sábado, 29 de novembro de 2014

Há quanto tempo não falo de amor?

(é que às vezes ainda me custa a acreditar)


Há muito tempo que não escrevo sobre o meu amor. E é injusto. Porque ele faz-me imensamente feliz.

Porque nos apaixonámos há quase dois anos e eu ainda coro quando ele olha fixamente para mim. E todos os dias agradeço a sorte que tive por as nossas vidas improváveis se terem cruzado.

Porque ele regressou de Itália para me ajudar a atravessar uma fase mais turbulenta da minha vida e, seis meses depois, ainda não se foi embora. Não sei como.

Porque ele partilhou muitos barcos, muitas viagens, muitas aventuras, mas nunca tinha lançado âncora. E, agora, atracou num porto onde a bonança tarda.

Porque aceita que eu não quero conhecer família, nem amigos. Compreende que a passarinho ferido, não vale a pena pedir para voar.

Porque continua a abrir os braços todas as noites para eu me aninhar. E deixei de ter pesadelos pela primeira vez na vida.

Porque ainda gostamos muito de fazer aquelas coisas que os adultos fazem em privado. E, pelo sim, pelo não, continuamos sem cama, a dormir no chão.

Porque ele é a minha armadura. O meu escudo, a minha espada. Às vezes, o meu braço, quando a força me falha. Recebe sempre o embate inicial de tudo o que de mal me acontece. Toma como seus os meus inimigos. Indigna-se mais do que eu. Procura soluções, mas primeiro dá-me muitos beijos. E chama os bois com nomes que me dão sempre vontade de rir.

Porque se levanta para dar festinhas ao D. Fuas sempre que o vê a abanar o rabo, a olhar docemente para ele.

Porque fala cada vez melhor português, com um sotaque que me derrete. Porque conhece o país, a história, a política. A triste economia. Pede para ouvir Toquinho e Vinícius. Cita Pessoa de cor. Devora bolo-rei, ovos escalfados com ervilhas, açorda de camarão e feijoada. Só é pena gostar tanto de farinheira como nós.

Porque ele roubou o coração do meu filho pequenino. E construiu um mundo só deles. Porque faz questão de assistir às aulas de ballet e de violino. Faz-lhe chocolate-quente às escondidas. Leva-o ao médico. Diz orgulhoso que a directora da escola o trata pelo nome. Porque inventa ditados palermas e ensina os números negativos. Fica horas a ver vídeos antigos no Youtube. Porque dá três nós nos atacadores. E ri quando o Vasco dá puns no colo dele.

Porque quando estou de folga, ele levanta-se sempre num ápice para levar o Vasco à escola. Enquanto eu durmo mais um bocadinho, combina roupas, faz lanches, verifica dentes lavados, sacos de ginástica e ajuda a escolher os melhores “Gogos” para combater nesse dia no recreio.

Porque é o melhor exemplo que o meu filho grande podia ter. Um porto seguro no meio da tempestade típica da adolescência. Que sabe levantar a voz e zangar-se a sério. Mas que não se importa de mostrar as suas fraquezas. Porque gosta de o ouvir tocar trompete, mesmo quando toca mal. Porque o ouve pacientemente discorrer sobre tudo o que se passou na escola, do primeiro ao último toque. Porque o defende sempre que recebe um mau resultado ou tem um ataque de preguiça e foge às tarefas diárias. Ou quando se recusa a vestir o casaco, apesar de estar um frio de rachar. Porque se lembra de lhe lavar as calças preferidas. E nunca se esquece de mentir quando o Diogo lhe pergunta se tem o cabelo espetado. Porque lhe cede sempre o último pedaço de carne. E sabe o nome de todos os seus amigos.

Porque se levanta de manhã e nos prepara pequenos-almoços de telenovela. Aqueles pequenos-almoços de hotel que ninguém come. Excepto nós. E quando vai ao pão ao fim-de-semana traz sempre um mimo para cada um: gaufre de alperce para mim, chocolate branco para o Diogo e chupa-chupa de chocolate de leite para o Vasco.

Porque adora passear sozinho comigo, de mão dada, à volta do lago ao entardecer. Ou à noite, para vermos as estrelas.

Porque faz compras, cozinha, limpa, aspira, lava, engoma e cose em perfeito pé de igualdade. Porque nunca discutimos sobre dinheiro. Ou sobre a falta dele. Sobre quem faz-mais-o-quê. Porque a rotina estabeleceu-se espontaneamente, sem nunca termos pensado muito sobre isso. E é tão natural que quase me esqueço que é uma raridade.

Porque não resmunga quando volto dos nossos passeios com paus ou pedras para fazer qualquer coisa em casa. E guarda com o maior dos carinhos tudo o que faço.

Porque passado este tempo todo, ainda nos vamos deitar às 2 da manhã, porque estivemos a noite toda à conversa. E às vezes continuamos no escuro até adormecermos. Porque também somos amigos.

Porque trocamos mensagens e telefonemas para não dizer coisa nenhuma. E no fim ele diz “Beijinhos” e eu rio-me. Porque ele ainda me chama “Raposinha” e “Petit Coeur”.

Porque cada vez que ele está concentrado a trabalhar e eu passo por trás, não consigo deixar de lhe dar um beijo no pescoço. E um abraço.

Porque adoro mimá-lo. E ele adora surpreender-me com novos passeios.

