(onde se aprende uma lição)
Coisa
pequena andou dois anos a “desaprender” violino, como diz a nova professora.
São coisas que acontecem em qualquer processo de aprendizagem. Às vezes, por
força das circunstâncias, anda-se para trás. Até que o director da academia deu
autorização para o Vasco mudar de professora. Na Bélgica, o ensino musical
oficial é bastante rígido… nada que uma mãe tuga enfurecida não consiga
contornar. Suponho que também devo ter marcado pontos ao mostrar-me disponível
para fazer 60 km, de modo a evitar o ser execrável que dá aulas na dependência
de Vielsalm.
Em
Setembro, o Vasco começou uma nova etapa. A mais sofrida da sua existência. É
um miúdo bafejado pela sorte, essa é que é essa. Basta-lhe ouvir a matéria uma única
vez, consegue compreender e reter de imediato. O estudo não é para aqui chamado.
O esforço também não. E as mossas no ego muito menos. Custou-lhe horrores
admitir que não estava à altura do que seria esperado no 4.º ano. Teve de se
adaptar a um novo violino, consideravelmente maior. Teve de recuar no livro e
voltar a tocar partições antigas. Teve de corrigir vícios entranhados. A posição
do braço, cotovelo, pulso, mão, dedos. Uma e outra vez. Fisicamente foi bastante
duro. Psicologicamente foi muito mais. Até porque a nova professora utilizou
uns métodos algo espartanos. Também a mim me custou vê-la destruir este miúdo,
semana após semana. As críticas eram ásperas e magoavam-no imenso. Houve dias
em que o Vasco saiu da aula com a alma aos pés. Creio que muito poucas crianças
teriam resistido. Eu sou adulta, mas sou mãe. E a dada altura, disse-lhe que
podia desistir. Que o violino devia ser uma fonte de prazer, não de tortura.
Que ninguém podia obrigá-lo a tocar todos os dias com espírito de missão. A
única obrigação que ele tinha era a escola.
Mas
o Vasco foi mais forte do que eu. Foi mais forte do que todos nós, que
sentíamos o coração encolhido, sempre que ele arrancava uns sons dilacerantes daquele
pobre violino. Este inverno foi interminável em vários sentidos. Para ser
totalmente honesta, devo confessar que o filho pequeno me deu uma lição de
espírito de sacrifício. E de auto-confiança. O Vasco manteve uma fé inabalável
na sua capacidade de superação. Acreditou quando mais ninguém acreditava. E
conseguiu. À sua maneira, claro. Uma mistura equilibrada de muito trabalho e de
uns pozinhos de magia. Começou a prestar atenção às aulas da aluna bastante
mais avançada do que ele, que antecedem as suas. E pôs a lendária memória de
elefante ao serviço da causa. Socorreu-se do Youtube para ver vídeos. Na semana
seguinte, reconhecia as músicas e os erros habituais da colega já adulta.
Começou a fazer pequenos comentários. A inundar de perguntas professora e aluna,
com uma sede de conhecimento que comoveu ambas. Aos poucos, foi melhorando. E
de permeio conseguiu conquistar a professora.
Há
uns tempos, vi-o chegar aos pulinhos. Mal entrou no carro disse-me que a
professora tinha comentado toda contente “Este é o meu aluno!”, quando ele fez
um dos seus já habituais comentários sobre as músicas da colega. Foi o ponto de
viragem. A partir dali, instalou-se uma dinâmica positiva e o ensino começou a
fluir. O violino deixou de ranger todas as noites. O sofrimento desapareceu
para dar lugar ao trabalho, apenas e só. Mas o Vasco manteve a operação de charme...
Hoje,
os alunos da professora foram dar um pequeno concerto. Eram vários alunos de diferentes
anos, principalmente principiantes. E um conjunto de cordas, composto por malta
mais crescida. O local escolhido foi algo inusitado… um lar de idosos. O Vasco
explicou-me tudo direitinho, com grande seriedade: era um público pouco
exigente. O público ideal, a bem dizer da verdade. Não poderiam tocar trechos
muito longos, porque a capacidade de concentração dos velhotes é bastante
reduzida. Parece que adormecem com facilidade. Se desafinassem não havia
qualquer problema, pois os problemas auditivos são comuns na terceira idade. De
qualquer modo, acontecesse o que acontecesse, haviam de ficar todos contentes
por terem animação à hora do lanche. E diz que os velhotes acham sempre piada
às crianças. A maior parte das mães (sim, somos quase sempre mães…), pôs-se em
debandada. Eu desenrasquei com esforço um cantinho, no meio das cadeiras de
rodas. Fiquei entalada entre dois velhotes muito cómicos, tive de conter umas
quantas gargalhadas valentes. E ainda tive direito a um cafezinho.
Houve
alguns miúdos nervosos, mas o concerto foi um êxito. Lá está… o público foi bem
escolhido. Bateram muitas palmas (algumas antes do final das músicas, outras a
meio e mais umas quantas a despropósito). No fim do espectáculo, desfizeram-se
em elogios. Inclusivamente a mim, quando me viram sair com um violino às costas,
do alto do meu metro e meio de gente. Parece que tenho muito jeito... O Vasco
só tocou uma música, acho que a professora não quis arriscar. Mas tocou-a
extremamente bem. Com aquele seu à-vontade, que contrastava com todos os
outros. A professora veio falar comigo depois. Estava espantada. Diz que ele brilha
quando toca em público. “É uma força da natureza em ponto pequeno.” Aproveitei para lhe
agradecer o que tem feito pelo Vasco. “Temos conseguido recuperar o tempo
perdido, hein?”, disse-me. Pois… isso a mim pouco me importa. O que me
interessa verdadeiramente é ver que o meu filho voltou a tocar com alegria. Que
está feliz e motivado. Expliquei-lhe que não fazia mal, se fosse preciso
chumbar de ano. A professora respondeu que ainda tínhamos muito tempo, antes do
exame de final de curso, no próximo ano. Que logo se via. De qualquer modo, não
era um chumbo, era um “ano joker” para se aperfeiçoar. A ideia agradou-me. A
ela, nem por isso. Acha que não vai ser preciso. O Vasco é um lutador,
explicou-me. O seu amor pela música vai muito para além do violino. Raras vezes
viu um aluno tão trabalhador. Que se eu não me importasse de o levar aos
ensaios, para o ano queria que ele fizesse parte do conjunto de cordas. Aceitei
o convite, meia atordoada. Sobretudo, envergonhada. Porque eu não acreditei no
Vasco. Porque me custou vê-lo sofrer. Porque achei que talvez fosse melhor
desistir do violino. Fiquei envergonhada por não ter conseguido ser a mãe que
ele merecia.
[
pelo menos, desta vez, lembrei-me de levar a máquina fotográfica… estou em
franca melhoria! Comoveu-me ver a professora de cócoras ao lado do Vasco, como
se estivesse a transmitir pensamentos positivos ]
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