quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Viver das palavras – parte I

(a certeza das palavras)


Quando entrei para a Faculdade de Letras, há vinte anos atrás, o meu objectivo era ser professora de Português e Francês. A dificuldade nas colocações não me assustava, queria instalar-me algures numa terriola perdida no Alentejo. E por ali ficar, a dar aulas e a ter filhos, numa vida bucólica completamente idealizada. Enfim, não se pode dizer que aos 18 anos as minhas ambições fossem grandes…

Felizmente, tive a oportunidade de dar aulas durante o último ano da licenciatura e percebi que aquilo não era bem o que eu tinha imaginado. Nem teve a ver com o facto de ter calhado numa escola problemática, na Brandoa. Adorei lidar com a miudagem revoltada, mas detestei o “sistema”, por assim dizer, que a condenava tão precocemente. E que me condenaria certamente a uma vida de insatisfação. Nunca me ocorreu pôr em causa a minha escolha inicial, estava no curso certo. E na faculdade certa, diga-se de passagem. O meu mundo sempre girou à volta das palavras. Decidi, então, fazer um mestrado. Literatura Comparada, uma paixão que perdura até hoje. Estava convencida de que havia um leque de possibilidades à minha espera: crítica literária, revisora, bibliotecária, editora… A tradução era a única área que recusava terminantemente por me parecer desenxabida, para tristeza da minha mãe que achava a tradução literária o máximo. Mas acho que se pode dizer que aos 22 anos as minhas ambições já eram bastante maiores.

Durante os dois anos de seminários, fiz várias coisas. Não que precisasse, que sempre fui um bocadinho menina do papá. Dei aulas no ensino recorrente, trabalhei numa editora, num “call center” de dúvidas da língua portuguesa e numa livraria. Nada daquilo me satisfazia plenamente. O que eu queria mesmo experimentar era a revisão. Atraía-me a ideia de trabalhar a palavra, no sentido mais técnico do termo, de a polir. Uma das minhas colegas de mestrado editava numa pequena editora e eu pedi-lhe para me arranjar um manuscrito para rever à experiência. Experiência gratuita, obviamente. Qual não é o meu espanto, quando percebi que o livro que era suposto rever tinha ficado inacabado… Como o tempo urgia, ofereci-me para desenrascar o editor que tinha sido apanhado desprevenido. Esse trabalho foi bastante elogiado e acabou por ser pago, por insistência da editora. E nunca mais parei de fazer traduções. Não me canso de dizer que não fui eu que escolhi esta profissão, foi ela que me escolheu a mim, a contragosto. Tornei-me tradutora porque fui a pessoa errada, no local errado, à hora errada. E ainda bem que assim foi.

Aos 24 anos, achava que tinha o mundo a meus pés. Engravidei do Diogo na fase final do mestrado. Como era trabalhadora independente, não tinha direito a subsídio de maternidade. Fiz um esforço nos últimos meses para traduzir toda uma colecção que me daria o suficiente para me dedicar em exclusivo à redacção da tese e ao bebé nos primeiros meses. E foi aqui que a vida me trocou as voltas e me colocou na dependência de alguém durante os 10 anos seguintes. Por várias vezes, tentei escapar mas acabava sempre por voltar à casa da partida. Este foi o primeiro de muitos erros que cometi no passado.

6 comentários:

  1. E é nestes casos, como muitos noutros, que somos recordadas que isso da igualdade de género ainda é uma bela miragem.

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  2. Todos os dias me bato por essa utopia ao educar os meus filhos. Vamos lá ver se a sementeira germina...

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  3. Não esse não foi o primeiro erro dessa fase. O primeiro erro foi a escolha do pai do filho. Vai lá abaixo e lê o que escreveste sobre o "fanfarrão e o gordo" (salvo erro era este o título, não fui verificar). E mesmo aí não se tratava bem de "fanfarronice", mas de bullying, quando tal termo nem era ainda usado. Talvez o fanfarrão tenha sido o primeiro "bullying-ista" do sistema de ensino português...

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  4. Não posso concordar contigo, pai. Acho que só se pode falar de "erro" quando uma pessoa tem os dados todos na mão e, mesmo assim, escolhe a opção que sabe não ser a certa. Ou seja, quando se tem consciência de que se fez a escolha errada e se insiste no erro por pura estupidez. Nesse sentido, ficar completamente dependente de alguém foi um erro que eu admito ter cometido (contra todos os vossos conselhos, diga-se em abono da verdade). O pai que escolhi para o Diogo não foi um erro, foi um logro.

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  5. Eu que não percebo ainda nada da vida, digo que há coisas pelas quais temos de passar para nos conhecermos um pouco melhor.

    Admitir erros é sem dúvida um bom começo! Se daí retiramos a lição...

    Se podíamos sofrer um bocadinho menos ao passar pelas coisas?! Dava jeito... mas nem sempre podemos escolher isso!

    A título de curiosidade, nunca na vida pensei que um dia iria trabalhar na construção civil e foi lá que fui parar e andei durante 8 anos...

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  6. Na construção civil, Naná?! Isso é que é inusitado... :)

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