(porque,
no fundo, a causa só serve para os alimentar)
Não
sei bem que nome dar a este tipo de pessoas. Não são bem pessoas, são uma espécie
de vampiros. Em francês, chamar-lhes-ia personnes
engagées, que é bastante explícito. Assim, à falta de melhor, digamos que
são “pessoas de causas”. A verdade é que a causa em si é pouco importante. O
que interessa mesmo é estar comprometido com uma causa, seja ela qual for. Uma
luta. Preferencialmente uma luta que ainda não tenha muitos simpatizantes,
pouco popular. Uma luta difícil. Uma razão de vida. Que se impregne até ao
âmago do ser. Que condicione toda a existência. Que se torne tão essencial como
o ar que respira.
Estas
pessoas costumam herdar as suas causas por via familiar, sem grandes
questionamentos. Mais tarde, exactamente porque cresceram no meio da luta, tendem
a transmitir os ensinamentos incutidos à progenitura, como se de um legado
familiar ancestral se tratasse. Um modo de vida indiscutível. Mais do que a
causa propriamente dita, o que transmitem é um esquema de pensamento
pré-formatado que os ensina a debitar, não a pensar. Porque desde o berço vêem
touradas e não concebem outra forma de entretenimento. Porque cresceram no seio
de uma seita religiosa e só aprenderam a falar essa linguagem. Porque nunca
comeram carne e hoje são incapazes de comer mel para não explorarem as
abelhas.
As
pessoas de causas agarram-se à sua luta como se fosse uma muleta. Uma muleta,
não. Uma prótese. Às tantas, já faz parte do corpo amputado, mutilado.
Entranhou-se nos pensamentos, nos actos, no discurso, no dia-a-dia poucochinho.
E, uma vez criadas raízes, precisa de se expandir. O problema é que o resto dos
mortais, estranhamente, parece conseguir atravessar a vida sem precisar de
outros acrescentos, para além da sua própria cabeça livre-pensante. Ora isto é
um problema grave. Gravíssimo. Felizmente é grave, mas não insolúvel. Porque as
pessoas de causas têm a capacidade de farejar os fracos à distância. Os
cobardes. São como aqueles predadores que caçam em solitário, ao entardecer.
Aqueles caçadores pacientes que aguardam o momento em que os animais saem das
tocas para se alimentar e o mais fraco se afasta do grupo. Nesse momento,
saltam lá do meio da vegetação onde estavam escondidos e apanham o elemento frágil,
que será rápida e facilmente convertível. Porque as pessoas de causas gostam
muito de ajudar os desprotegidos.
Mas
não vamos confundir as coisas. As pessoas de causas gostam de liderar, não são os líderes. Seguem escrupulosamente o
caminho da luta, arquitectado por alguém mais inteligente. Tipo o Deus das Causas
Várias. Há quase sempre um dogma qualquer predefinido algures. Um livro que encerra
toda a sapiência do mundo, uma filosofia de grupo bem balizada, uma definição
que é preciso pregar. Ou seja, precisam sempre de um guru que lhes dê o mote e
de um aprendiz para os secundar. Mais um bando de acólitos menores para dar
crédito à causa. É por essa razão que os podemos encontrar frequentemente
reunidos em grupos. Os famosos grupos de apoio. Movimentos de apoio às vítimas e
seus familiares. Movimentos de apoio aos doentes disto ou daquilo. Movimentos
religiosos, políticos, comunitários, clubísticos… É graças a estes grupos que
as pessoas de causas garantem a sua permanência na luta. Porque, mesmo que um
dia o motivo que os levou a consagrarem-se à causa se extinga, podem continuar
a lutar no seio do grupo, passando de vítimas a testemunhas, a padrinhos, a colaboradores...
E, assim, acabam por desvirtuar por completo o movimento em questão, que muitas
vezes congrega pessoas que se dedicam verdadeiramente a defender uma causa
justa.