Porque gostamos muito de fazer programas a quatro, mas também adoramos enroscar-nos no sofá a ver uma série. Ou um daqueles filmes antigos de que ele tanto gosta.

Porque as minhas colegas todas o adoram e estão sempre a dizer: “Esse homem ama-te mesmo. Olha só como ele cuida dos teus filhos…”. E eu fico toda orgulhosa, porque sei que é verdade. É isso e muito mais.

Porque ele cuida de mim. E eu cuido dele. Sem nenhuma obrigação, apenas porque queremos. Porque gostamos de cuidar um do outro. Porque nos amamos.

Afinal isto de falar de amor é uma piroseira pegada, mas de vez em quando também é preciso. Apaixonarmo-nos por uma pessoa é algo que acontece. Amá-la é uma decisão que tomamos, conscientemente. Todos os dias, uma e outra vez. Nós tivemos a sorte de nos apaixonarmos, mas depois decidimos amar-nos. Numa espécie de alinhamento perfeito de toda uma série de factores encadeados, que nos esforçamos por manter vivos. Por cuidar.
 
 

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Não sei se vá, se fique…

(diálogo assustador quando me estava a preparar para ir dar aulas)

 
- Estou deprimido.
- Porquê, filhote?
- Vais dar aulas agora?
- Vou.
- Mas vais já sair?
- Sim, daqui a um bocadinho.
- Ah…
- Estás triste porque a mãe vai dar aulas? Coitadinha da minha coisa pequena!
- Não é isso…
- Querias que a mãe te desse atenção, era?
- Hum… Onde é que está o Pascal?
- Está quase, quase a chegar.
- Ainda não tive a minha hora de Pascal.
- “A tua hora de Pascal”? Estás com saudades do Pascal, é? Ele está mesmo aí a chegar.   Estás à espera dele para fazeres os trabalhos de casa?
- Não, já fiz tudo.
- Então? Estás à espera do Pascal para fazeres alguma brincadeira?
- Não te posso contar nada.
- Ai...
- É que hoje íamos fazer umas experiências, quando estivesses a dar aulas. Tínhamos combinado, mas era segredo.
- Experiências?
- Sim, de química.
- Mas porque é que eu não posso estar em casa?
- É que as coisas podem correr mal. Muito mal…

quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Quem disse que burro velho não aprende línguas?

(onde se mostra que com um bocadinho de esforço isto vai lá)


 
D. Fuas Roupinho é, como se sabe, uma criatura meio selvagem. Estranho cruzamento entre um texugo e um cão, que dorme de patas no ar e língua de fora. Persegue inimigos mesmo em sonhos, rosnando e choramingando baixinho. Vive eternamente à procura do ponto de fuga, bicho indómito que é. O instinto de caça está-lhe no sangue e pouco se pode fazer contra isso.

Ao fim de quase cinco anos de feroz convivência, capitulámos. Decidimos começar a soltá-lo, durante os nossos passeios ao Domingo pelos bosques. Por fim, aceitámos que não vale a pena tentar que ele ande calmamente ao nosso lado. Ou que corra alegremente à nossa volta, como todos os outros cães com os quais nos cruzamos. Coração ao alto (o nosso), e lá vai ele...

Quando solto em plena natureza, D. Fuas larga a correr como se não houvesse amanhã. Como se toda a caça do mundo estivesse ali escondida, entre as árvores, à espera de ser apanhada. Por isso, desaparece num ápice. Depois, volta. Por vezes, demora muito tempo. Mas, quando finalmente aparece, todo ele é felicidade.

Acho que se pode dizer que a aprendizagem foi mútua. Nós tivemos que aprender a confiar no instinto dele. De ir e voltar. Sobretudo, voltar. Ele teve de aprender a não ir longe demais, a dosear a correria desenfreada. A regressar, quando ouve o nosso chamamento preocupado ao longe. Até agora, tem corrido bem… Isto é, ele tem voltado sempre. E ainda nunca trouxe um bambi assustado na boca.




segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Amesterdão não é bem Atenas, mas foi o que se conseguiu arranjar

(preview do aniversário do Vasco)

 

Quando questionado sobre o que queria fazer nos anos, o Vasco disse simplesmente que queria ir à Grécia. E eu – que não me canso de dizer que a vantagem de vivermos no centro da Europa é que, num pulinho, estamos em qualquer lado – comecei a ver a minha vida a andar para trás. Felizmente, ele aceitou trocar o Pártenon pelos mimos do tio. E lá fomos nós passar o fim-de-semana a Amesterdão, a casa do meu irmão mais novo. Como não somos pessoas supersticiosas, a coisa pequena teve direito a enfeites, bolo, velas, parabéns e prendas. Três dias antes da data oficial. Mas, que diabo, o rapaz só faz 8 anos uma vez na vida!

Amesterdão é daquelas cidades onde sabe sempre bem voltar. Não me canso dos canais, das casas baixinhas, das feiras um pouco por todo o lado, dos cafés que mais parecem a nossa cozinha, da multidão alegre nas ruas, das lojas retro, daquele laissez-faire onde impera o respeito mútuo, dos barcos, dos cães que podem entrar em todo o lado, das crianças com o ar mais pacífico do mundo. Fico sempre espantada a olhar para as pessoas que fazem equilibrismo em cima das bicicletas, de telemóvel na mão, a falar com o vizinho do lado, com filhos atrás e à frente, compras empoleiradas e cães de orelhas a abanar dentro dos cestinhos. O que vale é que, volta e meia, o meu amor deitava-me a mão para evitar que fosse atropelada no meio daquela azáfama toda. Eu e o D. Fuas, que nos acompanhou feito tolinho na passeata. Ah… e também ia deitando a mão ao Vasco, o terror de qualquer ciclista porque ziguezagueia sem parar. O Diogo seguia descontraído e sorridente à nossa frente, com aquela desenvoltura de quem já conhece bem a cidade e gosta de o mostrar.

