(na sequência do post de ontem…)
Sempre
foi difícil oferecer prendas ao Vasco, porque ele nunca se interessou por
brinquedos típicos de criança. Nunca brincou com carrinhos, bonecos ou jogos. Apesar
de viver numa casa onde proliferavam livros infantis, também nunca mostrou especial
interesse. A única coisa que parecia interessá-lo era a música. Desde muito
pequenino, as prendas preferidas do Vasco eram caixas de sons, instrumentos
diversos, microfones, CD, etc. Quando fez dois anos, a colecção musical já era
vasta. Nesse Natal, à falta de ideias, perguntei à educadora, qual o brinquedo
preferido do Vasco na escola. Mostrou-me o “cantinho do teatro”, onde tinham à
disposição máscaras de carnaval e acessórios. Foi a prenda mais barata que lhe
comprei na vida: enchi um baú com tralhas dos chineses para ele se mascarar.
Foi uma festa!
Por
volta dos três anos, o Vasco passou pela “fase princesas”. Começou por se
apaixonar perdidamente pelo filme da Pequena
Sereia. Era capaz de ficar horas a ver aquilo em looping. Depois, numa visita à Disney Store do Colombo, insistiu em
comprar um conjunto com as principais princesas da Disney. Durante meses, andou
com as malfadadas bonecas atrás. Seguiu-se a tiara das princesas que vinha de
oferta numa revista… de princesas, pois claro. E foi aqui que a família começou
a achar aquilo um bocadinho esquisito. Creio que eu era a única que não me
importava de andar com ele na rua de tiara. Altivo, alheio a comentários e
risinhos maldosos, o Vasco pavoneou-se durante bastante tempo com uma tiara
lilás de plumas no cimo da cabeça. Era a coisa mais pirosa possível, mas ele adorava-a.
O cúmulo da felicidade era ver o filme da Pequena
Sereia, sentado na cadeirinha com as bonecas das princesas cuidadosamente alinhadas
à sua frente, de tiara na cabeça.
Por
insistência familiar, falei com a pediatra sobre esta paixão do Vasco. Ela desvalorizou,
outra coisa não seria de esperar. Mas perguntou-me se eu estava preocupada. Respondi que não, rigorosamente nada. Antes
da fase das princesas, tinha havido a fase da Mariza. Nessa altura, o supra-sumo
era ver os DVDs dos concertos da Mariza, com uma toalha a fazer de xaile e um
microfone na mão. Aquele pedacinho de gente, sabia as canções e a coreografia
toda de trás para a frente. Imitava cada gesto, com um rigor do detalhe
surpreendente. O que mais o emocionava era o violoncelo do Jaques Morelenbaum,
no concerto de Lisboa. Aos dois anos e meio, meteu na cabeça que queria
aprender a tocar violoncelo. Acabou por se render ao violino, mais adaptado ao
seu tamanho diminuto. Mas não se pense que a paixão pelo violoncelo desapareceu,
sete anos depois. Continua bem viva, à espera de permissão para ir aprender um
segundo instrumento.
A
fase das princesas acabou por desaparecer naturalmente, com o tempo. Aos poucos,
foi substituída pelas construções de Legos, a grande paixão herdada do irmão
que já dura há anos. O seu amor pela música mantém-se, mais forte do que nunca.
E o gosto pelas máscaras, pelos acessórios teatrais, pela encenação, nunca
desapareceu. A de encarar outros personagens também não. Todas as brincadeiras
do Vasco implicam de algum modo uma mise
en scène. Não será por isso de estranhar o seu interesse pelo ballet. Na
última aula, começaram a alinhavar ideias para o espectáculo do próximo ano.
Enquanto as meninas discutiam as entradas e os passos que farão, o Vasco
conversava com a professora sobre a escolha das músicas e do guarda-roupa. Acho
que temos ali um encenador em potência, embora ele diga que quer ser actor. O
meu amor anda a tentar convencer-me a inscrevê-lo num curso de teatro, mas
infelizmente não há tempo para tudo.
Apesar
desta sua sensibilidade de artista, o Vasco é um autêntico furação que derruba
tudo à sua passagem. Uma força bruta da natureza. Aquelas mãozinhas de ouro
continuam a partir todos os objectos, qual maldição de Midas trasvestida.
