca e actualizar a base de dados com novas informações, filtrar toda a informação recolhida a transmiti-la aos pais e profissionais, editar o jornal trimestral, gerir o site, o blog e o facebook, representar a associação em colóquios e campanhas de sensibilização, elaborar cartazes e comunicações. Ufa! Nunca fiz metade destas coisas na vida e não há ninguém para nos ensinar. Mas sinto-me estranhamente feliz e motivada. Desconfio que tem muito a ver com o local em si.

A associação fica situada num velho edifício coberto de hera que a Câmara cedeu ad aeternum. Era a sede de uma das mais antigas juntas de freguesia do concelho que acabou por ser extinta nos anos 70. Ainda tem uma prisão na cave que é utilizada como armazém. E, no sótão, há um esconderijo secreto debaixo do chão. Durante a nossa limpeza geral, encontrámos dezenas de velhas placas de números de portas em metal. E uma caixa de esmolas onde está escrito: “Ajuda discreta de Heusy”. Ainda está cheia de velhos francos belgas. Estamos constantemente a tropeçar em pedaços de história. Parecemos umas miúdas pequenas a quem deram livre acesso à caverna do Ali Babá.

Por enquanto, o nosso trabalho consiste em libertar o sótão onde nos vamos instalar. E quando digo libertar, estou a ser literal. O centro, neste momento, é um aglomerado de livros catalogados sabe Deus com que sistema hermético de catalogação, obras vindas daqui e dali, revistas, jornais, folhetos. Monografias. Teses. Artigos soltos tirados da net ao longo dos anos. Disquetes, cassetes, VHS, slides. Fotografias antigas. Montes de fotografias antigas. Carradas de fotografias antigas. Participações de nascimento, de casamento e de morte. Vidas inteiras espalhadas por armários e gavetas. Um rádio do tempo dos meus bisavôs. Retroprojectores, leitores de vídeo, projectores de slides, gravadores. Uma máquina que ninguém sabia para que servia, mas que foi ficando… até esta “legendadeira” desvendar o mistério: é uma máquina da pré-história da legendagem!

E, o meio de tudo isto, tábuas, loiça vintage, metros de tecido giríssimo, caixas com veneno para matar ratos (vazias!), parafusos e porcas, peluches, cestos de flores artificiais, uma árvore de Natal, maquilhagem, posters, microfones, dezenas de agrafadores, cadeiras desemparelhadas, telhas, potes de pintura, teclados e ratos e cabos. Um sem fim de tralha aparentemente inútil. Onde uns vêem caos e lixo, eu vejo potencialidades infinitas. É um problema que tenho desde que me conheço como gente. Sou detentora de uma imaginação mirabolante.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Um emigrante de palmo e meio

(post dedicado à Carla, minha amiga do coração emigrante em França,

cujo único defeito é amar o Tony Carreira de um amor assolapado

e cego e surdo… principalmente surdo)

 
Às vezes, penso que os filhos são a nossa cuspidela para o ar. A imagem não é lá muito bonita, mas é fiel. Tenho a certeza que sempre que dizemos “Se fosse eu…”, “Ah, comigo…”, “Filho meu, não…”, há algures no universo uma entidade maléfica que nos ouve. E que decide tramar-nos. Enviando-nos um filho que faz questão de contrariar as nossas firmes decisões prévias. Um filho que faz questão de nos sair, assim, meio torto. Enviesado. Só para nos pôr à prova. Só para nos mostrar que não nos devemos armar em espertos. Toda uma lição de vida, portanto.
 
A verdade é que o meu filho Vasco é a personificação do emigrante tuga, em palmo e meio de gente. Aquele emigra que eu sempre abominei quando ouvia falar uma mistura de português com francês, num atabalhoado de coisa nenhuma, por essas praias fora em Agosto.
 
