terça-feira, 21 de junho de 2016

Uma questão de género

(na sequência do post de ontem…)





Sempre foi difícil oferecer prendas ao Vasco, porque ele nunca se interessou por brinquedos típicos de criança. Nunca brincou com carrinhos, bonecos ou jogos. Apesar de viver numa casa onde proliferavam livros infantis, também nunca mostrou especial interesse. A única coisa que parecia interessá-lo era a música. Desde muito pequenino, as prendas preferidas do Vasco eram caixas de sons, instrumentos diversos, microfones, CD, etc. Quando fez dois anos, a colecção musical já era vasta. Nesse Natal, à falta de ideias, perguntei à educadora, qual o brinquedo preferido do Vasco na escola. Mostrou-me o “cantinho do teatro”, onde tinham à disposição máscaras de carnaval e acessórios. Foi a prenda mais barata que lhe comprei na vida: enchi um baú com tralhas dos chineses para ele se mascarar. Foi uma festa!
Por volta dos três anos, o Vasco passou pela “fase princesas”. Começou por se apaixonar perdidamente pelo filme da Pequena Sereia. Era capaz de ficar horas a ver aquilo em looping. Depois, numa visita à Disney Store do Colombo, insistiu em comprar um conjunto com as principais princesas da Disney. Durante meses, andou com as malfadadas bonecas atrás. Seguiu-se a tiara das princesas que vinha de oferta numa revista… de princesas, pois claro. E foi aqui que a família começou a achar aquilo um bocadinho esquisito. Creio que eu era a única que não me importava de andar com ele na rua de tiara. Altivo, alheio a comentários e risinhos maldosos, o Vasco pavoneou-se durante bastante tempo com uma tiara lilás de plumas no cimo da cabeça. Era a coisa mais pirosa possível, mas ele adorava-a. O cúmulo da felicidade era ver o filme da Pequena Sereia, sentado na cadeirinha com as bonecas das princesas cuidadosamente alinhadas à sua frente, de tiara na cabeça.
Por insistência familiar, falei com a pediatra sobre esta paixão do Vasco. Ela desvalorizou, outra coisa não seria de esperar. Mas perguntou-me se eu estava preocupada. Respondi que não, rigorosamente nada. Antes da fase das princesas, tinha havido a fase da Mariza. Nessa altura, o supra-sumo era ver os DVDs dos concertos da Mariza, com uma toalha a fazer de xaile e um microfone na mão. Aquele pedacinho de gente, sabia as canções e a coreografia toda de trás para a frente. Imitava cada gesto, com um rigor do detalhe surpreendente. O que mais o emocionava era o violoncelo do Jaques Morelenbaum, no concerto de Lisboa. Aos dois anos e meio, meteu na cabeça que queria aprender a tocar violoncelo. Acabou por se render ao violino, mais adaptado ao seu tamanho diminuto. Mas não se pense que a paixão pelo violoncelo desapareceu, sete anos depois. Continua bem viva, à espera de permissão para ir aprender um segundo instrumento.
A fase das princesas acabou por desaparecer naturalmente, com o tempo. Aos poucos, foi substituída pelas construções de Legos, a grande paixão herdada do irmão que já dura há anos. O seu amor pela música mantém-se, mais forte do que nunca. E o gosto pelas máscaras, pelos acessórios teatrais, pela encenação, nunca desapareceu. A de encarar outros personagens também não. Todas as brincadeiras do Vasco implicam de algum modo uma mise en scène. Não será por isso de estranhar o seu interesse pelo ballet. Na última aula, começaram a alinhavar ideias para o espectáculo do próximo ano. Enquanto as meninas discutiam as entradas e os passos que farão, o Vasco conversava com a professora sobre a escolha das músicas e do guarda-roupa. Acho que temos ali um encenador em potência, embora ele diga que quer ser actor. O meu amor anda a tentar convencer-me a inscrevê-lo num curso de teatro, mas infelizmente não há tempo para tudo.