 













[ Estão ali a ver a coisa pequena de sorriso rasgado e mãozinha na boca? Horas depois, conseguiu arrancar metade do novo aparelho. Ficou barata a festa... ]

sexta-feira, 21 de novembro de 2014

Tínhamos tudo para ser amigas ou talvez não

(vem isto a propósito de me ter deitado às duas e meia da manhã

e estar aqui que não me aguento, porque a idade não perdoa)


Os nossos pais trabalhavam ambos na IBM e nós seguíamos o mesmo ramerram… colónias da ACM e natação no Sporting. Tínhamos pais sem nome próprio, só apelido. Que trabalhavam "nos computadores", numa altura em que ninguém sabia muito bem o que isso era. E que viajavam. Vivíamos entre irmãs mais velhas e irmãos mais novos mimados.

Portanto, tínhamos tudo para ser amigas ou talvez não.

Ela era uma menina queque, eu uma maria-rapaz. Ela era uma girafa escanzelada, eu uma bolinha minúscula. Ela era boa aluna, eu detestava a escola. Ela era incapaz de ler um livro, eu devorava-os. Ela gostava do mainstream, eu tinha a mania que era intelectual. Ela vinha de uma família normal, eu de uma família atípica. Ela tinha vestidos e saias e tops e sapatos bonitos, eu tinha calças de ganga e t-shirts herdadas. Ela admirava a minha irmã mais velha e eu a dela. Ela dizia que a alface sabia a terra, eu era vegetariana. Ela era super-protegida, eu fui educada para o desenrascanço. Ela vivia em Loures, eu em Lisboa.

E, assim, fomos tecendo uma amizade umbilical, que atravessou a nossa infância e adolescência. Que irrompeu, intermitente e trapalhona, na vida adulta. Uma amizade construída em campos de férias, Verão após Verão. Cimentada em fins-de-semana passados em casa uma da outra, ao longo dos anos. Uma amizade que exigia horas diárias ao telefone e longas cartas durante as férias. Uma amizade feita de idas ao cinema nas Amoreiras e tostas de fiambre em Alvalade. Uma amizade feita de leituras de diários para colmatar as pequenas falhas numa existência em tudo partilhada. Uma amizade telepática que sabia prever quem estava do lado da linha ao primeiro toque do telefone. E que reconhecia namorados nunca antes vistos no autocarro. Uma amizade que nem um cadeado no telefone conseguiu calar.

Foi uma amizade feita de morangos com leite condensado pela noite dentro. Aparelhos perdidos. Revistas brasileiras para adolescentes. Omeletes que a mãe dela fazia como mais ninguém. Séries idiotas ao domingo à tarde, amplamente dissecadas de madrugada. E discos do Leonard Cohen, que faziam medo quando ecoavam no silêncio da minha casa vazia. Uma amizade em que partilhámos os primeiros disparates, substâncias ilícitas, paixões, saídas à noite. Concertos em Alvalade. Paus de incenso que não deitavam estrelinhas. Muitas, muitas, muitas, primeiras vezes. Principalmente ataques de riso que não faziam rir mais ninguém. E prantos compartilhados.

Nunca chegámos a viver juntas num estúdio, no início da nossa vida adulta. Nem fizemos as viagens todas com que sonhávamos. As nossas existências não seguiram os planos cuidadosamente traçados quando tínhamos 12 anos. Páginas repletas de listas de coisas que ficaram por realizar. A vida, a dada altura, afastou-nos um bocadinho. Não sei bem porquê. E ficou um vazio que ninguém conseguiu colmatar. Porque a nossa amizade era feita de uma irmandade assente na soma das experiências vividas, que nos permitiram crescer. A pessoa que hoje sou, devo-o também a ela. Melhor amiga oficial, mesmo que mais tarde o título nem sempre reflectisse a realidade dos dias.

Tantos anos se passaram e, às vezes, ainda penso: “Tenho de contar isto à Marta!”. Esqueço-me que 2500 km e 30 anos nos afastam das miúdas que fomos. Meninas patetas, adolescentes ridículas, jovens adultas cheias de certezas. Mães de filhos, com bastante menos certezas.

Mas, quando nos encontramos, o tempo pára. Ou quando falamos ao telefone. Horas e horas e horas a fio, como ontem. Porque há pessoas que não precisam de estar fisicamente ao nosso lado para dividir a nossa vida. E chorar as nossas dores. E rir das nossas alegrias. Numa lealdade feroz que nunca vacila. Para serem uma peça essencial da nossa história sem a qual ficamos amputados.

Pode o tempo encurtar e o espaço alargar. Pode a vida dar as voltas que der, mobilada por muita ou pouca gente. Podemos ser quem somos ou outro alguém. Pode tudo mudar. 180 graus e mais outros 180 graus, se preciso for. A minha amizade pela Marta é uma constante. Uma amizade que atravessa vidas e quilómetros. A certeza de que estaremos sempre aqui uma para a outra.