O
que diferencia as pessoas de causas das pessoas que, generosamente, abraçam
causas é que as primeiras vivem para lutar e as segundas põem a vida ao serviço
de uma determinada ideia em que acreditam. Uns são completamente irracionais;
outros, lúcidos. Uns são desequilibrados; outros, perfeitamente sãos de
espírito. Mas os vampiros esgotam-se na militância feroz, na conversão dos
outros. A causa em si não tem qualquer importância para eles. Aliás, por vezes,
acabam por abandonar a luta em prol de outra melhor. E depressa deixam de
pregar uma verdade, para pregar outra. Afinal de contas, o que interessa é
pregar.
Talvez
seja mais fácil perceber a devastação que uma pessoa de causas consegue fazer à
sua volta se eu der um exemplo fictício. Imaginemos a A e B, ambos divorciados
e com filhos de anteriores casamentos. A,
uma pessoa de causas, quer converter B,
o elemento fraco. Não lhe basta ser apenas A
+ B, deseja claramente uma fusão AB. A
forneceria o motor da relação, B a
carroçaria. Infelizmente, B não
parece interessado na causa de A. O
problema é que A cresceu como uma
pessoa de causas, não consegue libertar-se do esquema mental castrador que lhe
foi incutido na infância. Não consegue abandonar a sua prótese, apesar de já
não precisar dela. A única solução possível é, então, abraçar uma nova causa passível
de interessar a B. Na qual, com um
pouco de esforço, B se reveja.
Suponhamos
que A escolhe a causa da alergia ao glúten,
tão em voga. É uma causa nova, perfeitamente justa, algo desconhecida, mas com
um número de adeptos crescente. Os filhos de A passam de imediato a ser alérgicos ao glúten, oferecendo-lhe
entrada directa no “Grupo de apoio aos pais de crianças alérgicas ao glúten”. E
por que razão A escolheu os filhos
como vítimas-alvo e não a sua própria pessoa? Porque as crianças são mais facilmente
manipuláveis do que os adultos (principalmente se também tiverem crescido na
luta), sendo por isso simples fazer aparecer falsos sintomas de alergia. Por
outro lado, os pais de crianças que padecem de um problema são não apenas vítimas,
como também mártires. Vai-se a ver, esta segunda causa até se revela bastante
melhor do que a primeira. Há aqui luta para uma vida inteira e mais além. Por
extensão, os filhos de B também têm
de passar a ser alérgicos, embora nunca tenham mostrado quaisquer sintomas. É
aqui que entra em campo o discurso sectário de A, bem polido ao longo dos anos, e a tendência para ser um pau
mandado de B. Em breve, teremos duas
pessoas unidas pela luta, várias crianças supostamente vítimas de um sintoma
qualquer contra o qual é preciso concentrar esforços e diversas pessoas à volta
convencidas de que têm o dever de se unir a esta causa para defender as pobres crianças.
Está montada a guerra. Ah… e temos também C
e D, os outros pais das crianças alérgicas,
claramente torturadores porque lhes continuam a dar glúten.
Agora,
imaginemos que D fica farto deste
clima e decide capitular, entrando em contacto com B e deixando de dar glúten aos filhos só para tentar evitar que
dêem todos em doidos. Antes glúten free
que esquizoides. O que pensam que aconteceria? Obviamente A entra em pânico porque receia que B perceba a cabala. Lá está... o perigo não é perder a causa em si
(neste caso, bem vistas as coisas, até seria ganhar). O maior risco é perder a
razão de vida, a devoção a uma luta eterna maior do que todos os envolvidos. Um
pouco como um soldado a soldo, que luta ao lado de quem pagar mais. Mas que tem
de lutar, porque não sabe fazer mais nada na vida. Parar é morrer.
Uma descrição perfeita!!!
ResponderEliminarTambém conheces bicho destes, Naná?! :(
ResponderEliminarAlguns, a minha sorte é que sou imune e não lhes ligo nenhuma... o que os deixa profundamente enfurecidos.
EliminarOutras vezes divirto-me a destruir os argumentos deles e deixá-los desarmados... mas isso é quando me apetece perder tempo... ahahahahah
LOL! :)
ResponderEliminarSim, se há coisa que deixa este tipo de gente perfeitamente enfurecida é a ignorância e o desprezo. Mas é tudo o que merecem, infelizmente.