A criatura a quem chamo filho fala emigrantês fluentemente. Essa é que é essa. Começa uma frase numa língua, salta para outra e termina na que começou. Eu exemplifico: “Maman, je crève de faim. Posso comer uma gaufrette? Aujourd’hui à l’école, comi uma pomme. Posso, mãe? S’il-t-plaît?”. É um desespero. É de bradar aos céus. Já percebi que perdi a luta contra a passagem constante de uma língua para a outra. Apenas peço que ele comece e termine uma frase na mesma língua. Simples? Nem por isso. Do alto dos seus sete anos, o meu pequeno emigra vai buscar a palavra que tem ali mais à mão nos dois dicionários que coabitam na sua cabeça estouvada. E pelo meio, de vez em quando, ainda vai inserindo um “What?!” ou uma citação do Star Wars, só para confundir ainda mais as coisas.
 
Mas não é só o aspecto linguístico que me assusta. É o pendor para aderir de imediato aos dois mundos. Uma adesão feita de gastronomia, cultura, música, geografia, literatura, cinema. Uma adesão feita de saltinhos entre um mundo e outro, que me deixa tonta e exausta. Ora me fala do Tio Patinhas, ora do Picsou. Adora bifanas e frites. Devora pastéis de nata e pains au chocolat. Mistura o 25 de Abril com a libertação da Bélgica pelas tropas aliadas. Insiste que nasceu em Lisboa, mas que é de Malempré. Diz “Stáre Wuárres”, porque em francês é assim que se diz. E lê muito bem em português, com um sotaque brasileiro que não faço ideia onde foi buscar.
 
E a última, a cereja em cima do bolo, o top dos tops na lista do tuga emigra que se preze… No outro dia, ouviu um anúncio de um concerto do Tony Carreira na TF1 e começou logo a trautear uma música. Daquelas bem conhecidas, que fala de saudades, da terra que ficou para trás, dos velhos pais, da infância miserável e da labuta diária para vencer no país que nos acolheu. Ó pá… alguém me tire deste filme, eu prometo nunca mais cuspir para o ar!

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

O Grande Fogo de Malempré

(mais conhecido entre nós por “Le Grand Feu”)


 
Na sexta-feira passada, celebrou-se em Malempré o tão ansiado “Grand Feu”. Tão ansiado que foi mesmo festejado antes da data convencional, na semana do Carnaval. Mas, quando a malta é festeira, a data é de somenos importância.

Enquanto a Europa se debate com as forças da Natureza, na Bélgica tem estado um tempo anormalmente ameno para esta época. Ou seja, ainda não estamos completamente soterrados na neve, como de costume. Por isso, antes que o Inverno a sério se faça sentir, aqui em Malempré decidimos enterrá-lo já. Porque esse é o objectivo do “Grand Feu”: enterrar o Inverno.

No final do dia, Malempré em peso juntou-se num campo ao lado da sala de festas da aldeia e queimou uma bruxa num grande fogo. Obviamente a bruxa era uma boneca, mas no meio das chamas parecia estranhamente real. Depois, enquanto o fogo crepitava, celebrámos o final do Inverno. A sala de festas foi animada por um DJ muitoooo profissional. Com direito a bola de discoteca, luzes psicadélicas e fumarada. Os miúdos estavam mascarados e fez-se uma espécie de baile de máscaras. Os adultos aproveitaram para jantar (frites, pois claro!) e pôr a conversa em dia.

No ano passado, o resultado do "Grand Feu" não foi o esperado: nevou até ao final de Maio. Espero que desta vez, seja bem melhor…
 
 
[ De qualquer modo, este ano a festa estava a cargo da escola. Os miúdos encarregaram-se da decoração. Os pais dividiram as diversas tarefas entre si: organização, compras, bar, cozinha, limpezas, etc. É cansativo, mas o lucro obtido reverte todo para passeios, teatros, exposições e cinemas pelos quais só teremos de pagar uma quantia simbólica. Educação comunitária no seu melhor. ]



 



sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Alguém pare o carrossel que eu quero descer!