Na última vez que estive em Portugal, de todas as pessoas que reencontrei, de todas as longas conversas que tive, de tudo o que vivi e senti, o que mais me marcou foi ver os nossos filhos juntos a brincarem. O Vasco e a Matilde, cópias conformes das crianças que outrora fomos. O meu mais novo e a mais velha dela, com poucos meses de diferença e igual vida no corpo. A correr um atrás do outro, numa Lisboa nocturna e amena. Os risos deles.

 

[ Parabéns a ti, pela quarta vez. A Cris tinha razão, quando dizia que as pré-adolescentes feiinhas se transformavam em mulheres lindíssimas. Tenho um orgulho enorme na mulher em que te tornaste. E uma gratidão sem fim por ter acompanhado esse processo. Bem sei que já ninguém diz isto, quando se tem quase 40 anos, mas eu amo-te muito. ]

terça-feira, 18 de novembro de 2014

Uma espécie de passeio de fim-de-semana – Colónia, Alemanha

(relato dos três ecos de um telefonema)


Entretanto, os homens da casa decidiram aproveitar o fim-de-semana, apesar da minha ausência. Domingo, meteram-se todos no carro e foram passear. Com muita pena minha, pouco posso contar deste passeio…
 
Então, onde foram?
- “Cô-qualquer-coisa” (coisa pequena)
- “À Colónia” (adolescente cool)
- “Koln” (amor meu)
 
Fica muito longe?
- “Nááá” (coisa pequena)
- “Se fosses tu a conduzir, teria sido uma hora e pouco, como não foste demorou uma eternidade” (adolescente cool)
- “2h15” (amor meu)
 
Estava bom tempo?
- “Chovia imenso” (coisa pequena)
- “Chuviscou” (adolescente cool)
- “Eles levavam casacos” (amor meu)
 
O que viram por lá?
- “Ruas” (coisa pequena)
- “Pizas” (adolescente cool)
- “A catedral” (amor meu)
 
Divertiram-se?
- “Sim, corri” (coisa pequena)
- “Bué” (adolescente cool)
- “Estivemos a experimentar a máquina fotográfica” (amor meu)
 
Voltaram muito tarde?
- “Já era noite” (coisa pequena)
- “Comemos pizas” (adolescente cool)
- “Eles fizeram os trabalhos de casa” (amor meu)
 
E o cão?
- “Ficou na rua” (coisa pequena)
- “Ficou preso na rua e foi para o quintal da vizinha” (adolescente cool)
- “Castiguei-o” (amor meu)
 
Ah… e também não estejam à espera das fotografias da praxe, que isto são homens muitoooo especiais. Vá, experimentais.
 





 

E quando se pensava que as coisas não podiam piorar

(isto só pode ser a Lei de Murphy, pá!)


E quando se pensava que as coisas não podiam piorar, descobri um novo stand de uma associação que se dedica à recuperação de cavalos abandonados. Ou cavalos traumatizados. Cavalos mais velhos. Cavalos que iam para abate. Seja como for, cavalos.

Desta vez, fui forte e virei costas. Controlei-me, não preenchi papel nenhum. Cheguei ao nosso stand de lágrimas nos olhos, mas decidida a esquecer os cavalos abandonados, traumatizados, velhos, para abate. Numa palavra, os cavalos.

Pode dar-se o caso de ter partilhado a minha profunda tristeza com a colega chata como o raio. E, palavra puxa palavra, a dita colega – que afinal nem é assim tão chata, tirando a obsessão pelos cafés e as idas à casa de banho, mais o jornal que insiste em ler em voz alta – anuncia que até tem um terreno. O tal onde aprendeu a conduzir o tractor. Uma pradaria. Que até lhe dá jeito que não fique ao abandono. Onde já andam uns burros de outro colega (esse, sim, completamente doido).

E o meu coração ainda não parou de bater descompassado. A minha cabeça fervilha…

segunda-feira, 17 de novembro de 2014

O pior não é…

(espero que o meu amor esteja tão ocupado com os miúdos

que nem se lembre de passar por aqui)



O pior não é trabalhar ao Domingo.
O pior não é trabalhar ao Domingo, em Bruxelas.
O pior não é trabalhar ao Domingo, em Bruxelas, com uma colega chata como o raio.
O pior não é trabalhar ao Domingo, em Bruxelas, com uma colega chata como o raio e saber que ainda temos mais dois dias de intensa labuta pela frente.
 
 
O pior não é o local de trabalho ficar em pleno centro de Bruxelas, onde o trânsito é caótico.
O pior não é o local de trabalho ficar em pleno centro de Bruxelas, onde o trânsito é caótico e a selecção joga esta noite.
O pior não é o local de trabalho ficar em pleno centro de Bruxelas, onde o trânsito é caótico e a selecção joga esta noite, seguida de um concerto de Stromae.
O pior não é o local de trabalho ficar em pleno centro de Bruxelas, onde o trânsito é caótico e a selecção joga esta noite, seguida de um concerto de Stromae, e a nossa colega guiar o carro da associação como se fosse o tractor onde aprendeu a conduzir.
 
