quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Viver das palavras – parte II

(a produção de palavras)


Tinha acabado de fazer 25 anos quando rebolei gorda como uma baleia até à editora para entregar as disquetes com os últimos livros traduzidos. E foi nessa altura que soube que estavam a passar por uma grave crise financeira, devido à falência inesperada da distribuidora. A crise era tão grande que tinha atingido outras editoras e ninguém ia fazer novos investimentos nos tempos mais próximos. Portanto, não só não ia receber o pagamento previsto, como também não tinham mais trabalho para me dar. Estava muito calor. E eu estava muito assustada. Lembro-me de fugir do sol e de me encostar à entrada de um prédio, a respirar devagarinho para ver se me acalmava. Não me lembro de chegar a casa, só me lembro do medo que senti naquele momento. O Diogo nasceu poucos dias depois.

Eis-me, então, em casa com um bebé e uma tese para escrever. O Diogo não era um bebé difícil, mas passou os primeiros anos sempre doente. Nós tínhamo-nos mudado para um subúrbio-campo de Lisboa que me afastou da família e dos amigos. Nunca havia dinheiro para nada, vivíamos com um parco salário. Foram tempos algo esquizofrénicos, comigo dividida entre a felicidade daquele primeiro filho por quem estava perdidamente apaixonada e uma angústia face ao futuro que me deixava desesperada. Sentia-me muito sozinha. Anos depois, uma homeopata que seguia o Diogo perguntou-me se eu tinha percebido que tinha passado por uma depressão pós-parto. Não dei por isso, mas lembro-me de chorar muitas vezes.

Fiz a minha tese de mestrado numa altura em que a Internet estava a dar os primeiros passos. Havia pouquíssimas coisas sobre literatura infantil editadas em Portugal. O pouco que havia era mais pedagógico do que literário, o que espelhava, aliás, o desprezo com que os estudos literários encaravam a literatura infantil. Apesar de tudo, fiquei chocada com a incredulidade com que a minha proposta de tese foi recebida pela faculdade. Parecia que estava a gozar com eles... “Literatura infantil?!” “A construção do leitor infantil?!” “Cruzar Umberto Eco com Piaget?!” “A usurpação do Winnie-the-Pooh de Milne pela Disney?!” “Mas estará tudo louco?!” A única alma caridosa que aceitou orientar a minha tese dava aulas na Universidade do Minho. Foi um trabalho moroso, duro, sofrido, muito exigente intelectualmente. Quando terminei, jurei que nunca mais na minha vida escreveria uma linha que fosse.

Por mais inacreditável que pareça, foi a primeira tese em Literatura Infantil entregue na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Foi defendida em Julho de 2003. Tive muito bom por unanimidade. E eu, que até entrar para a universidade, sempre fui uma aluna medíocre, acho que saí de cena airosamente. Para mim, o mais importante foi a sensação de ter quebrado um tabu, de ter aberto caminho a outros. Acabei por nunca fazer nada com esta tese que, sem falsas modéstias, julgo ainda ter interesse. Mas tenho a certeza absoluta de que desbravei terreno. E isso enche-me de orgulho. Isso e o facto de ter escrito aquelas páginas todas com o Diogo sempre ao meu lado. Ao meu colo, a mamar, a gatinhar por ali, a babar para cima dos meus livros e dos dele, sentado a riscá-los, a falar comigo, a trepar pelas minhas pernas… O meu filho tornou-se leitor perante os meus olhos espantados e isso foi muito bonito. Desses tempos, não recordo apenas as dificuldades financeiras e a solidão. Recordo o Diogo a crescer. E eu a crescer com ele. Tornei-me verdadeiramente adulta nesse ano. E recordo o Miró aos meus pés, a velar-me pela noite dentro. Que saudades do meu dálmata doido!

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