(porque esta porcaria vai demasiado depressa para o meu gosto)


 
Estava esta alma em pleno trabalho de parto, naquela altura em que passamos algures para o outro lado, quando decidi que afinal não queria ter um filho. E gritei em alto e bom som que me queria ir embora, que não estava preparada para ser mãe e que, portanto, o melhor mesmo era não ter bebé nenhum. Ninguém me prestou atenção, claro… mas apressaram-se a dar-me a epidural. Menos mal.

Horas mais tarde, quando me trouxeram o Diogo a meio da noite e o puseram no meu colo, tive um ataque de pânico. Sim, senti um amor imenso. Um amor maior. Mas também senti que me tinham roubado o coração para todo o sempre. Percebi que, a partir daquele momento, eu era responsável por outra vida até ao fim dos meus dias. Não havia volta a dar. Estivesse ou não preparada, agora era a valer. Tinha entrado irremediavelmente no mundo dos adultos e tinha arrastado aquele ser minúsculo atrás.

A sensação de vertigem tem-se repetido muitas vezes ao longo destes quase 13 anos. A vontade de mandar parar o carrossel e descer. Porque não me sinto capaz de acompanhar o ritmo. Estar à altura da responsabilidade. Conseguir levar este barco a bom porto, sem deixar entrar demasiada água. Porque o desafio é constante e às vezes perco momentaneamente o Norte.

Quando começou a falar aos sete meses e nunca mais se calou. E, aos dois anos, quando anunciou que “acreditava no Senhor”. Quando aos três explicou que não tinha dito que estava surdo para “não ser diferente dos outros meninos”. Quando eu andava às voltas com um bebé colérico e me gritou com raiva que, já que não tinha tempo para ele, ia aprender a ler sozinho. E aprendeu. Quando o vi assumir o lugar ingrato de guarda-redes aos 6 anos, mal se aguentava nos patins. E, aos oito, quando uma médica nas urgências percebeu que era vítima de bullying na escola. Quando me agradeceu por o ter obrigado a andar no trompete, no final do primeiro ensaio na mini-banda, porque “sentia uma emoção dentro do peito”. Quando chorou a noite toda nos meus braços, com quase 11 anos, ao descobrir que o pai tinha saído de casa. E, pouco depois, quando me pediu para me “agarrar à vida” por ele, pelo irmão. Quando no outro dia me abraçou e me disse que era tão bom ver-me feliz e apaixonada.

Desde que entrou para o secundário, o meu menino crescido começou a crescer ainda mais depressa. Demasiado depressa. Já lhe disse para ir mais devagar, que eu não estou a conseguir acompanhar a pedalada, mas ele não me liga nenhuma. Suspira. Levanta a voz. Grunhe. Fala para dentro. Questiona. Resmunga. Fala pelos cotovelos, da escola, dos amigos, dos professores, de livros, de filmes, de música, de séries, de culinária, da namorada. Da namorada, uma e outra vez.

A vida gira à volta da loirinha. Das conversas que têm. Dos poemas que lhe manda e ela estranhamente não percebe (apesar de escolher os mais simples de Shakespeare na versão original). Do que fazem nos recreios. Do que escrevem no Facebook. Da nova foto de perfil dos apaixonados a darem um beijo na boca. Da prenda que temos de lhe ir comprar para o Dia dos Namorados. De que temos de passar no banco para ele levantar dinheiro. De que está nervoso para saber se ela gosta…

Nestes últimos tempos, voltei a sentir a já conhecida sensação de vertigem. Parece-me que estamos novamente numa daquelas descidas vertiginosas. Sinto o estômago colado às costas. Não tenho muito tempo para pensar. As novidades sucedem-se. O carrossel não pára.
 
