(a
táctica da família a solo emigrante)
Aos
poucos, retomo a tradução do livro, que ficou intermitente quando a poliartrite
me apanhou de surpresa. Retomo a vida, tout
court. Avisei os rapazes de que tinha conseguido organizar-me para ficar em
casa com eles, durante as férias de Outono… mas que tinha mesmo de trabalhar.
Filho grande informou que tinha imensos trabalhos para fazer nas férias. Filho
pequeno lembrou que também tinha de estudar, porque a sessão de exames está
para breve. Suspirei de alívio, pensei que estávamos todos no mesmo comprimento
de onda.
Entretanto,
o Diogo decidiu trazer o melhor amigo para passar o fim-de-semana. Nada de inusitado,
o Baptiste faz parte da família. A visita tinha sido negada, há uns tempos
atrás. Primeiro, o Diogo tinha recebido más notas a Matemática e precisava de
estudar. Segundo, o Baptiste estava castigado em casa dele. E nós achámos que se os pais lhe tiraram telemóvel, tablet e consolas até ordem em contrário
não devíamos “descastigá-lo”. A mãe ligou a dizer que não se importava, mas mantivemos
a decisão. Quando os castigos são demasiado severos e/ou duradouros, percebo
que seja mais difícil para os pais que para os filhos... mas isso era problema deles. Entretanto, chegaram as férias. O
Diogo pediu, novamente, para convidar o Baptiste. Nós – parvos – deixámos. Fica
o aviso à navegação para futuros pais de adolescentes: não subestimem um jovem
enjaulado há demasiado tempo.
O
fim-de-semana foi caótico. O Baptiste, como calculámos, vinha num estado de
sobre-excitação. Os meus filhos alinharam na parvoeira. E com essa nenhum de nós
estava a contar. Pouco conseguimos fazer, excepto controlar os estragos. Nada
parecia cansá-los, moê-los, acalmá-los. Nem o squash, nem o caminho que fizeram a pé, de regresso a casa. Nem a
tarde a fazer gauffres e a encher as
paredes de massa. Nem os videojogos ou os filmes à noite. Nem os quilos de
comida que enfardaram, tipo debulhadora. Nem as brincadeiras no quarto do mais pequeno:
espadas para lutar aos gritos, um jogo para matar zombies no escuro, peças de
Lego para atirar pelos ares, jogos de sociedade que se prestavam a acesas
discussões… Um disparate pegado.
Na
noite de Halloween, já nós estávamos completamente exaustos. Em Vielsalm,
sabe-se lá porquê, o Halloween celebra-se em Fevereiro. Eu sabia que o Vasco
estava triste por não ir pedir doces às portas, como estava habituado a fazer
em Malempré. Lembrei-me, então, de fazer uma caça ao tesouro nocturna.
Espalhámos doces no percurso à volta do lago, com enigmas escritos em
papelinhos para eles decifrarem, a indicar a localização dos “tesouros”.
Devemos ter demorado pouco mais de uma hora a preparar tudo… não imaginam o
estado da casa, quando chegámos. O adolescente em saída precária lembrou-se de
empestar tudo com Axe cheiro-a-trolha. E deixou o mais pequeno assumir as culpas.
Tive um ataque de choro na cozinha, depois de me zangar a sério com eles. Só me
apetecia mandá-los a todos para a cama. Por que diabo havia de ficar a
trabalhar noite dentro para compensar as horas perdidas com uma surpresa que nenhum
deles merecia?! Por um único motivo: os meus filhos só nos têm a nós, neste
país.
O
mais difícil, nisto de sermos “família a solo emigrante”, é termos de encarnar
dois papéis o tempo todo. É sermos o polícia-bom e o polícia-mau, simultaneamente.
Ou com minutos de diferença. Porque não há mais ninguém, sem sermos nós. Ninguém
para equilibrar, para compensar. Temos de ralhar para logo a seguir elogiar.
Temos de premiar para logo a seguir castigar. Não há avós para mimar. Não há
tios para aligeirar castigos. Ou para reforçar. Não há ninguém. Por isso, somos
sempre coesos. Fazemos “bloco”. Exactamente porque sentimos que somos apenas
dois a educar, o que exige de nós toneladas de paciência e amor. No fundo, é
isso… somos apenas dois a amá-los.
Por
vezes, não há tempo para deixar uma atitude madurecer. Seja uma atitude repressiva
ou enaltecedora. Os dias sucedem-se, o tempo não volta atrás. Há ocasiões
irrepetíveis. Momentos únicos, que não podemos estragar apenas porque não há ninguém
à nossa volta para equilibrar o pêndulo. Por isso, na noite de Halloween,
apesar de cansados, apesar de zangados, apesar dos timings profissionais atrasados, fomos festejar. Mascarámos o
Vasco, agasalhámos os grandes e partimos à caça ao tesouro. Eles divertiram-se
imenso, nós nem por isso. Fazer de polícia-bom nem sempre é prazeroso. Às
vezes, é só uma questão de táctica.
[ Penso que nem vale a pena dizer que a máscara da coisa pequena ficou perdida algures pelo caminho... ]
Em desespero de causa, já introduzi a figura do polícia-enigmático-bipolar. É o polícia (exausto), que tanto pode ser bom como mau, mudando de estratégia numa questão de segundos, confundindo os bandidos e mantendo-os permanentemente em alerta. Não resulta grande coisa, claro. Mas uma pessoa faz o que pode.
ResponderEliminarPois, por aqui também acho que não resulta lá muito bem, Gralha... E o cansaço com que uma pessoa fica depois dos interrogatórios, perseguições, prisões, etc.?! :(
EliminarÀs vezes, pergunto-me se o par de estalos que apanhávamos em crianças, apenas para desabafo das figuras paternais, não resultaria melhor (para os polícias, claro). Quanto aos bandidos pouco há a fazer...