(onde
se mostra que os adultos também fazem birras)
O
céu parece chumbo. Chove há dias sem parar. Está frio. O meu amor sorri. “Gosto
de dias assim, sente-se o aconchego do lar”. Eu cá não sinto nada, nem os meus
próprios pés… Estou cada vez mais portuguesa, para mal dos meus pecados. Espanto
a neura a ver as fotografias do passeio que fizemos no último fim-de-semana de
Setembro. O Verão ainda se estava a despedir e, depois de muita hesitação,
decidimos aproveitar… apesar do clima tempestuoso que se vivia nesta casa.
É
que há dias assim. Dias em que os miúdos acordam com os pés de fora e só nos
apetece fugir. Explosões de mau-humor à mínima contrariedade, discussões
constantes, brigas feias. Violência, mesmo. Pensámos seriamente em desistir do
passeio que tínhamos programado. Mas a outra opção era amarrá-los e amordaçá-los,
portanto, decidimos arriscar. No
carro, mais discussões. Porque um invadia uns míseros centímetros do espaço do
outro. Porque um jogava numa consola e o outro não tinha trazido nada. Porque um
detestava a música que passava na rádio e tínhamos de pôr mais baixo. Porque o outro
adorava a música que passava na rádio e tínhamos de pôr mais alto. Mais alto...
Ainda mais alto...
A
hora e pouco que nos separava de Viaden, no Luxemburgo, foi um verdadeiro
suplício. Eu olhava de soslaio para o meu amor, à espera de uma explosão. Amo
os meus filhos de paixão, mas estava capaz de os atirar pela janela. Tentei
falar calmamente, chamá-los à razão. Ralhei. Castiguei. Tirei consolas e
telemóveis. Gritei. Nada, o resultado era zero. Por volta das duas da tarde,
capitulei. Decidi adoptar a atitude estoico-heroico-zen do meu amor. Que se
matassem um ou outro, queria lá saber.
A
chegada à Vianden só tirou o fôlego aos adultos. Tínhamos visto uma maquete do
castelo no museu de Clervaux e andávamos há meses a sonhar com este passeio. As
expectativas não eram grandes, acho que estávamos ambos demasiado exaustos. Mas, para
além do enorme castelo que se vislumbrava no cimo de um monte, a cidadezinha rodeada
pelo rio Our era linda. Havia imensas coisas para fazer e tão pouco tempo. Tínhamos
perdido metade do dia com discussões.
Num outro
monte ao lado do castelo, havia um teleférico. Num instantinho, púnhamo-nos lá
em cima. Depois, era só fazer o resto do percurso a pé pelo meio dos bosques
até ao castelo. A malta começou a animar-se. O Vasco estava com nervoso miudinho,
mas numa excitação doida com a ideia do teleférico. Até que o Diogo decidiu
estragar a festa e decretou que não punha os seus reais pezinhos no teleférico.
Nem pensar. Nem morto. Que tinha vertigens, que se sentia mal só de pensar. Que
nem valia a pena tentar. Não, ponto final.
Viver
com um adolescente é reviver a fase dos “terrible
two”. Em looping. Anos a fio,
tipo pesadelo sem fim à vista. Birras sem motivo, medir forças só porque sim, esgrimir
argumentos para lá de toda a dialéctica possível, testar os limites uma e outra
vez. Os limites do próprio, do irmão e dos adultos que o rodeiam. O problema é
que, contrariamente à fase dos dois anos, não podemos encerrar uma discussão
com um “Sim, porque eu digo e acabou-se a conversa”. Muito menos com uma
palmada no rabo, quando o diálogo se esgota. Viver com um adolescente é fazer
uma viagem ao passado e reencontrarmos o nosso filho birrento de dois anos, com
mais 80 cm e 35 kg em cima. E uma vontade férrea contra a qual pouco ou nada
podemos.
Fomos,
pois, obrigados a subir monte acima a toque de caixa. O adolescente embezerrado
grunhiu um mal-amanhado agradecimento por lhe fazermos, mais uma vez, a vontade
e deu corda aos sapatos. O Vasco puxado por mim. Eu puxada pelo meu amor. Os
três contrariados. Até que eu explodi. Por que raio de motivo dois adultos e
uma criança tinham de fazer o que um adolescente birrento decide?! Eu mato-me a
trabalhar toda a santa semana em dois sítios diferentes. Às vezes, ainda faço
umas traduções para equilibrar as contas. Os meus tempos livres são para os
levar às mil e uma actividades. Mais os médicos. Mais os trabalhos de casa.
Mais as refeições para as marabuntas. A bicharada toda. As limpezas. A montanha
de roupa para lavar, estender, apanhar, coser, dobrar, arrumar. No caso do
Diogo, dobrar e arrumar inúmeras vezes, porque aqueles armários são um caos. O
dinheiro que é preciso desencantar às horas mais impróprias para pagar de
imediato as folhas milimétricas, a flauta, o almoço, os livros, a piscina, as
revistas, as visitas de estudo, as mil e uma merdices que aparecem rabiscadas
em papelinhos perdidos naquelas mochilas. Tudo para ontem, pois claro. Que além
de ser mãe a tempo inteiro, piloto de Fórmula 1, secretária expedita,
cozinheira capaz de adivinhar desejos e multibanco aberto 24 horas por dia que
dá fiado e trocado, também sou fazedora de magias várias. Ora… porra para isto.