[ Não sou a única, é preciso que se diga. O Vasco, no outro dia, meteu-se na nossa cama e fartou-se de chorar. “É namorada para lá, namorada para cá… ele já não gosta de mim! Tenho a certeza de que já não sou importante na vida dele. Ela é…” ]

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Nada é garantido

(onde se expõem receios e se faz uma viagem até aos anos 60)



Vem este post a propósito do referendo "Contra a Imigração em Massa" que 50,3% dos suíços aprovou na semana passada. É de referir que a afluência às urnas superou os 50%, o que também me parece elucidativo. A partir de agora, a Suíça terá não só um numerus clausus anual para a entrada de emigrantes da União Europeia, como limitará o reagrupamento familiar e as autorizações de residência. Por outro lado, vai repor o princípio da preferência pelo trabalhador nacional face ao “estrangeiro”. E mudar as regras do jogo, claro. Ou seja, alterar os benefícios sociais.

Não sei que reacções suscitou esta notícia em Portugal. Mas por aqui tem-se falado muito nesta questão. E o assunto foi apresentado pela comunicação social mais ou menos da seguinte maneira: “Para impedir a emigração em massa dos últimos meses, nomeadamente portuguesa, a maioria dos suíços decidiu votar a favor de um controlo mais apertado…”. E eu, que sou “estrangeira” e portuguesa, tremo só de pensar no efeito dominó que esta decisão poderá ter. Em Inglaterra, na Holanda e na Áustria, os partidos de extrema-direita alinharam logo no mesmo tipo de discurso. Le Pen já defendeu que a França devia seguir este exemplo. Que se os franceses fossem chamados a decidir, tomariam a mesma decisão dos suíços. Eu acho que ela tem razão, infelizmente.

Há pouca coisa que me assuste tanto como o nacionalismo, o fundamentalismo, o tacanhismo elevado ao extremo, o medo do “estrangeiro” só porque sim. Já dizia a minha avó, gente maluca é pior que ladrões. E esta gente que nos governa, que nos desgoverna, que nos manipula, que nos usa e que nos lixa do alto dos seus poleiros por essa Europa fora é completamente louca. E eu tenho medo deles.

A Bélgica não é a Suíça, o segundo país da Europa com maior fluxo de emigrantes. Contrariamente à helvética, a população belga não tem 23% de estrangeiros. O racismo não paira no ar. A desconfiança não espreita a cada esquina. Nem tudo são rosas, obviamente. Mas creio que, de uma maneira geral, posso dizer que as pessoas demonstram curiosidade e simpatia em relação à nossa vinda para a Bélgica. Empatia, diria mesmo. Sempre me senti muitíssimo bem acolhida e tratada. Os miúdos são alvo dos mais rasgados elogios.

Mas não sou parva. Sei que se usasse véu o tratamento não seria o mesmo. Se não falássemos perfeitamente francês e mais umas quantas línguas, não seríamos considerados iguais. Se não fizéssemos um esforço para nos integrarmos na sociedade, não seríamos tratados com a mesma gentileza. Se não lutássemos com tanta garra, eu por um trabalho e eles por serem excelentes alunos, as pessoas não teriam vontade de nos ajudar. Fundamentalmente, somos tratados em pé de igualdade porque nós próprios nos colocamos nessa posição.

Contudo, o caso muda de figura quando se trata do poder institucional. Não me esqueço da quantidade de papéis que tive de entregar para pedir a autorização de residência, na Commune, quando chegámos. Contrato de trabalho, diplomas, registo criminal, contrato de arrendamento, seguros… um sem fim de papelada. Demorei algum tempo a reunir toda a documentação.

