(porque
gosto muito de si, tia)
Nascida
numa família arreigadamente ateia, não tive direito a padrinhos. Mas a vida
encarregou-se de corrigir esse erro inicial e deu-me uma fada-madrinha.
Esta fada-madrinha começou por ter uma importância enorme na minha vida porque
desbravou caminho. Porque marcou posição. Porque abriu um precedente familiar.
Porque “já a Maria Clarisse era assim”. E esse “assim” explicava tudo, não
carecia de outras justificações. Explicava esquecer-me do tempo, do lugar, das
pessoas, das coisas, da cabeça. Eu era “assim” e nem valia a pena tentarem
mudar-me, porque já a minha tia era “assim” e nunca ninguém a tinha conseguido
mudar.
Durante
a minha infância, a fada-madrinha salvou-me do arreigamento familiar. Enquanto
as minhas amigas tinham Barbies, eu tinha Playmobil e Legos. Vá… lá consegui
convencer os meus pais de que os Pin&Pon também requeriam grande engenharia
mental. E não eram um atentado à mulher emancipada. Apesar de tudo, nunca fui ostracizada
pela meninada graças às prendas trazidas periodicamente de Inglaterra pela
minha fada-madrinha. Eram coisas nunca antes vistas no Portugal dos anos 80,
que causavam furor no recreio: blocos e borrachas com cheiro, bolinhas de sabão
gigantescas, canetas que escreviam e apagavam, um quadro negro onde apareciam por
magia letras coloridas. Tudo isto compensava a ausência do cor-de-rosa na minha
vida.
Quando,
já adolescente, se tornou evidente que a minha estranheza só tendia a piorar, a
fada-madrinha veio novamente em meu auxílio. Saída daquele Portugal ainda tão
pequenino, tinha encontrado além-Mancha a explicação. Um dos porquês do “assim”.
Finalmente, deu-se um nome à coisa: “Dislexia”. E isso foi importantíssimo. Não
tanto pela maneira como era tratada (julgada?), mas pelo modo como passei a
olhar para mim. Quando se tem consciência do problema, é mais fácil procurar
soluções. Graças a ela, pude ir descobrindo estratagemas para lidar comigo
própria. E isso mudou a minha vida.
A
influência da minha fada-madrinha nunca diminuiu, bem pelo contrário. Irrompeu
na idade adulta, numa relação de proximidade à distância. De novo, na senda de
um abrir caminho. De me facilitar sempre a vida através de um modelo real. Vi
nela aquilo que eu não queria ser, mas onde acabei por ir parar. Com a solidão,
as noites de trabalho, o cansaço acumulado, os prazos apertados, a insegurança
financeira. As línguas que se aprendem já na idade adulta com a mesma
facilidade. A dislexia tem tanto que se lhe diga! Principalmente, vi nela um
modelo de mãe como eu queria ser. Alguém que põe os filhos e a sua educação acima
de tudo. Alguém com uma capacidade de aceitação, de empatia, de motivação pela
positiva. A minha fada-madrinha é uma pessoa profundamente boa. E, às vezes,
quando irrompe numa gargalhada, consigo vislumbrar aquela outra Clarisse de
quem tenho tantas saudades. De quem também herdámos, entre outras coisas, o amor,
o cuidado e a dedicação à nossa família. A generosidade. O gosto pelas viagens.
A capacidade de fazermos uma infinidade de coisas em simultâneo com uma calma apressada.
O
mais engraçado é que esta minha fada-madrinha, que tantas e tantas vezes me
deitou a mão desde que a nossa vida desabou, emerge agora na personalidade tão
especial do meu filho pequeno. Dizem que o Vasco é muito parecido comigo. Eu
acho que o Vasco é muito parecido com a nossa fada-madrinha. É muito parecido
com as Clarisses. E fico duplamente orgulhosa.
E
porque hoje esta pessoa absolutamente fantástica faz anos, aqui fica o meu
pequenino tributo. Porque me sinto imensamente grata por tê-la na minha vida.
Porque muito do que hoje sou, devo-o a ela.
[
Porque além de vivermos com a cabeça e o coração entre duas línguas e dois
países,
ainda temos o amor pelo espanhol em comum... ]
Muito giro. E verdadeiro. E, sim, muitas coisas te foram desculpadas porque, numas, eras parecida com a tua tia e, noutras, com a tua mãe...
ResponderEliminar"Desculpadas"... Hum?! Não sei se será o termo mais apropriado.
ResponderEliminarEm relação ao Vasco, prefiro usar os termos "aceitar" ou "compreender". Porque me parece mais uma questão de aceitação/compreensão da personalidade do outro, do que de desculpar o que quer que seja.