 
O pior não é estarmos a angariar fundos para a nossa associação.
O pior não é estarmos a angariar fundos para a nossa associação numa coisa cruamente designada por “Salão do Testamento”.
O pior não é estarmos a angariar fundos para a nossa associação numa coisa cruamente designada por “Salão do Testamento”, rodeadas por velhos deprimentes e moribundos.
O pior não é estarmos a angariar fundos para a nossa associação numa coisa cruamente designada por “Salão do Testamento”, rodeadas por velhos deprimentes e moribundos, sem percebermos um corno da lei de sucessões deste país.
 
 
O pior não é a nossa colega, chata como o raio, ter uma bexiga de galinha.
O pior não é a nossa colega, chata como o raio, ter uma bexiga de galinha e passar o dia a emborcar cafés.
O pior não é a nossa colega, chata como o raio, ter uma bexiga de galinha e passar o dia a emborcar cafés, estar convencida de que sofremos do mesmo mal.
O pior não é a nossa colega, chata como o raio, ter uma bexiga de galinha e passar o dia a emborcar cafés, estar convencida de que sofremos do mesmo mal e, portanto, obrigar-nos a ir frequentemente à casa de banho.
 
 
O pior não é passarmos horas a apresentar um projecto complexo.
O pior não é passarmos horas a apresentar um projecto complexo a uma cambada de velhos extravagantes.
O pior não é passarmos horas a apresentar um projecto complexo a uma cambada de velhos extravagantes e surdos.
O pior não é passarmos horas a apresentar um projecto complexo a uma cambada de velhos extravagantes e surdos, que falam maioritariamente flamengo.
 
 
O pior não é o nosso stand estar encaixado entre a Unicef e a WWF.
O pior não é o nosso stand estar encaixado entre a Unicef e a WWF, cheias de cartazes com crianças sorridentes e pandas amorosos.
O pior não é o nosso stand estar encaixado entre a Unicef e a WWF, cheias de cartazes com crianças sorridentes e pandas amorosos, que metem os nossos velhotes com trissomia 21 cheios de pinta a um canto.
O pior não é o nosso stand estar encaixado entre a Unicef e a WWF, cheias de cartazes com crianças sorridentes e pandas amorosos, que metem os nossos velhotes com trissomia 21 cheios de pinta a um canto, e ainda oferecem balões e gomas de ursinhos a quem passa (parece que os velhos adoram).
 
 
O pior não é o stand à nossa frente ter uma deficiente de cadeira de rodas com um cão.
O pior não é o stand à nossa frente ter uma deficiente de cadeira de rodas com um cão, gira que se farta.
O pior não é o stand à nossa frente ter uma deficiente de cadeira de rodas com um cão, gira que se farta, a meter conversa com toda a gente.
O pior não é o stand à nossa frente ter uma deficiente de cadeira de rodas com um cão, gira que se farta, a meter conversa com toda a gente, em três línguas diferentes.
 
 
O pior é que eu, que não tenho dinheiro nenhum para lhe doar, nem em vida, nem depois de morta, descobri que posso ser muito útil como família de acolhimento para criar um cão durante o primeiro ano de vida, antes de poder começar a ser treinado para ajudar os deficientes. A culpa não é minha, é da Golden Retriever que conquista os velhos todos quando lhes vai pedir festas no meio do corredor e que já devorou as bolachas que eu tinha trazido. A culpa é desta cadela do demo que é a coisa mais fofinha que já vi na vida e que me roubou o coração, entre um velho mouco e as minhas idas obrigatórias à casa de banho, para descanso da minha colega chata como o raio, que até já perguntou à deficiente da cadeira de rodas como é que o bicho se aguentava ali tanto tempo sem fazer chichi. A culpa também deve ser dos meus pais que não fizeram de mim uma criatura rica, obrigando-me a tentar fazer o bem à minha volta por vias mais travessas.
 
 
Resumindo e concluindo:
Sobrevivi ao trânsito infernal, ao trabalho ao Domingo, à colega mijona que conduz como uma louca, aos velhos duros de ouvido, às criancinhas sorridentes e aos pandas amorosos. Até sobrevivi ao gajo lindo de morrer que está no stand da Liga do Alzheimer (via-o melhor no meio dos pandas, mas enfim…). Infelizmente, não sobrevivi aos olhos doces da Golden Retriever à minha frente. Pode dar-se o caso de até já ter preenchido um formulário para nos candidatarmos a ser família de acolhimento de um cachorrinho…

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Afinal havia uma solução

(porque há ideias tão geniais que deviam patenteá-las)


Fui à reunião da escola do Vasco. A medo, como de costume. Porque as notas são sempre boas, já se sabe. O pior é o resto. Por isso, já vou à espera daquela parte: “Sim, sim… bem, em relação aos resultados escolares, não há nada a dizer. É um excelente aluno. Não sei como, mas é. O pior é o resto…” E segue-se uma lista interminável de disparates. Disparates que a criatura faz, bem entendido. Uma lista onde se exalta o facto de o Vasco ser absolutamente incapaz de estar quieto. Personificação do bicho-carpinteiro. De cair constantemente da cadeira abaixo. Ou de mandar a cadeira abaixo e ficar milagrosamente de pé. Ou de cair primeiro e, depois, ainda apanhar com a cadeira em cima. Todo um mundo de variantes, onde a única constante é o facto de cair. Ele e a cadeira. Ah… e o estrondo assustador que isso provoca. Segue-se a ladainha habitual de que a coisa pequena perturba o bom funcionamento das aulas.

