(porque quando as coisas correm mal a culpa só pode ser nossa)
O
Vasco decidiu tocar o “Lago dos cisnes” no exame final do 3º ano da Académie,
apesar de ser matéria do ano seguinte. Infelizmente, a professora de violino
concordou com a escolha ambiciosa. E eu, que o tinha visto ser prejudicado no
ano anterior por ter escolhido uma música demasiado fácil, acabei por
concordar. Contudo, tendo em conta que as divergências antigas com a professora
se agudizaram nas últimas semanas, calculei que pudessem surgir problemas. Se
dúvidas houvesse, teriam ficado dissipadas quando a professora disse claramente
ao Diogo que a nossa troca de mensagens teria consequências nos exames. Decidi,
então, arranjar alguém para ajudar o Vasco a preparar o exame de violino. A
verdade é que, com problemas ou sem eles, aulas semanais de 25 minutos são
claramente insuficientes. O Diogo ajudou o irmão todas as noites a estudar em
casa, com um desvelo que me comoveu (e uma dureza que, por vezes, me
surpreendeu). E a professora de violino contratada à última da hora fez
milagres. Minutos antes do exame, a coisa pequena tocou para nós as duas músicas que
tinha preparado. Estava excelente.
Seguindo
o conselho da professora que ajudou a preparar o exame, o Vasco não levou o CD
que acompanhava o “Lago dos cisnes”. O acompanhamento do CD era demasiado
rápido e o Vasco atrapalhava-se. Sem CD, a coisa corria de feição. No dia do
exame, a professora de violino, com um sorrisinho sádico, disse que ia
acompanhá-lo ao piano. Pela primeira vez na vida, o Vasco não me piscou o olho
antes de começar a tocar. Aliás, não olhou para mim uma única vez. Percebi que
tinha ficado completamente desnorteado com a ideia de tocar com acompanhamento,
sem ensaio prévio. A coisa pequena tocou ao ritmo dele. A professora tocou
devagar, muitoooo devagar. O
resultado foi uma espécie de cacofonia que o perturbou. Quando lhe vi o queixo
a tremer, percebi que o resto do exame estava condenado. Os erros sucederam-se.
A segunda música – obrigatória e ensaiada com acompanhamento – também lhe saiu
mal. Só quando chegou junto de nós é que deu livre curso às lágrimas. Chorou de
vergonha por ter tocado mal e chorou de raiva pela injustiça. Chorou de
tristeza por ter falhado, após tanto empenho. O Diogo – também envergonhado – evitou
olhar para ele. Eu contive as minhas próprias lágrimas a custo (e a língua
afiada também). Esforcei-me por sorrir. Disse-lhe que não era grave, que o
importante era divertir-se. A atitude carinhosa veio inesperadamente do Belga,
que abriu os braços e o aninhou. Deu-lhe os parabéns. Fez-lhe massagens nas
costas. Começou a dizer disparates para o fazer rir. A crise passou, mas a
tristeza permaneceu.
A
verdade é que a audição de violino do Vasco correu bastante mal. Mas eu fiquei
orgulhosa. Aprender a gerir a frustração faz parte da vida. Lidar com gente mal
formada também. E a coisa pequena conseguiu estar à altura. Nunca desistiu,
continuou sempre a tocar. Acho que só quem o conhecesse bem era capaz de
perceber o desnorteio. Não sei se o Vasco passará para o 4º ano. Todos os
alunos que se apresentaram a exame cometeram vários erros, o que diz bastante
sobre a qualidade da professora. Os outros alunos do mesmo ano tocaram músicas
bastante mais simples… com vários atropelos pelo meio. Eu já tinha pedido para
falar com o director, para expor o problema e pedir autorização para mudar de
professora no próximo ano. Provavelmente, as aulas passarão a ser dadas em
Stavelot ou Malmedy, a vários quilómetros de nossa casa. Mas é impensável
continuar com aquela professora, que nunca soube dar um elogio ao Vasco em dois
anos de aulas. Como se fosse possível evoluir na crítica…
Entretanto,
o Vasco já esqueceu o incidente (mas não voltou a pegar no violino). Eu continuo
mortificada. A culpa… sempre a sacrossanta culpa materna a corroer-me por dentro.
Revejo as minhas justificações, uma e outra vez. O meu amor já não deve
poder ouvir falar neste assunto, mas arranja sempre algo novo para dizer. Eu devia
ter tentado arranjar outra professora, no ano passado. Mas a implantação da
Académie em Salmchâteau fica mesmo a 5 minutos de nossa casa. E se o tirasse do
violino, também teria de arranjar outra professora de solfejo para ambos. Isso
representaria centenas de quilómetros semanais, entre as várias idas e vindas. O
Diogo disse-me que queria terminar o curso ali… Devia ter obrigado um filho a
seguir o outro? Quer dizer… acabei mesmo por obrigar um filho a seguir o outro,
quando decidi que continuavam ambos em Salmchâteau. Talvez não devesse ter
enviado aquela mensagem, há duas semanas. Releio-a vezes sem conta. Não
insultei a professora, como ela diz. Três pontos de exclamação não podem ser
considerados um insulto. A verdade é que o Vasco faltou à última aula antes do
exame de solfejo, porque a professora se enganou. Eu limitei-me a dizer-lhe
isso mesmo. Talvez devesse tê-lo feito sem exclamações… Ou talvez devesse ter
logo falado com o director. Devia ter insistido mais.
Eu
sei que devia concentrar-me no facto de o meu filho pequenino já conseguir
tocar o “Lago dos Cisnes” e na felicidade que isso lhe proporciona. Sei que é
extremamente importante aprender a lidar com a frustração e a decepção, faz
parte do crescimento. Chumbar um ano não é assim tão grave. Devia ficar
contente por o Diogo ter ajudado o Vasco noites a fio a ensaiar. É muito bonito
ver a relação dos dois irmãos crescer num universo musical exclusivo. Devia
esquecer tudo o resto e lembrar-me apenas do sentimento de gratidão profunda
que senti, no dia do exame, quando meu amor lhe soube dar colo e secar as
lágrimas. Eu sei que devia… mas não consigo. Fiquei presa algures no vórtex da
culpa materna.
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