Um dia, telefonaram-me da Commune a pedir para passar por lá. Precisavam de falar comigo sobre o meu pedido de residência. Quando cheguei fui levada para uma salinha, em vez de ficar na fila do guiché como sempre. Disseram-me que todas as juntas de freguesia tinham recebido ordens superiores para analisarem à lupa os processos que estivessem pendentes de espanhóis, italianos e portugueses. Que estavam a apertar a malha para não darem autorizações de residência indiscriminadas. Que já não era possível porque se previa um aumento exponencial da emigração devido à crise. A funcionária encarregue do meu caso, tinha ficado preocupada e lembrou-se de uma solução. Casar-me. Talvez eu tivesse um amigo que pudesse casar comigo só no papel… Hein?!?!? Pensei que tinha percebido mal e perguntei se estavam mesmo à espera que eu casasse com um belga qualquer só para obter o visto de residência como se estivéssemos nos anos 60?! Estavam.

Cingi-me às vias mais normais e, quase quatro meses depois, lá acabei por obter a autorização de permanência no território belga para mim e para os rapazes até 2016. Em grande parte porque tinha um mestrado e um contrato de trabalho de um ano com o Estado, como professora. E porque vivo num meio pequeno, rural, onde fui muito bem recebida e as funcionárias fizeram tudo para me ajudar. Mas tive de assinar um documento em como me comprometia, durante três anos, a não pedir nenhuma ajuda do Estado, apesar de ser uma cidadã da EU, apesar de fazer os mesmos descontos que todos os outros.

Agora, neste novo trabalho, preciso de uma equivalência dos meus diplomas para a Associação ter acesso a um subsídio para pagar o meu salário. E, mais uma vez, me deparei com gente disposta a ajudar-me, a tentar dar a volta ao texto. Mas tudo isto esbarrou com um muro institucional irredutível. Será muito difícil concederem-me equivalência porque não há nenhuma licenciatura em Línguas e Literaturas Modernas com o binómio de línguas Francês/Português. Esta licenciatura existe, tem exactamente a mesma designação, os binómios de línguas também existem… só não são é os mesmos. Ah… e as cadeiras do curso também não são exactamente as mesmas. Portanto, posso esquecer a equivalência do mestrado e, quanto à licenciatura, vamos lá ver… Nada é automático. O processo é moroso (cerca de 6 meses) e bastante caro (175 Euros). E nada é garantido, repetem-me à exaustão.

E é apenas isto que eu retenho: nada é garantido. O meu país falhou-me. Falhou a tantos de nós que a Europa está aos poucos a rever a sua posição em relação à emigração. Os direitos que tomávamos por garantidos estão a desaparecer. Direitos que os nossos avôs e pais conquistaram a custo. Um a um. Mas, hoje, nada é garantido.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Albireo na constelação do Cisne

(porque há prendas que são pura poesia)


Flores, perfumes e ursinhos de peluche são prendas que me dizem muito pouco. E celebrar datas convencionais ainda menos. Felizmente, o meu amor também abomina o romantismo forçado.

Foi neste espírito despreocupado que nos preparámos para passar o nosso primeiro dia dos namorados, há quase um ano atrás. Mas o meu filho crescido, antes de rumar a Portugal nas férias de Carnaval, intimou o meu amor a dar-me uma prenda no dia de S. Valentim. Avisou que, quando voltasse, queria vê-la. Portanto, era bom que fosse uma prenda de jeito. Tipo um chocolate em forma de coração. Afinal, era o primeiro namorado da mãe e estava decidido a fazer dele uma pessoa à altura das (suas) expectativas. Ri-me da exigência filial, sem suspeitar que o meu amor a tinha levado a sério.

E foi assim que recebi uma prenda inesperada. À noite, numa praia perto do Mont Saint-Michel, em França. O meu amor apontou para o céu estrelado e mostrou-me onde ficava  Albireo. Uma estrela dupla, amarela e azul, situada na constelação do Cisne. Pois que a partir dessa data, Albireo seria minha. Ninguém tinha reivindicado a sua propriedade e ele oferecia-ma. Tive direito a uma espécie de mapa do tesouro rabiscado num papel para poder orientar-me no céu e vê-la sempre que quisesse. De preferência no Verão, a minha estação do ano preferida, quando é visível a olho nu.