Pois que, desta vez, eu estava ainda com mais medo. A nova escola é rigorosa. Até eu tremo um bocadinho quando olho directamente para a directora. Fico sempre com a sensação de que devo ter feito um disparate qualquer. Mas, pronto, enchi-me de coragem e lá fui, preparada para defender a cria com argumentos altamente imaginativos. Tinha uma lista deles preparados. Mas, para minha grande surpresa, não precisei de usar nenhum. Nem um.

As professoras elogiaram muito o Vasco. Que era um prazer tê-lo na turma. Que tinha uma curiosidade insaciável. Um miúdo ávido de conhecimento. E com uma cultura geral fora do comum. Falador, mas muito respeitador. Amigo de todos. Que gostava muito de estar à conversa com os adultos, da empregada da limpeza à directora. Que se tinha integrado na perfeição. Ninguém diria que só falava francês há dois anos, que tinha um desenvolvimento linguístico bastante superior à maior parte dos colegas. Que transbordava de felicidade. Um miúdo reguila, mas muito meiguinho. Obediente. Excelente aluno. Que se via que tentava fazer um esforço para melhorar a letra e ser mais cuidadoso com o seu trabalho. Rigoroso. Disseram que o Vasco era rigoroso no que fazia. E bom colega.

Eu estava assim a modos que apalermada. Sempre à espera do “mas…” que iria iniciar a já conhecida história do diabo no corpo e da disputa com a cadeira, centro de toda a discórdia na antiga escola de Malempré. No final da conversa, já as senhoras estavam de mão estendida para se despedirem, perguntei se o Vasco era muito irrequieto, se ficava sossegado na cadeira… Vá, atirei assim a ideia para o ar, como quem não quer a coisa. Disseram-me que não. Que se via que era uma criança cheia de vida, mas que se mantinha sossegado no lugar. “Então… e a cadeira? Ele nunca cai da cadeira?”, perguntei, desconfiada. Não. Explicaram-me que, quando viram o tipo de miúdo que tinham pela frente, optaram por sentá-lo numa secretária que tem a cadeira aparafusada ao chão. Achei a ideia tão, mas tão genial, que não me contive nos elogios. E insisti para ver com os meus próprios olhos essa invenção extraordinária. Fartei-me de rir. Afinal, a solução era tão simples. Estou desconfiada que devem ter ficado impressionadas pela minha preocupação com o mobiliário escolar, mas pronto… Sai de lá com a certeza absoluta de que o meu bicho-carpinteiro está no lugar certo. E isso é coisa para deixar qualquer mãe de coração mais levezinho.

quarta-feira, 5 de novembro de 2014

O valor das gomas

(a vergonha ou a falta dela)


Pois que este mês a escola onde dou aulas voltou a não me pagar. A equivalência dos meus diplomas continua atravessada numa encruzilhada burocrática.

Pois que a caixa de previdência do ensino que gere os abonos de família, como me cortaram o salário, decidiu passar-me para a caixa de previdência geral. E não me pagou os abonos este mês, nem se lembrou de me avisar.

Pois que a tradução do livro que entreguei em Agosto continua sem data de pagamento à vista.

Pois que a justiça tarda, tarda, tarda. O meu processo kafkiano já se arrasta há oito meses e os meus filhos continuam sem pensão de alimentos, nem coisa nenhuma.

Pois que o Vasco além do nosso médico de família, do endocrinologista, do dentista e do ortodontista, agora também tem de ser seguido por um otorrino e um terapeuta da fala. Nunca vi uma criatura que vende saúde ser vista por tanto especialista em tão curto espaço de tempo.

Pois que o Inverno chegou em força e está quase na altura de ligar o aquecimento central. Encher a cisterna custa a módica quantia de 1600 euros. Felizmente, o fornecedor é simpático e aceita deslocar-se por 500 litros... 411 euros, mais coisa, menos coisa.

Pois que não tenho vergonha nenhuma de expor a minha situação. Acumulo vários empregos, todos eles qualificados e honestos. Faço o melhor que posso para educar os meus rapazes. Ficar na pátria-mãe exige coragem e fé, mas emigrar é o percurso do combatente. E isto é bom que se diga, que se saiba, que se comente. Para que quem o faz tenha perfeita consciência do caminho que o espera.

O que eu tenho vergonha de dizer é que, ontem, o meu filho Diogo recebeu uma generosa transferência de Portugal de 20 euros para comprar cinco pacotes de gomas, que anda a vender para patrocinar a viagem a Paris com a escola. Sendo que o benefício desta fantástica venda são 13,50 euros, o problema parece estar solucionado. Estou a pensar seriamente propor ao tribunal começar a receber a pensão de alimentos em gomas…

terça-feira, 4 de novembro de 2014

Passeios de fim-de-semana – Monschau, Alemanha

(um clássico para quem nos visita)


Descobri Monschau por acaso, há uns anos atrás, quando fui dar apoio à equipa da minha “mãe" belga num trailwalker da Oxfam. Como a prova durou mais de 24 horas, aproveitámos para dormitar no carro entre os vários pontos de paragem. E foi assim que aterrámos em Monschau, meios perdidos. Na altura, não deu para visitar muito bem a cidadezinha e prometi a mim mesma que havia de voltar com os miúdos. Acabámos por ficar completamente apaixonados por esta terra, que se tornou passeio obrigatório sempre que temos visitas.
 
