segunda-feira, 23 de novembro de 2015

A minha fada-madrinha

(porque gosto muito de si, tia)


 

Nascida numa família arreigadamente ateia, não tive direito a padrinhos. Mas a vida encarregou-se de corrigir esse erro inicial e deu-me uma fada-madrinha.

Esta fada-madrinha começou por ter uma importância enorme na minha vida porque desbravou caminho. Porque marcou posição. Porque abriu um precedente familiar. Porque “já a Maria Clarisse era assim”. E esse “assim” explicava tudo, não carecia de outras justificações. Explicava esquecer-me do tempo, do lugar, das pessoas, das coisas, da cabeça. Eu era “assim” e nem valia a pena tentarem mudar-me, porque já a minha tia era “assim” e nunca ninguém a tinha conseguido mudar.

Durante a minha infância, a fada-madrinha salvou-me do arreigamento familiar. Enquanto as minhas amigas tinham Barbies, eu tinha Playmobil e Legos. Vá… lá consegui convencer os meus pais de que os Pin&Pon também requeriam grande engenharia mental. E não eram um atentado à mulher emancipada. Apesar de tudo, nunca fui ostracizada pela meninada graças às prendas trazidas periodicamente de Inglaterra pela minha fada-madrinha. Eram coisas nunca antes vistas no Portugal dos anos 80, que causavam furor no recreio: blocos e borrachas com cheiro, bolinhas de sabão gigantescas, canetas que escreviam e apagavam, um quadro negro onde apareciam por magia letras coloridas. Tudo isto compensava a ausência do cor-de-rosa na minha vida.

Quando, já adolescente, se tornou evidente que a minha estranheza só tendia a piorar, a fada-madrinha veio novamente em meu auxílio. Saída daquele Portugal ainda tão pequenino, tinha encontrado além-Mancha a explicação. Um dos porquês do “assim”. Finalmente, deu-se um nome à coisa: “Dislexia”. E isso foi importantíssimo. Não tanto pela maneira como era tratada (julgada?), mas pelo modo como passei a olhar para mim. Quando se tem consciência do problema, é mais fácil procurar soluções. Graças a ela, pude ir descobrindo estratagemas para lidar comigo própria. E isso mudou a minha vida.

A influência da minha fada-madrinha nunca diminuiu, bem pelo contrário. Irrompeu na idade adulta, numa relação de proximidade à distância. De novo, na senda de um abrir caminho. De me facilitar sempre a vida através de um modelo real. Vi nela aquilo que eu não queria ser, mas onde acabei por ir parar. Com a solidão, as noites de trabalho, o cansaço acumulado, os prazos apertados, a insegurança financeira. As línguas que se aprendem já na idade adulta com a mesma facilidade. A dislexia tem tanto que se lhe diga! Principalmente, vi nela um modelo de mãe como eu queria ser. Alguém que põe os filhos e a sua educação acima de tudo. Alguém com uma capacidade de aceitação, de empatia, de motivação pela positiva. A minha fada-madrinha é uma pessoa profundamente boa. E, às vezes, quando irrompe numa gargalhada, consigo vislumbrar aquela outra Clarisse de quem tenho tantas saudades. De quem também herdámos, entre outras coisas, o amor, o cuidado e a dedicação à nossa família. A generosidade. O gosto pelas viagens. A capacidade de fazermos uma infinidade de coisas em simultâneo com uma calma apressada.

O mais engraçado é que esta minha fada-madrinha, que tantas e tantas vezes me deitou a mão desde que a nossa vida desabou, emerge agora na personalidade tão especial do meu filho pequeno. Dizem que o Vasco é muito parecido comigo. Eu acho que o Vasco é muito parecido com a nossa fada-madrinha. É muito parecido com as Clarisses. E fico duplamente orgulhosa.

E porque hoje esta pessoa absolutamente fantástica faz anos, aqui fica o meu pequenino tributo. Porque me sinto imensamente grata por tê-la na minha vida. Porque muito do que hoje sou, devo-o a ela.
 

[ Porque além de vivermos com a cabeça e o coração entre duas línguas e dois países,
ainda temos o amor pelo espanhol em comum... ]


2 comentários:

  1. Muito giro. E verdadeiro. E, sim, muitas coisas te foram desculpadas porque, numas, eras parecida com a tua tia e, noutras, com a tua mãe...

    ResponderEliminar
  2. "Desculpadas"... Hum?! Não sei se será o termo mais apropriado.

    Em relação ao Vasco, prefiro usar os termos "aceitar" ou "compreender". Porque me parece mais uma questão de aceitação/compreensão da personalidade do outro, do que de desculpar o que quer que seja.

    ResponderEliminar