(onde
as coisas se complicam)
A
energia destrambelhada da nossa coisa pequena é amplamente compensada pela meiguice
de carácter. Nunca conheci ninguém que se importasse tanto com os outros. Que
se preocupasse tanto em agradar, em ser amável. Que prestasse tanta atenção às
pessoas que o rodeiam. Que tivesse tanto medo de magoar ou de desiludir alguém.
É de uma delicadeza e cuidado comoventes. De todos os membros da família, o
Vasco é sem dúvida o mais parecido com a avó Clarisse, de quem herdou o
tamanho, o nervo, a diplomacia e a dedicação. Sinto uma tristeza imensa por
estes dois nunca se terem chegado a conhecer, acredito que teriam uma
ligação especial. Muito embora a minha avó tivesse certamente ficado aflita
com o lado mais destravado deste seu bisneto-furacão.
Este
ano, o Vasco decidiu que queria fazer uma festa de anos. Apesar de, na Bélgica,
não haver esse hábito. As festas de anos são encaradas com despreendimento
(como, aliás, tudo o resto) e restritas à esfera familiar. A única festa de
aniversário para a qual foi convidado, nestes últimos três anos, foi a de um
colega imigrante, como nós, da Europa de leste. Mas, pronto, filho pequeno
decidiu que os seus nove anos mereciam uma festa com toda a pompa e
circunstância. Como faz anos numa quarta-feira, dia em que não há aulas à
tarde, propus que convidasse cinco amigos para virem almoçar cá a casa, quando
saíssem da escola. Uma coisinha simples.
A
lista dos convidados foi feita rapidamente. Os dois melhores amigos, claro
está. E mais outros três com quem costuma brincar no recreio. Os convites foram
feitos e entregues, com a discrição que tal acto requeria para não ferir
susceptibilidades na turma. Quando o fui buscar à escola, vi logo que alguma
coisa não estava bem. O Vasco estava triste. Garantiu-me que tinha sido mesmo
cuidadoso a distribuir os convites, tipo agente-secreto, mas que houve quem
visse. E que havia um menino que lhe veio dizer que nunca tinha ido a uma festa
de anos. E havia aquele outro que tinha pedido para ser seu amigo, logo no
primeiro dia na nova escola, quando ele ainda estava a chorar. E a amiga que era
mesmo maria-rapaz, que pensou que não tinha sido convidada porque era rapariga.
E… e… e…
Perguntei,
então, quantos colegas mais seria preciso convidar para aplacar este ataque
infame à diplomacia. Só mais cinco, respondeu-me. E lá fui eu comprar mais
cinco convites e desencantar mais cinco envelopes e escrever mais cinco textos
à mão a explicar a cinco pais surpresos o programa das festas, tão pouco
habitual por estas paragens.
Combinei
com o Vasco que seria uma festa tipicamente belga, ou seja, a dar para o
desenrascado. Nada de temas da moda, decorações temáticas, mousses cromáticas, bolachinhas
empilhadas em pratos de loiça, talheres de madeira a condizer com o tom das
paredes e o raio que o parta. O filho pequeno, que não lê blogs matchy-matchy, pediu apenas pizzas, cachorros-quentes,
batatas-fritas, sumos e o bolo de aniversário. Pareceu-me excelente, estávamos
no mesmo comprimento de onda. O meu amor prometeu voltar a correr da faculdade
para me dar uma ajuda. Fez-se a requisição pública dos serviços do adolescente resmungão
(que, apesar de tudo, exigiu um suborno exorbitante). O tio Rui prometeu vir da
Alemanha para controlar os estragos. Entre mortos e feridos, alguém há-de
escapar. Tanto mais que é quase certo que os pais não os deixem vir todos, dada a estranheza da coisa.
Obviamente,
tinha de surgir alguma complicação com esta minha festa tão desenrascada. Ou
não se tratasse do aniversário de Vasco, o Cuidadoso. Parece que há um menino
que é alérgico aos ovos. E outro, ao glúten. Como raio é que vou fazer um bolo
sem ovos, nem farinha?! Ehhh… não esquecer o melhor amigo muçulmano. Ou seja,
as pizzas Havai pré-feitas têm de ter fiambre de frango e os cachorros levam
salsicha de peru, coisa que estranhamente nunca vi por aqui. Há também aquele
colega que tenho de ir levar e buscar ao solfejo durante a tarde, porque
normalmente vai na carrinha da câmara.
OK…
inspira, expira. Repetir tantas vezes quantas as necessárias.
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