terça-feira, 3 de novembro de 2015

Polícia-bom vs. Polícia-mau

(a táctica da família a solo emigrante)


 

Aos poucos, retomo a tradução do livro, que ficou intermitente quando a poliartrite me apanhou de surpresa. Retomo a vida, tout court. Avisei os rapazes de que tinha conseguido organizar-me para ficar em casa com eles, durante as férias de Outono… mas que tinha mesmo de trabalhar. Filho grande informou que tinha imensos trabalhos para fazer nas férias. Filho pequeno lembrou que também tinha de estudar, porque a sessão de exames está para breve. Suspirei de alívio, pensei que estávamos todos no mesmo comprimento de onda.

Entretanto, o Diogo decidiu trazer o melhor amigo para passar o fim-de-semana. Nada de inusitado, o Baptiste faz parte da família. A visita tinha sido negada, há uns tempos atrás. Primeiro, o Diogo tinha recebido más notas a Matemática e precisava de estudar. Segundo, o Baptiste estava castigado em casa dele. E nós achámos que se os pais lhe tiraram telemóvel, tablet e consolas até ordem em contrário não devíamos “descastigá-lo”. A mãe ligou a dizer que não se importava, mas mantivemos a decisão. Quando os castigos são demasiado severos e/ou duradouros, percebo que seja mais difícil para os pais que para os filhos... mas isso era problema deles. Entretanto, chegaram as férias. O Diogo pediu, novamente, para convidar o Baptiste. Nós – parvos – deixámos. Fica o aviso à navegação para futuros pais de adolescentes: não subestimem um jovem enjaulado há demasiado tempo.

O fim-de-semana foi caótico. O Baptiste, como calculámos, vinha num estado de sobre-excitação. Os meus filhos alinharam na parvoeira. E com essa nenhum de nós estava a contar. Pouco conseguimos fazer, excepto controlar os estragos. Nada parecia cansá-los, moê-los, acalmá-los. Nem o squash, nem o caminho que fizeram a pé, de regresso a casa. Nem a tarde a fazer gauffres e a encher as paredes de massa. Nem os videojogos ou os filmes à noite. Nem os quilos de comida que enfardaram, tipo debulhadora. Nem as brincadeiras no quarto do mais pequeno: espadas para lutar aos gritos, um jogo para matar zombies no escuro, peças de Lego para atirar pelos ares, jogos de sociedade que se prestavam a acesas discussões… Um disparate pegado.

Na noite de Halloween, já nós estávamos completamente exaustos. Em Vielsalm, sabe-se lá porquê, o Halloween celebra-se em Fevereiro. Eu sabia que o Vasco estava triste por não ir pedir doces às portas, como estava habituado a fazer em Malempré. Lembrei-me, então, de fazer uma caça ao tesouro nocturna. Espalhámos doces no percurso à volta do lago, com enigmas escritos em papelinhos para eles decifrarem, a indicar a localização dos “tesouros”. Devemos ter demorado pouco mais de uma hora a preparar tudo… não imaginam o estado da casa, quando chegámos. O adolescente em saída precária lembrou-se de empestar tudo com Axe cheiro-a-trolha. E deixou o mais pequeno assumir as culpas. Tive um ataque de choro na cozinha, depois de me zangar a sério com eles. Só me apetecia mandá-los a todos para a cama. Por que diabo havia de ficar a trabalhar noite dentro para compensar as horas perdidas com uma surpresa que nenhum deles merecia?! Por um único motivo: os meus filhos só nos têm a nós, neste país.

O mais difícil, nisto de sermos “família a solo emigrante”, é termos de encarnar dois papéis o tempo todo. É sermos o polícia-bom e o polícia-mau, simultaneamente. Ou com minutos de diferença. Porque não há mais ninguém, sem sermos nós. Ninguém para equilibrar, para compensar. Temos de ralhar para logo a seguir elogiar. Temos de premiar para logo a seguir castigar. Não há avós para mimar. Não há tios para aligeirar castigos. Ou para reforçar. Não há ninguém. Por isso, somos sempre coesos. Fazemos “bloco”. Exactamente porque sentimos que somos apenas dois a educar, o que exige de nós toneladas de paciência e amor. No fundo, é isso… somos apenas dois a amá-los.

Por vezes, não há tempo para deixar uma atitude madurecer. Seja uma atitude repressiva ou enaltecedora. Os dias sucedem-se, o tempo não volta atrás. Há ocasiões irrepetíveis. Momentos únicos, que não podemos estragar apenas porque não há ninguém à nossa volta para equilibrar o pêndulo. Por isso, na noite de Halloween, apesar de cansados, apesar de zangados, apesar dos timings profissionais atrasados, fomos festejar. Mascarámos o Vasco, agasalhámos os grandes e partimos à caça ao tesouro. Eles divertiram-se imenso, nós nem por isso. Fazer de polícia-bom nem sempre é prazeroso. Às vezes, é só uma questão de táctica.





[ Penso que nem vale a pena dizer que a máscara da coisa pequena ficou perdida algures pelo caminho... ]

2 comentários:

  1. Em desespero de causa, já introduzi a figura do polícia-enigmático-bipolar. É o polícia (exausto), que tanto pode ser bom como mau, mudando de estratégia numa questão de segundos, confundindo os bandidos e mantendo-os permanentemente em alerta. Não resulta grande coisa, claro. Mas uma pessoa faz o que pode.

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    1. Pois, por aqui também acho que não resulta lá muito bem, Gralha... E o cansaço com que uma pessoa fica depois dos interrogatórios, perseguições, prisões, etc.?! :(

      Às vezes, pergunto-me se o par de estalos que apanhávamos em crianças, apenas para desabafo das figuras paternais, não resultaria melhor (para os polícias, claro). Quanto aos bandidos pouco há a fazer...

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