Decididamente, não tem jeito nenhum para trabalhos manuais que exijam o mínimo
de delicadeza. Bicho-carpinteiro irrequieto e trapalhão, tem uma queda nítida
para o disparate. As brincadeiras que tem com o irmão são sempre demasiado
violentas e acabam frequentemente mal, com lutas corpo a corpo e duelos com todo
o tipo de arma, espadas ou até mesmo paus. Os seus centros de interesse seguem de
perto os do irmão que adora: música clássica, história, ciências, astronomia, Star Wars, Legos… Entretanto, também
desenvolveu algumas paixões próprias, como as bandas desenhadas e os filmes do James Bond.
Este
ano, o Vasco celebra uma década de vida. Apesar de ter uma maturidade muito
grande, ainda está a anos-luz da pré-adolescência. É a criança mais feliz que
alguma vez vi. Mas consegue passar do riso à lágrima numa questão de segundos.
Capta com uma facilidade desconcertante as emoções à sua volta, de modo
completamente intuitivo. Embora nem sempre saiba como canalizar os sentimentos
alheios e isso o deixe confuso. Tem uma capacidade de atenção ao detalhe que me
deixa siderada. É muito sensível a tudo o que seja visual. Adora moda. O
programa preferido é as “Reines do Shopping”. Continua a gostar muito de acessórios
e pede-me muitas vezes para experimentar as minhas “joias” e maquilhagem.
Infelizmente, não teve muita sorte com a mãe pouco vaidosa que lhe calhou na
rifa, mas ele não se atrapalha. Dá conselhos de moda a quem o quiser ouvir. No
outro dia, pediu-lhe que lhe comprasse um verniz porque quer pintar as unhas. E
ao meu amor cravou-lhe uns óculos sem graduação.
Nós
– os adultos da casa – lidamos muitíssimo bem com esta personalidade algo peculiar
do Vasco. Vemo-la como uma característica do seu espírito de artista, nada mais.
O meu amor diz que ele é uma “pessoa original”, sendo que este é o maior elogio
que lhe podia fazer. Sinto-me profundamente aliviada e agradecida por ter encontrado
um modelo masculino para os meus filhos que está nos antípodas do machismo típico
do “macho latino”. Mas o Diogo e os amigos, com aquela rigidez de pensamento intrínseca
à adolescência, acham que o Vasco é “maricas”. O meu filho crescido teve uma
educação suficientemente liberal para me confessar, com a maior das
naturalidades, que achava que o Vasco era homossexual, embora não visse
problema nenhum nisso. Creio que não deve ser o único na família a pensar isso...
E, uma vez mais, fico feliz pela distância do nosso país de origem, que nos
permite educar o Vasco longe da pressão social, respeitando a sua personalidade
complexa. Tenho a certeza de que a nossa hétero ou homossexualidade não depende
da educação que recebemos. Mas, pelo contrário, os futuros traumas que possamos
vir a ter dependem em grande parte de uma visão preformada da vida que um dia
tentaram impor-nos à força. Muito sinceramente, não estou minimamente
preocupada com o que o Vasco é ou
deixa de ser. Aquilo que os meus
filhos farão na sua intimidade não me diz respeito. Já aprenderem a ser felizes
e bem resolvidos, é uma das minhas obrigações de mãe.
[
Para quem se interessa sobre esta temática, sugiro um filme belga autobiográfico
realizado e interpretado por Guillaume Gallienne: “Les Garçons et Guillaume, à
table!”, sobre um jovem que teve de lutar contra a homossexualidade imposta
pela família. Muito, muito, muito giro. E elucidativo. ]
Desculpa lá mas só consigo olhar para essas bochechas e pensar em roê-las :D
ResponderEliminarEra um bebé muito fofo! E aqueles dentinhos de chucha?! :)
EliminarMuitos parabéns com o filho que tem ! pode ser que seja homosexual e então ? algum problema ? nenhum ! só talvez em algumas cabeças que nem contam para nada ! - e já agora, em Portugal não seria diferente !
ResponderEliminarHonestamente, acho que essa questão não tem qualquer pertinência...
EliminarO que procurei fazer com este post foi equacionar a problemática das ideias preconcebidas pela sociedade, em geral, e pelas famílas, em particular, que impingem uma determinada sexualidade pré-formatada consoante o género da criança.