A sério. Quando é que posso fazer o que EU quero, por uma vez na vida?! Por
que razão não posso, no meu fim-de-semana, experimentar uma coisa que me está
mesmo a apetecer?! Às vezes, uma mãe também desaba, também faz birras. E eu fiz
a minha, monte acima. O adolescente fez um sprint
final, a fingir que não ouvia. A coisa pequena arregalou muito os olhos e não
disse uma palavra. O meu amor continuava estoico-heroico-zen a puxar
literalmente por nós.
Finalmente,
chegámos ao castelo de Vianden, exaustos. Eu mais do que os outros, porque
tinha vindo a praguejar o caminho todo. Mas, pronto, aquilo acalmou-me. O Diogo
acabou por acusar o toque e decidiu começar a portar-se bem. O Vasco estava
demasiado assustado com a visão da mãe birrenta para fazer mais disparates. O
meu amor continuava na onda zen-coiso. O castelo valeu bem a subida de quase
400 metros. De estilo tipicamente românico, começou a ser construído no século
X em cima das fundações de um castellum romano e de um refúgio
carolíngio. A sua singularidade deve-se às diferentes modificações e ampliações
que foi sofrendo até ao século XVII. Muito, muito giro. A vista era fantástica.
Depois
de visitarmos o castelo e de bebermos um café, decidimos fazer o percurso pelos
bosques até ao outro monte. A vista do cimo do teleférico prometia. O passeio pelo
parque natural foi muito giro, com os rapazes novamente mais quezilentos e
excitados. Apanha paus, sobe montes, trepa árvores, salta rochas, bate com os
paus em alguém… gritos, discussão, corre, apanha, bate… Lá chegámos ao outro
monte e, quando vislumbrámos o teleférico colossal, o Diogo ia desmaiando só
com a visão dantesca. O Vasco deu um risinho nervoso. Eu acalmei as hostes,
dizendo que, de qualquer modo, não íamos andar no teleférico. Estávamos a
preparar-nos para fazer a descida a pé, quando o meu amor decidiu fazer uma
birra. Normalmente é assim… No meio da tempestade, mantem-se sereno como um
rochedo, quando há uma acalmia, ele desaba. Mas sem gritos, nem confusões, que
o homem é profundamente nórdico. Quando faz birra, fica de cara fechada e impõe
a sua vontade sem concessões. Portanto, estava decretado: ele, eu e o Vasco
íamos mesmo fazer a descida no teleférico. O Diogo que se desenrascasse.
Tínhamos feito o caminho todo com ele até ali, ele só tinha de refazê-lo no
sentido inverso. O percurso estava balizado, cheio de gente, e o sol ainda
estava alto. Marcámos encontro à frente do posto de turismo e lá fomos.
Custou-me
um bocado, admito. Que eu tenho vontade de os atirar pela janela teoricamente. Na prática, sou uma pseudo
mãe-galinha. Ou seja, gosto que sejam desenrascados, mas debaixo da minha asa
protectora. Mas o meu amor estava irredutível… “Também és mãe do Vasco.” Não
havia discussão possível. O Diogo lá foi a correr monte abaixo e eu pude
finalmente ser só mãe do Vasco. Concentrar-me na minha coisa pequena. Para
imitar o irmão que idolatra, o Vasco também já diz que tem vertigens e que
detesta alturas. Foi para contrariar esse medo induzido que o meu amor decidiu
fazer a descida no teleférico. Haja alguém que mantém a lucidez e me defende do
apetite voraz do meu adolescente. É verdade que há momentos em que o Diogo se
esquece que já não é filho único, que o mundo não gira à volta do seu umbigo e
que o Vasco também precisa de espaço, tempo e atenção para ser gente. Às vezes,
é muito difícil ser mãe de dois. Ser mãe de dois filhos únicos, com idades e
necessidades diferentes. E, no meio disso tudo, ser uma pessoa com direitos e
vontades próprias. Sermos dois. Mantermo-nos apaixonados e atentos um ao outro.
Às vezes, perco-me. Felizmente, o meu marinheiro nunca perde de vista a rota
traçada e recusa-se a abandonar o leme para deixar o barco vogar à deriva.
A
descida foi impressionante. O Vasco começou firmemente agarrado aos nossos
braços, sem olhar para baixo. Acabou a rir, descontraído. Eu também fiquei
feliz por ter feito uma coisa que queria, por ter feito a vontade ao meu amor
doce. O Diogo aprendeu que os seus medos podem e devem ser respeitados, mas que
têm consequências que terá de assumir sozinho. Fomos dar com ele à porta do
posto de turismo, com um ar falsamente descontraído. Tenho a certeza que desceu
aquele monte a correr, como se estivesse a ser perseguido por um serial killer directamente saído do “Criminal
Minds” que ele adora. Olhando para trás, acho que foi um dia em cheio.
Cansativo, intenso em emoções… mas feliz. “Foi um dia bom, não foi?”,
perguntou-me o meu amor quando chegámos a casa já tarde. Foi…não sei como, mas
foi. Se isto não é amor, não sei o que será.
Os teus posts exercitam-me o sistema cardiovascular, é só o que me ocorre dizer. Uff...
ResponderEliminarLOL... é assim uma espécie de leitura sensorial! :)
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