sexta-feira, 3 de março de 2017

Uma miúda feliz apesar dos pesares

(onde a vida dá voltas e reviravoltas, 

enquanto nós aprendemos a ser felizes)



Estávamos na palhaçada na cozinha, como sempre. Filho crescido tinha vindo farejar e ver se roubava alguma coisa à socapa. Eu estava a tentar escorraçá-lo, para ver se conseguia acabar o jantar. De repente, diz-me: “Mãe, tu não mudaste nada! Desde que sou pequeno e me lembro de ti, continuas igualzinha! Parece que não envelheces, ainda tens ar de miúda. Mas mais feliz. Agora, pareces uma miúda feliz!”.

Pensei em todos os anos em que me deixei ficar. Em que me arrastei. Convencida de que os miúdos iam sofrer por serem filhos de pais separados. Convicta de que não conseguiria fazer isto sozinha. Que estúpida fui! Como se as crianças não soubessem ver para lá do nosso fingimento. Como se conseguíssemos enganá-las. Os olhos dos filhos são papel químico que reflete com uma precisão espantosa o nosso estado de alma. Porque este é o reverso da medalha, que ninguém ousa apontar: uma mãe infeliz cria filhos infelizes. E inexplicavelmente doentes. O Diogo, que sempre foi uma criança doente, há cinco anos que vende saúde. E eu, que tinha crises cíclicas de herpes e uma inflamação crónica nos olhos, há cinco anos que não tenho rigorosamente nada. Por isso, não fui só eu que me tornei uma pessoa feliz. Os rapazes também. Uma mãe feliz cria filhos felizes. O Diogo ensinou-me isto.

Mas melhor do que ser feliz e apaziguada comigo própria e com a minha vida, é ver que o Diogo consegue perceber isso. E sincronizar no mesmo comprimento de onda. Nesta casa, há dias difíceis. Há demasiados gritos, porque eu barafusto bastante. Em alto e bom som. Só que também há muitas gargalhadas. Beijos melados e abraços apertados. Conversas intermináveis. Amor a rodos. Há tempo para cada um de nós e para a tribo, no seu conjunto. Há tempo para o casal e há tempo apenas para os filhos. Para cada um dos nossos rapazes. Sobretudo, há uma honestidade de sentimentos. E isto é essencial. O que o Diogo vê todos os dias não é uma miúda tolamente feliz. É uma miúda feliz apesar de tudo o resto. E acreditem que esse apesar de, por vezes, é imenso. Mas penso que ensinar os nossos filhos a serem felizes apesar de é uma das melhores lições que lhes podemos dar para a vida.


Não era suposto os rapazes passarem estas férias de Carnaval na Bélgica. O meu pai ofereceu-lhes as passagens de avião para irem visitá-lo, aproveitando os poucos dias de férias que têm direito a passar comigo. Avô e netos não se vêem há ano e meio. Para além disso, o bisavô está muito velhinho. Tem quase 90 anos. O grande objectivo desta viagem seria irem visitar o bisavô, enquanto ainda se consegue recordar deles. Obviamente houve quem se lembrasse de intimidar e ameaçar a nossa família, atropelando todos os planos cuidadosamente preparados há meses. Após anos a fio desta guerra, já ninguém tem paciência para enfrentar fugas e perseguições rocambolescas. Aconteça o que acontecer, todos temos muito claro que o mais importante é tentar manter uma aparência de normalidade, na vida destas crianças. E, já agora, de todos nós. Por isso, ficaram. Tristes e zangados, mas ficaram. Infelizmente, nem sequer se pode dizer que tenham ficado surpreendidos. Já sabem o que a casa gasta. A outra casa, bem entendido. Mas à noite, sozinhos na sala a ver já não sei que programa, o Diogo e eu ríamos. Gozávamos com a situação. E ele disse-me, num relance de clarividência bastante adulto: “Às vezes, fico surpreso por ver como conseguimos sair tão normais, no meio disto tudo. Deve ser porque conseguimos rir da situação.” Acho que ser feliz apesar de é isto mesmo.

[ à maluca que teve a coragem de partir com estes dois rapazinhos, 
dizer-lhe que a aposta está ganha! ]

2 comentários:

  1. «Mas à noite, sozinhos na sala a ver já não sei que programa, o Diogo e eu ríamos. Gozávamos com a situação. E ele disse-me, num relance de clarividência bastante adulto: “Às vezes, fico surpreso por ver como conseguimos sair tão normais, no meio disto tudo. Deve ser porque conseguimos rir da situação.” (...)»
    Eu também fico surpreendido por isso. Quando fui passar um mês e meio às Ardennes (e arredores), dos quais 15 dias essencialmente com os dois miúdos, foi mesmo para perceber isso. E, apesar da ida macaca tua e de uma criança grande - mas criança - à Polícia (para depor num processo aberto pela parte cuja culpa eu tinha visto, em fotos, sem lugar para dúvidas) o que mais me surpreendeu nesse período (além de não ter tido Verão :-( ) foi o equilíbrio deles...
    E agora, apesar de já nem me ser fácil voltar aí, pois muitas companhias de aviação não gostam de quem leve oxigénio a bordo, a única coisa que me preocupava não eram as ameaças patetas a mim, que posso bem com isso, como pude com a PIDE que era com certeza pior e não me impediu de fazer o que fiz (mas se calhar esses agentes até se preocupavam mais com os filhos deles do que civis patetas); o que me preocupava era aceitar condições em que malucos podiam obrigar de novo crianças a confrontarem-se com situações como a que criou a tal ida à prisão...
    Ainda bem que se riram disso. Mas espero que se riam, mas percebam, pois esta cena é "risível", mas é também lamentável, revela completa falta de respeito pelos filhos e não tem mesmo graça nenhuma!
    Mas, enfim, vivem-se tempos Trumpianos e os "brancos" falam e actuam de acordo com isso...

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    1. Não rimos do facto de terem sido impedidos de viajar... rimos dos estratagemas mirabolantes que se arranjam e, principalmente, dos "autores" maquiavélicos dos ditos estratagemas. É tudo muito triste, mas continuo a pensar que é mais saudável tentar lidar com isto através do riso. A brincadeira permite às crianças dizerem imensas coisas que nunca teriam coragem de verbalizar.

      PS: Acreditas que um dos meios de pressão para me fazer mudar de ideias (ou por outra, para convencer os rapazes a fazerem-me mudar de ideias) foi dizer que tinha permitido que a acusação de maus tratos fosse arquivada?! Parece que seria prova de boa fé...

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