Tive de esperar para ver a minha estrela dupla brilhar no céu. Mal eu sabia que o Verão me traria Albireo e levaria o meu amor para longe. Quando ele partiu, só fiz uma exigência. Que estivesse à minha porta no dia 1 de Fevereiro à noite. Para voltarmos a passear pelos bosques de Malempré. Para nos voltarmos a apaixonar, uma e outra vez. Com o mesmo encantamento.

O meu amor veio, claro. E trazia com ele uma prenda especial. Uma prenda feita por ele, cuidadosamente, durante noites a fio. A prenda mais bonita que já alguma vez vi. Albireo pelas mãos dele. Alibireo aos olhos dele, com um pequeno coração no seu interior. Eu. Albireo na constelação do Cisne. Um cisne negro ou branco, a condizer com o meu lado lunar ou doce.
 
 

 

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

O Fanfarrão e o Gordo

(onde se faz o elogio da cegueira)

 
Dizem que a primeira impressão que temos de alguém é a correcta. Dizem que os primeiros minutos chegam para conhecermos alguém. Mas, às vezes, não damos o devido valor à nossa voz interior…
 
Há muitos, muitos anos atrás, entrei pela primeira vez no Liceu de Queluz. Não conhecia ninguém. Perguntei-me como seriam os meus novos colegas do 11º ano. Acabada de chegar de um intercâmbio de estudantes na Bélgica, pensei que provavelmente eu não teria muito a ver com eles. Mas estava decidida a fazer amigos, como sempre.
 
Ao chegar ao pavilhão onde ia ter aulas, deparei-me com uma cena grotesca. E algo me disse que aqueles eram os meus novos colegas. Um fanfarrão gozava com o gordo da turma, perante os risos idiotas dos demais. Depois de o achincalhar e de lhe bater com os livros na cabeça várias vezes, dirigiu-se ao caixote de lixo a imitar o seu andar desengonçado e atirou tudo lá para dentro: mochila, cadernos, livros. Senti um asco imenso por aquele ser, que sentia necessidade de humilhar um colega para ser alguém. Para repararem nele. Para conquistar a simpatia dos outros. E senti um enorme carinho pelo gordo, que levava aquilo tudo na brincadeira.
 
Hoje, dia 5 de Fevereiro de 2014, divorciei-me finalmente do fanfarrão.
 
 
[Quanto ao gordo da turma, transformou-se num homem lindo e muito interessante. É um dos meus melhores amigos e faço questão que esteja presente na minha vida. Para sempre.]

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

Há um ano atrás, um beijo roubado…

(onde se abre a porta a uma pessoa e se encontra outra)


Faz hoje um ano que abri a porta de casa para o meu amor entrar. Quando o vi, achei-o lindo. E corei, como se ele me pudesse ler os pensamentos. Porque eu tinha aberto a porta a um amigo.

Ele entrou e sentou-se logo à mesa connosco, como se sempre ali tivesse estado. O lugar que ocupou ficou para sempre dele. Jantámos bolonhesa de soja, mas não me lembro da sobremesa. Provavelmente só havia fruta. E água. Porque eu tinha convidado um amigo para jantar.

O meu filho perguntou como nos tínhamos conhecido. Expliquei que tínhamos dois amigos em comum: Jorge Luis Borges e Umberto Eco. Entretanto, juntaram-se outros, mas sentimos uma ternura especial por estes.

Quando os rapazes se foram deitar, continuávamos sentados à mesa a conversar. Avisei-os que íamos dar um passeio grande pelos bosques com o D. Fuas. Há tanto tempo que eu queria mostrar o céu estrelado de Malempré ao meu amigo!

Passeámos durante horas com o cão. Percorremos a minha aldeia, subimos pelos bosques, fomos até à estrada principal. Sempre a falar. Não me lembro bem do quê. Mas acho que finalmente saímos do contexto da literatura, da oceanografia, da astronomia e das viagens. Entrámos no contexto da nossa vida real, passada e futura, que até então não tinha qualquer importância.

