(onde um momento de horror se transforma em amor)
O
Vasco foi arrancar um dente. Um molar que nasceu torto e nunca se endireitou.
Literal e metaforicamente falando. Quando este problema começou, há quase ano e
meio atrás, pedi a opinião do meu sogro. Mas foi só mesmo um parecer. Ou dois. Nunca
quis misturar as coisas. Os tratamentos foram sempre feitos por outros
profissionais. Até que o endodontista disse: “extracção”. E o meu coração
encolheu. Até que o ortodontista disse: “extracção”. E o meu coração ia
deixando de bater. Até que o dentista disse: “extracção”. E eu pus o coração ao
alto e recorri ao meu sogro.
A
verdade é que tudo mudou, neste lapso de tempo. Graças ao Vasco, devo confessar.
Quando digo que o filho pequeno faz magia, acho que ninguém acredita. Suponho
que é preciso conhecê-lo bem para perceber. Tem uma espécie de charme
intrínseco que desfaz as barreiras à sua volta. Que cria pontes. Que vai ao
encontro das pessoas. Que cativa. Entre o Vasco e os pais do meu amor foi
paixão à primeira vista. Enquanto eu me mantinha ferozmente distante, coisa
pequena aproximou-se descaradamente. Tornou-se da casa. Às tantas, fica muito difícil
não gostar de quem gosta tanto de um filho nosso. Quer dizer, não é que eu não
gostasse. Só não queria era ter de sentir afecto por obrigação. Fi-lo durante
demasiados anos e sei bem o que me custou. Mas, graças ao Vasco, acho que
começámos todos a gostar uns dos outros antes mesmo de haver lugar para grandes
convívios. E, quando aos poucos comecei a baixar a guarda, foi como se já nos
conhecêssemos há muito tempo. Afinal, temos dois amores em comum…
Assisti a uma das cenas mais ternurentas da minha vida. Tinha tudo para ser pavorosa e, no entanto, foi de uma beleza comovente. Eu estava nervosa. Não
consegui comer o dia todo, tinha o estômago embrulhado. Acabei por ficar de
fora. Envergonhada, mas fiquei. Achei melhor não insistir, não fosse desmaiar
durante o processo. Deixei-me estar no escritório, a espreitar a cena pela
porta entreaberta. O meu sogro escondia discretamente os instrumentos que ia
tirando, virando-se de costas para o Vasco. A minha sogra deslocava-se
estrategicamente, para não assustar. Parecia uma dança coreografada ao
pormenor. E iam falando, falando, falando. O Vasco estava descontraído.
Distraído. O meu amor ficou o tempo todo de cócoras, ao lado da cadeira, a
dar-lhe a mão. A ser apenas presença. E aquela família, que não é minha, tratou
um dos meus como se fosse. Demoraram muito tempo. O tempo mais do que
necessário. O meu sogro teve o cuidado de cortar o molar ao meio. Tirou uma
parte e, depois, a outra. Sem recorrer aos alicates torcionários. Nada
fazia medo. Não ouvi um único gemido. Não vi uma lágrima. Só confiança e amor.
No
final, insisti para pagar. Tive de insistir muito. Sou coerente com o facto de detestar
que me peçam “favorzinhos”. No dia seguinte, o meu sogro ligou para saber do
seu “encantador paciente”. E eu fui apanhada de surpresa, a meio do jantar.
Mais tarde, com calma, mandei uma mensagem a agradecer. Porque o trabalho tem
um custo. Mas a simpatia e o cuidado com que tratam o meu filho pequeno não têm
preço.
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