Monschau está encaixada entre as colinas da cadeia montanhosa de Eifel, no estreito vale do rio Rur. Contrariamente a muitas outras cidades alemãs, o centro histórico do século XVIII não foi destruído durante a Segunda Guerra Mundial. Deste modo, as casas de madeira e as ruas estreitinhas permaneceram quase inalteradas, fazendo de Monschau uma atracção turística bastante popular. Como fica perto da fronteira com a Holanda e a Bélgica, há um conjunto de turistas bastante eclético. Principalmente velhotes com cães, não me perguntem porquê. Nunca vi tanta concentração de cães por metro quadrado como em Monschau. Para os miúdos, é toda uma atracção de per se.
 
A nossa velhota parece ter trazido o sol com ela, pelo que foi um passeio duplamente bom. Os miúdos estavam especialmente bem-dispostos, felizes por lhe poderem mostrar uma terra que conhecem como a palma da mão. O Vasco tem andado a “aproveitar-se ao máximo da avó”, como ele diz. Até de política já falaram. E o Diogo passa horas com ela à volta da tablet, demonstrando que o conflito de gerações é coisa de outros tempos. Andam sempre os dois agarrados à avó, a lambuzarem-se de mimos e doces. De tudo o que os meus filhos deixaram para trás com a nossa vinda para a Bélgica, acredito que os avós tenham sido a maior perda. Nada substitui a presença das gerações mais velhas na vida de uma criança. E o contrário também me parece válido. Tem sido delicioso vê-los todos juntos. Foi delicioso fazer este passeio com a nossa velhota querida e os netos barulhentos atrás, apesar de termos de andar todos muito mais devagar...
 
Ficam as fotos possíveis, porque já se viu que esta malta não é dada a grandes poses.


 












segunda-feira, 3 de novembro de 2014

Ponto de situação

(onde se mostra igual satisfação nos alunos e na escola)



Os rapazes estiveram esta semana de férias. Uma pausa lectiva um bocadinho estranha… “Férias de Todos os Santos”, diz-se por aqui. Com direito a boletim de avaliações, como não podia deixar de ser. Este ano, estava curiosa para saber as notas intercalares. No caso do Vasco, como mudou para uma escola mais exigente, queria saber como se estava a sair. No caso do Diogo, a quem dei total autonomia nos estudos pela primeira vez, estava desejosa de ver o resultado.

Admito que sou daquelas mães que exige bons resultados escolares. O que não implica apenas ter boas notas. As boas notas devem ser o reflexo de toda uma atitude perante a escola e o ensino. Por isso, exijo um comportamento irrepreensível para com colegas, professores e funcionários da escola. Exijo boa educação e respeito. Civismo. Companheirismo. Exijo esforço. E estudo. Mas também espero que a escola fomente a curiosidade e o interesse dos meus filhos. Que seja capaz de se adaptar às suas personalidades. Que seja mesmo uma segunda casa, onde se sintam bem e felizes. Acompanhados. Onde aprender também possa ser um prazer. Onde acreditem neles e nas suas capacidades. Onde fazer amigos seja tão importante como ter boas notas. Acho que sou igualmente exigente com ambos os lados da barricada.

Dois meses de aulas e um boletim de avaliações depois, estou convencida de que estão os dois em escolas feitas à sua medida. Pela primeira vez na nossa vida, finalmente. O Diogo passou esta semana a contar os dias que faltavam para recomeçar as aulas, o que mostra bem o amor que tem aos bancos do Sacré-Coeur. E o Vasco diz que já tem saudades dos novos amigos de Saint-Joseph.

Ler os boletins dos meus filhos foi um verdadeiro prazer. E não teve nada a ver com as boas notas. Até porque o boletim do Diogo é meramente informativo. Mas todos os professores escreveram comentários sobre o seu desempenho que mostram que o conhecem bem, que o admiram e que acreditam nele. E isto é fundamental para se aprender o que quer que seja. Dou apenas alguns exemplos, que são um excelente espelho do ensino no Sacré-Coeur:

“Dou-te os meus parabéns pela tua participação activa na sala de aula! Bravo!”
“Excelente início de ano, Diogo. O teu trabalho é regular e sério.”
“Vais demasiado depressa, és capaz de fazer melhor.”
“A tua curiosidade intelectual em relação à matéria leccionada é de uma qualidade preciosa.”
“O teu nível actual está abaixo das tuas reais capacidades.”
“Estás sempre atento a todos os detalhes. Continua assim!”
“És interessado e não deixas nada ao acaso.”
“Cuidado com a tua letra que é cada vez mais difícil de decifrar!”

Depois de ler isto, só posso ficar descansada. Dei-lhe liberdade para estudar como quisesse, quando quisesse. Achei que, no oitavo ano, já merecia ter autonomia para gerir como achasse melhor o estudo aqui em casa. Pela primeira vez, não controlei horas de estudo, resumos para os testes, cadernos, nem o “journal de classe” (uma espécie de agenda onde escrevem os sumários, TPC’s, comentários dos profs., etc.). Pelos testes que fui vendo, as notas do Diogo baixaram ligeiramente e, sobretudo, não têm sido tão regulares como no ano passado. Mas se os professores estão contentes e acreditam que ele consegue melhorar, eu também fico satisfeita. É um miúdo respeitador, interessado, esforçado. Muitíssimo responsável. Faz tudo a despachar e tem uma letra hieroglífica, é certo. Mas o essencial está lá. Fiquei orgulhosa. No meu filho grande e na escola onde ele tem o prazer de andar. Porque a questão é mesmo essa: o Diogo adora a escola dele. Os professores gostam sinceramente do miúdo e vice-versa. Tem imensos amigos na turma, que gosta de trazer cá a casa. Dá-se muito bem com vários colegas de anos mais avançados. E tudo isto junto é meio caminho andado para o sucesso escolar.