Apesar desta sua sensibilidade de artista, o Vasco é um autêntico furação que derruba tudo à sua passagem. Uma força bruta da natureza. Aquelas mãozinhas de ouro continuam a partir todos os objectos, qual maldição de Midas trasvestida. Decididamente, não tem jeito nenhum para trabalhos manuais que exijam o mínimo de delicadeza. Bicho-carpinteiro irrequieto e trapalhão, tem uma queda nítida para o disparate. As brincadeiras que tem com o irmão são sempre demasiado violentas e acabam frequentemente mal, com lutas corpo a corpo e duelos com todo o tipo de arma, espadas ou até mesmo paus. Os seus centros de interesse seguem de perto os do irmão que adora: música clássica, história, ciências, astronomia, Star Wars, Legos… Entretanto, também desenvolveu algumas paixões próprias, como as bandas desenhadas e os filmes do James Bond.
Este ano, o Vasco celebra uma década de vida. Apesar de ter uma maturidade muito grande, ainda está a anos-luz da pré-adolescência. É a criança mais feliz que alguma vez vi. Mas consegue passar do riso à lágrima numa questão de segundos. Capta com uma facilidade desconcertante as emoções à sua volta, de modo completamente intuitivo. Embora nem sempre saiba como canalizar os sentimentos alheios e isso o deixe confuso. Tem uma capacidade de atenção ao detalhe que me deixa siderada. É muito sensível a tudo o que seja visual. Adora moda. O programa preferido é as “Reines do Shopping”. Continua a gostar muito de acessórios e pede-me muitas vezes para experimentar as minhas “joias” e maquilhagem. Infelizmente, não teve muita sorte com a mãe pouco vaidosa que lhe calhou na rifa, mas ele não se atrapalha. Dá conselhos de moda a quem o quiser ouvir. No outro dia, pediu-lhe que lhe comprasse um verniz porque quer pintar as unhas. E ao meu amor cravou-lhe uns óculos sem graduação.
Nós – os adultos da casa – lidamos muitíssimo bem com esta personalidade algo peculiar do Vasco. Vemo-la como uma característica do seu espírito de artista, nada mais. O meu amor diz que ele é uma “pessoa original”, sendo que este é o maior elogio que lhe podia fazer. Sinto-me profundamente aliviada e agradecida por ter encontrado um modelo masculino para os meus filhos que está nos antípodas do machismo típico do “macho latino”. Mas o Diogo e os amigos, com aquela rigidez de pensamento intrínseca à adolescência, acham que o Vasco é “maricas”. O meu filho crescido teve uma educação suficientemente liberal para me confessar, com a maior das naturalidades, que achava que o Vasco era homossexual, embora não visse problema nenhum nisso. Creio que não deve ser o único na família a pensar isso... E, uma vez mais, fico feliz pela distância do nosso país de origem, que nos permite educar o Vasco longe da pressão social, respeitando a sua personalidade complexa. Tenho a certeza de que a nossa hétero ou homossexualidade não depende da educação que recebemos. Mas, pelo contrário, os futuros traumas que possamos vir a ter dependem em grande parte de uma visão preformada da vida que um dia tentaram impor-nos à força. Muito sinceramente, não estou minimamente preocupada com o que o Vasco é ou deixa de ser. Aquilo que os meus filhos farão na sua intimidade não me diz respeito. Já aprenderem a ser felizes e bem resolvidos, é uma das minhas obrigações de mãe.

 

[ Para quem se interessa sobre esta temática, sugiro um filme belga autobiográfico realizado e interpretado por Guillaume Gallienne: “Les Garçons et Guillaume, à table!”, sobre um jovem que teve de lutar contra a homossexualidade imposta pela família. Muito, muito, muito giro. E elucidativo. ]

4 comentários:

  1. Desculpa lá mas só consigo olhar para essas bochechas e pensar em roê-las :D

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  2. Muitos parabéns com o filho que tem ! pode ser que seja homosexual e então ? algum problema ? nenhum ! só talvez em algumas cabeças que nem contam para nada ! - e já agora, em Portugal não seria diferente !

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    1. Honestamente, acho que essa questão não tem qualquer pertinência...

      O que procurei fazer com este post foi equacionar a problemática das ideias preconcebidas pela sociedade, em geral, e pelas famílas, em particular, que impingem uma determinada sexualidade pré-formatada consoante o género da criança.

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