segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

Epicentro

(zona à superfície que mais sofre com os abalos sísmicos)




À coordenação do centro de documentação e às aulas à noite, juntou-se este mês a tradução de um livro. Salto de trabalho em trabalho, de uma língua para outra. Por vezes, o meu dia divide-se entre três actividades opostas, em quatro línguas diferentes, num horário que se estende madrugada adentro. Ando absolutamente exausta.

O meu amor tenta compensar a minha ausência. Ou a minha presença ausente, o que ainda é pior. Estou aqui, mas é como se não estivesse. Acode a todos os “mãeeeee”, tentando formar uma barreira protectora à minha volta, que me permite ir gerindo o trabalho quotidiano sem desabar. Está sempre um passo à minha frente, para me tentar aligeirar o mais possível a carga.

Ataca as tarefas domésticas com espírito de missão. Gere as idas e vindas de todas as actividades dos rapazes. Trata da bicharada. O dinheiro que é preciso meter na mochila. E os lanches. Os trabalhos de casa e os testes. Os sacos da piscina, da ginástica, do ballet, do solfejo. E o violino. Mais o trompete. Trata da roupa. O livro que tem de ser devolvido à biblioteca. Faz as compras e as refeições. Mete mais um cartucho de tinta ou um lápis novo no estojo. Descomplica. Principalmente, descomplica. E traz-me café e beijos.

Mas o Vasco, ao fim de três semanas, esgotou a sua paciência. Passa os dias à minha volta, a tentar encontrar uma brecha. Acorda já de mau humor. Faz birras e chora. Anda respondão. Tem-se portado mal em casa e na escola. Não obedece a ninguém. Anda desleixado, de cabeça no ar. Parte-me o coração vê-lo neste estado de desolação. Pensei que com oito anos já não precisasse tanto de mim. Que já não estivéssemos tão ligados. Voltou a pedir-me para eu o vestir de manhã, dizendo que tem frio. Quer que o leve à escola. Pede ajuda para calçar as botas e para cortar a comida. Quer fazer tudo colado a mim, como quando era pequenino. Trepa para o meu colo, mete-se entre o meu amor e eu. Édipo parece estar de regresso, meio trapalhão, e eu voltei a ser “a minha mãe”. A que recebe abraços apertados e beijos melados.

Até o grande parece mais tolinho, nos últimos tempos. Manda-me sms parvos, com corações e smileys… “Posso fazer uns ovos?” “Posso comer um dióspiro?” Liga-me para me perguntar as coisas mais disparatadas, quando sabe que chego a casa vinte minutos depois dele. Pede para ver filmes, dizendo que também tenho de fazer uma pausa. Já vai tendo argumentos de gente grande. Mas, depois, pede para me sentar ao lado dele. Enrosca-se. E, no outro dia, disse-me: “Amo-te muito, mãe”. Já não ouvia isto há tanto tempo! “Gosto de ti” e “Adoro-te” ainda tenho a sorte de ouvir várias vezes por dia. Agora declarações de amor a sério já vão sendo raras…

O meu amor sorri. Também está cansado, ele. Mas não se queixa. Diz-me que sou o alicerce desta casa. Destes filhos. Que o desnorteio dos últimos tempos mostra que nenhum dos rapazes conseguiria viver longe de mim. Que a relação que temos os três ultrapassa a relação normal mãe-filhos. Somos uma tribo. É verdade, sei bem que sim. Mas, pela primeira vez na nossa vida, somos uma tribo de quatro. E estamos muito melhor assim.

7 comentários:

  1. Espero que este período mais agitado passe depressa. Faz falta gozar todas as configurações da tribo.

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  2. Sabes, leio estes teus textos e fica-me na boca um sorriso...

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  3. @ Gralha, a vantagem dos deadline é que sabemos mesmo quando o fim está (obrigatoriamente) à vista! :)

    @ Obrigada, Gabzia. Sabe sempre bem ouvir, acredita.

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  4. Nós é que temos a mania de pensar que eles já não precisam tanto de nós... ainda bem que eles nos provam o contrário!

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  5. O primeiro parágrafo faz-me lembrar as maratonas da tua tia, quando fazia traduções (em Inglaterra, é claro). Mas acho que se, no dia a dia, ela talvez só trabalhasse com 4 línguas - o certo é que falava (fala) bastante mais que as tuas 4... Conclusão: ainda deves estar longe do teu limite...
    Ah, e era o marido, quando chegava a casa do trabalho, que fazia o jantar, depois da maratona da tarde dela e antes da maratona da noite/madrugada. Vi eu...
    Um importante banqueiro da nossa praça dizia em tempos, sobre as reacções do povo (português) em relação à grave crise que por cá grassa (e que uma casta de privilegiados - e seus sabujos - insiste em não ver) a frase histórica "Ai aguenta, aguenta". O povo português, entenda-se. Não sei se ele se referia só aos que cá vão ficando, apesar dos números do desemprego e das baixas dramáticas dos salários reais (e mesmo nominais), ou se também se referia aos que emigram...
    Mas, aparentemente, e se percebi bem o teu texto, trabalhar demais, também tem as suas vantagens...

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  6. A tia é poliglota, pá... eu sou apenas tradutora! Jogamos em campeonatos diferentes. No entanto, temos algo em comum: homens nórdicos! E isso muda tudo.

    Mas, sim, tens razão. Também se trabalha muito no estrangeiro, também se aguenta muito no estrangeiro. Os emigrantes e os nativos, bem entendido. É o mundo em que vivemos, suponho. A diferença é que, aqui, eu trabalho muito, mas vejo diariamente o fruto do meu trabalho num ensino gratuito de qualidade, num excelente sistema de saúde, numa rede social infalível. E isso também faz toda a diferença.

    Quanto ao resto... este pico de trabalho tem a vantagem de revelar sinergias e afectos. E isso é muito bom. :)

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