Quanto ao Vasco, a questão era diferente. A minha coisa pequena mudou de escola. Passou da escolinha de Malempré, onde podia fazer o que queria como um selvagem porque todos lhe achavam piada, para um colégio católico bastante rígido. Aprendeu a controlar-se nas aulas, a estar concentrado. Continua a estragar material escolar a uma velocidade alucinante. Continua a rasgar as calças e a esfarrapar os ténis. E ainda bem. Quer dizer que continua a ser o meu terrorista, mas um pouco mais calmo. Mais civilizado. Ninguém o quebrou, só o vergaram um bocadinho. O que, bem vistas as coisas, era uma necessidade premente, dado que está prestes a fazer oito anos e já está no terceiro ano.

Devo dizer que tive algum receio do catolicismo daquela escola. Tal como na escola do Diogo, disseram-me que não eram “muito fixados em Jesus”. Avisei-os de que eramos todos ateus há várias gerações e que assim tencionávamos continuar, graças a Deus. No início, o Vasco dizia que, afinal, era fácil rezar. Bastava dizer muito depressa: “Qualquer coisa, qualquer coisa. Qualquer coisa, qualquer coisa. Ámen.” Perguntei o que era a “qualquer coisa”. Explicou-me que não era importante. O importante era benzer-se no fim sem trocar as voltas. E que isso, ele já sabia fazer. Atar os sapatos é que ainda não. Passadas umas semanas, também já sabia o que eram os Testamentos. O velho, o novo e o assim-a-assim. Foi pela primeira vez rezar à igreja e achou-a fria. Mas gostou. Descobriu que uma das professoras é cristã e a outra ateia. Tal como nós. Continua a adorar a mitologia grega. E a achar que todas as histórias são igualmente bonitas. Quer queiramos, quer não, vivemos numa sociedade judaico-cristã, pelo que este conjunto eclético de conhecimentos de pendor religioso só poderá contribuir para uma boa cultura geral.

Para além da Matemática e do Francês, o Vasco também foi avaliado a Ciências, História, Geografia, Inglês, Religião, Ginástica e Natação. Mas o mais curioso, na minha opinião, são as notas atribuídas em pé de igualdade à Escrita/Cuidado na apresentação, ao Comportamento face ao trabalho e ao Comportamento face aos outros. O resultado de todas estas avaliações deu origem a uma média global de 85,6%. Como não podia deixar de ser, fiquei orgulhosa na minha coisa pequena, que se fartou de trabalhar para acompanhar o ritmo da nova escola. E fiquei absolutamente deliciada com este colégio, que põe o estudo da Matemática ao mesmo nível do Comportamento face aos outros. Um justo equilíbrio, parece-me.

O próprio boletim tem uma curiosa introdução dirigida ao aluno, que penso ser interessante traduzir:

Acabaste de receber o teu boletim. Tem bastante cuidado com ele, pois de certo modo é o teu diário de bordo durante este ano escolar. Será testemunha dos teus esforços, progressos e sucessos, mas talvez também das tuas dificuldades.

Neste dossier, encontrarás igualmente diferentes documentos:
- Uma página reservada às notas que obtiveste nas diversas avaliações
- Uma página onde poderás ler os comentários e apreciações que faço sobre o teu trabalho
- A página seguinte, onde deverás avaliar o teu próprio comportamento face ao trabalho e à tua atitude perante os outros: os teus colegas e os adultos. Vais ter de fazer um esforço de reflexão para analisar as situações propostas e eu sei que isso não será propriamente fácil. Nesta mesma página, eu também vou escrever o que penso do teu comportamento face a estas proposições.

O meu desejo é ajudar-te graças aos meus encorajamentos e opiniões. Quero que saibas que podes contar comigo se sentires dificuldades, tentarei estar disponível para ti. Em contrapartida, espero que estejas atento, que faças o melhor que és capaz, quaisquer que sejam os resultados que obtenhas. Não te esqueças de que a tua profissão actual é: estudante. Portanto, dá o teu melhor, trabalha regularmente, não te contentes com o mínimo, de modo a que este boletim de avaliação seja uma enorme fonte de satisfação pessoal.

Acho que está tudo aqui. Ou quase, quase. Tudo o que eu espero da escola. O respeito pelo aluno, a sua responsabilização, a difícil mas necessária auto-avaliação, o encorajamento, a exigência de que cada um dê o máximo de si e a ideia de que o resultado escolar, em todas as suas vertentes académicas e sociais, deve ser uma fonte de satisfação para o próprio (não para os pais).

Às vezes é difícil levar o barco a bom porto. A minha vida tem momentos muito complicados. Mas, caramba, quando leio estas coisas sinto que estou no sítio certo. Este é o ensino com que sonhei para os meus filhos. A 100 e a 900 metros de minha casa. A custo zero. I rest my case.