sábado, 4 de outubro de 2014

A rua

(onde fui tão feliz em criança)


Nasci e cresci em Lisboa. No meio da cidade e, no entanto, tão perto do campo. Uma simples linha do comboio separava-nos de Monsanto. Naquele tempo, as crianças andavam em grupo à solta na rua. Era assim que nós lhe chamávamos: “A rua”. Abria a porta de casa e gritava: “Vou para a rua!”. E ia, simplesmente. A rua tanto podia ser as traseiras do meu prédio, como toda a zona que ia das portas de Benfica ao Jardim Zoológico. Ou Monsanto, lugar interdito que supostamente não podíamos explorar. A garagem do meu prédio, onde esvaziávamos os pneus dos vizinhos com quem implicávamos. Os terraços dos prédios ao lado, onde testávamos a pontaria com ovos roubados em casa à socapa. A rua era também as casas uns dos outros, onde éramos visita frequente.

Ninguém em casa sabia muito bem por onde eu andava. Sem telemóveis, nem supervisão de irmãos mais velhos. O grupo das minhas irmãs era outro e o seu território também. A minha única obrigação era voltar à hora das refeições. O papo-seco com manteiga e açúcar podia ir comê-lo para a rua, mas a hora do jantar era sagrada. Às 19h30, em ponto. Sempre fui uma exímia perdedora de relógios (e de chaves de casa e de passes e de módulos de autocarro, que substituíam o passe desaparecido até ao final do mês). Safavam-me os gritos das mães dos outros, que viviam muitos andares abaixo do nosso: “Ó não-sei-quantos, anda jantar!”.

Éramos muitos. Não sei quantos. Rapazes e raparigas, de idades diferentes. Vizinhos, amigos desde sempre. Muitas vezes, amigos de segunda geração, dado que os nossos pais já eram amigos ainda antes de nascermos. A esses chamávamos “primos”. Uns tinham as mesmas origens, outros vinham de meios completamente diferentes. Havia os filhos únicos e os que tinham 7 irmãos. A única coisa que nos unia era o espaço físico que partilhávamos. As coordenadas geográficas. A infância comum. As aventuras e os castigos quando éramos apanhados. Alguns apanhavam tareias de cinto. Eram os mesmos que vestiam a roupa que deixava de nos servir e que não tinham dinheiro para comprar bolos na padaria, quando a fome apertava e não tínhamos ninguém em casa. Mas os disparates que nos passavam pela cabeça eram os mesmos. Fazer telefonemas anónimos, gozar com os donos das lojas da zona, roubar pastilhas Gorila no supermercado, saltar a fogueira no Santo António mesmo no meio, descobrir grutas em Monsanto, espiar vizinhos “suspeitos”. Adoptar cães abandonados. Desde que me lembro, a nossa rua tinha sempre um cão. O cão de todos. O cão da rua.

Passei muitos meses à janela a vê-los brincar lá em baixo. Já os conhecia quase todos, claro. Uns melhor do que outros. Mas demorei mais tempo a ter autorização para ir brincar para a rua “sozinha”. Um dia, o meu pai chegou e viu-me empoleirada em cima da mala de trabalho dele a espreitar a rua. Perguntou-me se eu também queria ir brincar para a rua. Não sei porquê, nunca lhe tinha pedido. Mas, nesse dia, levou-me pela mão até lá. Dirigiu-se a uma menina mais velha e apresentou-me. “Esta é a Rita. Quando ela quiser, podes levá-la a casa?” Assim, sem mais. Eu tinha 5 anos. Nesse dia, a rua passou a ser também minha.

A Ângela só me levou a casa no primeiro dia. Depois, tive de me desenrascar sozinha. Por sorte, o meu prédio tinha uma espécie de assentos de mármore à entrada, onde eu me encavalitava para tocar à campainha da porta. O pior eram os elevadores. Sempre fui muito pequenina e só consegui chegar ao botão do 9.º andar muitos anos depois. Primeiro, comecei por subir as escadas a correr, mas morria de medo quando a luz se apagava. Eu também não conseguia chegar ao botão do patamar para voltar a acendê-la. Depois, descobri uma técnica que fui aperfeiçoando. Começava por carregar no botão do 5.º andar, o máximo onde chegava. Depois, enquanto o elevador subia, saltava o mais que podia até chegar ao botão do 9.º. Se, quando chegasse ao 5.º, ainda não tivesse conseguido tocar no botão do meu andar, tinha mesmo de continuar a subir a pé pelas escadas, porque a luz do elevador apagava-se automaticamente. Um dia, não sei porquê, esqueci-me de saltar e saí no 5.º a pensar que estava no meu andar. Distraída como era, só dei pelo erro quando uma velhota que eu nunca tinha visto me abriu a porta. Apanhei um susto tão grande, por pensar que tinha entrado noutra dimensão, que nunca mais me esqueci dos meus saltos. Sim, essa era a época em que víamos a “Quinta Dimensão” todos juntos na sala à noite.

[ Ontem fomos ao parque no final da tarde com o Vasco. Enquanto namorávamos afastados num banco, vi-o fazer dois novos amigos com aquele à-vontade que só as crianças têm. Ainda estiveram um bom bocado na brincadeira. E ao vê-los a correr livres por ali, bicicletas atiradas uma para cada lado, lembrei-me da minha infância. Lembrei-me da minha rua e dos meus amigos. Uns ainda hoje são meus amigos, outros a vida encarregou-se de nos separar. Muitos foram levados pela droga, pela Sida... Senti uma moinha de saudades no coração. ]

Sem comentários:

Enviar um comentário