(onde
fui tão feliz em criança)
Nasci
e cresci em Lisboa. No meio da cidade e, no entanto, tão perto do campo. Uma
simples linha do comboio separava-nos de Monsanto. Naquele tempo, as crianças
andavam em grupo à solta na rua. Era assim que nós lhe chamávamos: “A rua”.
Abria a porta de casa e gritava: “Vou para a rua!”. E ia, simplesmente. A rua
tanto podia ser as traseiras do meu prédio, como toda a zona que ia das portas
de Benfica ao Jardim Zoológico. Ou Monsanto, lugar interdito que supostamente
não podíamos explorar. A garagem do meu prédio, onde esvaziávamos os pneus dos
vizinhos com quem implicávamos. Os terraços dos prédios ao lado, onde testávamos
a pontaria com ovos roubados em casa à socapa. A rua era também as casas uns dos
outros, onde éramos visita frequente.
Ninguém
em casa sabia muito bem por onde eu andava. Sem telemóveis, nem supervisão de
irmãos mais velhos. O grupo das minhas irmãs era outro e o seu território
também. A minha única obrigação era voltar à hora das refeições. O papo-seco
com manteiga e açúcar podia ir comê-lo para a rua, mas a hora do jantar era
sagrada. Às 19h30, em ponto. Sempre fui uma exímia perdedora de relógios (e de chaves de casa e de passes e de módulos
de autocarro, que substituíam o passe desaparecido até ao final do mês).
Safavam-me os gritos das mães dos outros, que viviam muitos andares abaixo do
nosso: “Ó não-sei-quantos, anda jantar!”.
Éramos
muitos. Não sei quantos. Rapazes e raparigas, de idades diferentes. Vizinhos,
amigos desde sempre. Muitas vezes, amigos de segunda geração, dado que os
nossos pais já eram amigos ainda antes de nascermos. A esses chamávamos “primos”.
Uns tinham as mesmas origens, outros vinham de meios completamente diferentes. Havia
os filhos únicos e os que tinham 7 irmãos. A única coisa que nos unia era o
espaço físico que partilhávamos. As coordenadas geográficas. A infância comum.
As aventuras e os castigos quando éramos apanhados. Alguns apanhavam tareias de
cinto. Eram os mesmos que vestiam a roupa que deixava de nos servir e que não
tinham dinheiro para comprar bolos na padaria, quando a fome apertava e não
tínhamos ninguém em casa. Mas os disparates que nos passavam pela cabeça eram
os mesmos. Fazer telefonemas anónimos, gozar com os donos das lojas da zona,
roubar pastilhas Gorila no supermercado, saltar a fogueira no Santo António
mesmo no meio, descobrir grutas em Monsanto, espiar vizinhos “suspeitos”.
Adoptar cães abandonados. Desde que me lembro, a nossa rua tinha sempre um cão.
O cão de todos. O cão da rua.
Passei
muitos meses à janela a vê-los brincar lá em baixo. Já os conhecia quase todos,
claro. Uns melhor do que outros. Mas demorei mais tempo a ter autorização para
ir brincar para a rua “sozinha”. Um dia, o meu pai chegou e viu-me empoleirada em
cima da mala de trabalho dele a espreitar a rua. Perguntou-me se eu também
queria ir brincar para a rua. Não sei porquê, nunca lhe tinha pedido. Mas, nesse
dia, levou-me pela mão até lá. Dirigiu-se a uma menina mais velha e
apresentou-me. “Esta é a Rita. Quando ela quiser, podes levá-la a casa?” Assim,
sem mais. Eu tinha 5 anos. Nesse dia, a rua passou a ser também minha.
A
Ângela só me levou a casa no primeiro dia. Depois, tive de me desenrascar
sozinha. Por sorte, o meu prédio tinha uma espécie de assentos de mármore à
entrada, onde eu me encavalitava para tocar à campainha da porta. O pior eram
os elevadores. Sempre fui muito pequenina e só consegui chegar ao botão do 9.º
andar muitos anos depois. Primeiro, comecei por subir as escadas a correr, mas
morria de medo quando a luz se apagava. Eu também não conseguia chegar ao botão
do patamar para voltar a acendê-la. Depois, descobri uma técnica que fui
aperfeiçoando. Começava por carregar no botão do 5.º andar, o máximo onde chegava.
Depois, enquanto o elevador subia, saltava o mais que podia até chegar ao botão
do 9.º. Se, quando chegasse ao 5.º, ainda não tivesse conseguido tocar no botão
do meu andar, tinha mesmo de continuar a subir a pé pelas escadas, porque a luz
do elevador apagava-se automaticamente. Um dia, não sei porquê, esqueci-me de
saltar e saí no 5.º a pensar que estava no meu andar. Distraída como era, só dei pelo erro quando uma
velhota que eu nunca tinha visto me abriu a porta. Apanhei um susto tão grande,
por pensar que tinha entrado noutra dimensão, que nunca mais me esqueci dos
meus saltos. Sim, essa era a época em que víamos a “Quinta Dimensão” todos
juntos na sala à noite.
[
Ontem fomos ao parque no final da tarde com o Vasco. Enquanto namorávamos
afastados num banco, vi-o fazer dois novos amigos com aquele à-vontade que só
as crianças têm. Ainda estiveram um bom bocado na brincadeira. E ao vê-los a
correr livres por ali, bicicletas atiradas uma para cada lado, lembrei-me da
minha infância. Lembrei-me da minha rua e dos meus amigos. Uns ainda hoje são
meus amigos, outros a vida encarregou-se de nos separar. Muitos foram levados
pela droga, pela Sida... Senti uma moinha de saudades no coração. ]
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