(onde uma decisão política nos obriga a mudar de paradigma
e o resultado fica à vista)
Hoje
é o dia internacional da trissomia 21. Para nós é o dia das famílias. Uma
desculpa perfeita para os profissionais da associação onde trabalho conviverem
com as famílias que têm um cromossoma a mais. Ao longo dos anos, a fórmula
foi-se aperfeiçoando. Deixámo-nos de grandes celebrações. Ficou apenas o essencial.
Um local despretensioso onde nos podemos encontrar. Um lanche onde cada um traz
o que quer. Umas horas de descontracção e de conversa. Sobre a trissomia ou nem
por isso.
Levo
sempre os meus filhos comigo. Acho importante terem contacto com outras
realidades. E fazerem voluntariado. Inicialmente, o Diogo era algo renitente. A
deficiência perturba-o. Quatro anos depois, já lhe passou. Tem imenso jeito
para os miúdos pequeninos e uma paciência sem fim para os nossos jovens. Alguns
são teimosos como uma mula, têm isso em comum. O Vasco ficou para nos anais da
história da associação quando, após passar uma tarde inteira a brincar com várias
crianças com trissomia 21, comentou que tinha passado um dia
espectacular… só estranhava não ter visto nenhum menino deficiente! Tinha sete
anos. O que mostra bem que a diferença é puramente subjectiva. As crianças nem
sequer a vêem.
No
Domingo passado, decidi deixar o binómio em casa e aproveitei para passar um
dia mãe-filho grande. A verdade é que o Vasco estava absolutamente estafado com
tantas horas de ensaios. Mais os espectáculos, propriamente ditos. E eu queria
falar a sós com o filho crescido. Com o filho adolescente. Às vezes, tenho de obrigá-lo
a crescer um bocadinho. É uma chatice. A técnica de ataque é sempre a mesma e
ele já a conhece de ginjeira: apanho-o dentro do carro e começo a falar sem me
calar. Ele não pode fugir e não há nada que o distraia, por isso o sermão é absorvido
por inteiro. Sem interferências, nem filtros de qualquer espécie. É uma
economia considerável de tempo e energia, acreditem. E teve resultados quase imediatos.
Amanhã, em vez de passar a tarde encafuado com a namorada no home cinema a ver “Senhor dos Anéis”
pela enésima vez, vão até Liège de comboio ao cinema. E na sexta-feira vem
comigo ver uma nova escola, com o espírito “mais aberto” por assim dizer…
Fomos
dos primeiros a chegar para ajudar nos preparativos. Pouco depois, o marido da
minha chefe apareceu com o Frédéric. Que fez questão de se apresentar, todo despachado.
Tem 48 anos. A mãe já morreu. Vive e trabalha em Bruxelas. Gere um orçamento de
50 euros por semana. Segundo ele, não é nada mau. Quando recebeu o e-mail a anunciar o “Dia das Famílias”
ficou muito feliz. Há dois anos, tinha acabado de ser operado. No ano passado,
tinha partido uma perna e não tinha podido vir. Com muita pena. Por isso,
desta vez, telefonou logo ao secretariado para saber como poderia ir da estação
dos comboios até à quinta onde ia decorrer a festa. Tem uma aplicação com o
horário dos comboios no telemóvel, que o ajuda imenso. O pior são os autocarros,
é mais complicado. Mas o Paul tinha sido muito simpático em ir buscá-lo à
estação. Talvez durante o lanche conhecesse alguém que viesse de Bruxelas e o
pudesse levar de carro. Só tinha comprado o bilhete de comboio de ida já a
pensar nessa eventualidade. Trazia uma mochila vazia às costas. Tinha comido
bastante antes de sair de casa, para não ir carregado com o farnel. Assim,
podia levar vários folhetos e alguns números da nossa revista. Dava-lhe jeito
ter mais uns quantos para distribuir. É que ele faz parte de diversos “groupes de parole”, inclusivamente no
Norte de França. Decidiu dedicar os seus tempos livres a isso. Porque percebeu
que dava esperança aos pais de crianças com trissomia 21. Mostrava-lhes que se
pode passar por cima da deficiência. Que se pode ultrapassar a deficiência. Que
é possível ter uma existência tão banal e preenchida como as outras. Uma vida
útil. “A trissomia não é limitativa”, explicou-nos.
Fiquei
impressionada por este discurso tão lúcido. Ficámos todos, à sua volta. Principalmente
porque ele tinha razão no que dizia. Os pais dos miúdos pareciam convergir na
sua direcção como se fossem atraídos por um íman. Falou com novos e velhos
sempre de maneira diferente, adaptando o seu discurso. Não tenho dúvidas que
cada um de nós faz o seu trabalho o melhor que pode, com o mesmo objectivo: a
inclusão da pessoa com deficiência na sociedade. Membros dirigentes e administrativos,
psicólogos, assistentes sociais, terapeutas da fala, fisioterapeutas,
educadores… e eu, no centro de documentação. Mas ninguém trabalhou tanto e foi
tão útil quanto o Frédéric, naquela tarde. E isto só foi possível porque o
Governo belga teve a inteligência de lançar um decreto que obriga todas as
organizações que, de algum modo, lidam com a deficiência a incluir um núcleo de
deficientes nos comités de gestão. No início, a notícia caiu como uma bomba.
Depois, começámos a agir. Há dois anos que andamos a formar um grupo de pessoas
com diferentes deficiências para serem representantes oficiais. O difícil não
foi pô-las a pensar… o maior desafio foi ensiná-las a sistematizar as suas
próprias ideias. O nosso objectivo nunca foi criar um grupo de fantoches que só
servisse para fazer figura de corpo presente. E daquilo que nos é dado a
observar, as outras associações também estão a encarar com imensa seriedade e
responsabilidade esta mudança legislativa. De facto, não podemos querer mudar a
sociedade sem antes mudarmos a maneira como nós próprios, em primeira linha,
lidamos com os deficientes. Temos de ser a sua voz, como sempre fomos. Mas
temos igualmente de aprender a ouvi-los. E foi com enorme prazer que começámos a ver o fruto do trabalho destes últimos anos, ao
ouvir o Frédéric falar com as pessoas presentes no dia das famílias.
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