Regressámos a casa e eu não queria que ele se fosse embora. Ainda tinha tanto para falar com o meu amigo! Ofereci-lhe um café. O primeiro de muitos. Fomos alternando com chá.

Não demos pelo tempo passar até o meu filho crescido descer de manhã e ficar especado a olhar para nós. “Ainda estão sentados à mesa a conversar?!” Estávamos. E assim continuámos até a coisa pequena descer. O quotidiano chamava por mim.

O meu amigo percebeu que estava na altura de se ir embora. Fui acompanhá-lo ao carro. E despedi-me dele com um beijo. Daqueles infantis, na bochecha. Ele ficou a olhar para mim, com um ar meio perdido. Virei costas e encaminhei-me para casa aos saltinhos por entre a neve. Antes de entrar, voltei-me para lhe dizer um último adeus. Ele continuava exactamente no mesmo sítio, com o mesmo olhar triste. Fiz-lhe um sorriso que me saiu do coração. Mais tarde, ele disse-me que foi nesse momento que percebeu que estava apaixonado por mim.

Nessa noite, o meu amigo voltou. Trouxe-me clementinas. Sentámo-nos à mesa a conversar, como se ele nunca se tivesse ido embora. Quando os meninos se foram deitar, avisei-os que íamos dar um passeio grande pelos bosques com o D. Fuas. “Outro?!”

Nessa noite, o céu estava finalmente estrelado. Os bosques estavam cobertos de neve. Fazia um frio de rachar. Mas nós íamos alheados do mundo, de nariz no ar a ver as constelações. Ver as estrelas através dos olhos de quem as conhece bem tem outra magia. E falámos, falámos, falámos. E andámos, andámos, andámos. Até que nos perdemos. Estávamos a andar em círculos há horas. Eu fiei-me no sentido de orientação de marinheiro do meu amigo. Ele fiou-se no meu suposto conhecimento do terreno. O cão fiou-se na inteligência humana. Mas nenhum de nós sabia o caminho de volta. Decidimos seguir em direcção às luzes da auto-estrada.

Eu estava cansada. Não era fácil seguir as passadas rápidas do meu amigo, num terreno acidentado no meio do escuro, com botas da neve que me estavam demasiado grandes. Mas não queria dar parte fraca. Até que escorreguei e caí numa poça gelada. O meu amigo estendeu-me a mão para me levantar. Mal me pus de pé, largou-me a mão. E eu fiquei tão triste que percebi que estava apaixonada por ele.

Ao chegar a Manhay, a alguns quilómetros da minha aldeia, D. Fuas parou na berma da estrada. Estacou. Tive de o trazer ao colo durante o resto do caminho, porque o cão estava meio morto.

Chegámos a casa eram seis da manhã, o sol nascia. Quando o Diogo acordou, estávamos nós sentados à mesa a beber um merecido café. “Mas vocês ainda aí estão?! Bolas, devem ter mesmo muito que conversar!” E tínhamos. Tanto que, nessa manhã, ele já não se foi embora. Passou o Domingo connosco.

No final do dia, os miúdos brincavam no quarto, quando me levantei para fazer mais um chá. Tinha o corpo moído dos quilómetros percorridos, das directas, das horas passadas sentada à mesa a conversar. Deitei-me no sofá com a cabeça no colo do meu amigo. Com a maior naturalidade do mundo. Mas, depois, senti-me pouco à-vontade. Se me levantasse podia parecer mal, afinal tratava-se do meu amigo. Se ficasse podia dar uma ideia errada, e eu não queria intimidar o meu amigo. Deixei de prestar atenção à conversa, concentrada em respirar como se nada fosse, a pensar numa maneira de me sair airosamente daquela situação embaraçosa. E, estava eu perdida nestas considerações, quando fui surpreendida com um primeiro beijo.

Depois de duas directas e, aproximadamente, 40 quilómetros. Há um ano atrás.