quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

Tornar-se fundamentalista I

(porque é assim que começa o extremismo)


Olho para o meu filho crescido. Cada vez mais crescido. O Diogo mudou muito no último ano. Já tem tamanho de gente grande, mas a maturidade tarda. Um pé na infância, outro na adolescência. Ambos ainda longe da idade adulta, apesar de já calçar o 43.

Não é fácil crescer. É um processo feito de avanços e recuos, aos solavancos. Prego a fundo nas rectas. Curvas apertadas. Ponto morto. Terreno acidentado e obstáculos inesperados que é preciso driblar.

As borbulhas que se transformam em cadeias montanhosas intransponíveis. O mau cheiro que teima em aparecer, à prova de todos os desodorizantes. O cabelo indomável capaz de estragar o melhor despertar. Os movimentos que se tornam bruscos. A voz grossa que agride sem querer. As lágrimas que não se conseguem evitar. O riso descontrolado. E, por vezes, uma vontade enorme de fugir dali para fora. Daquele corpo que agora é dele, mas que não lhe pertence totalmente.

O meu filho já crescido começou a olhar para mim com outros olhos. A questionar o que antes era um dado adquirido. Eu e o meu modo de vida. Eu e a minha filosofia de vida. As minhas escolhas. E ainda bem, é sinal de que está a construir a sua própria personalidade. Por oposição à minha, num movimento de perpétuo desafio e conflito que é bastante saudável. Que reflecte o vínculo seguro que fomos construindo ao longo destes anos. Como um novo vértice daquela fase em que as crianças pequenas nos dizem que não gostam de nós quando são contrariadas. Um adolescente que se revolta contra o poder paterno instituído é um adolescente que está suficientemente seguro do amor que os pais lhe têm.

Mas é complicado estruturar uma identidade num país que não é o nosso. Aprender a dominar uma nova língua. Mergulhar noutra cultura. Aceitar outro povo. Uma nova geografia, clima, gastronomia. Hábitos. Uma outra forma de ser e de estar. Ser emigrante exige uma capacidade de adaptação que não se coaduna com as vistas curtas de um adolescente. Com a sua insegurança natural. O mundo é tão grande que dá medo. Os primeiros voos a solo pedem um ninho seguro no regresso. Quando esse ninho é dúplice, o processo de crescimento torna-se mais complexo.

Aos poucos, o Diogo começou a revoltar-se também contra o país que nos acolheu. Porque tudo é diferente, quando ele gostava mesmo era de conseguir ser o mais igual possível. Confundir-se com a massa. Porque a língua dele não é esta. Porque a cultura dele é diferente. Porque aqui está frio, muito frio. Lá, calor. Aos 13 anos, cinco graus de diferença é como opor a Antártida ao Sahara. Portugal ganhou uma áurea de Terra Prometida. E ele está disposto a fazer todos os sacrifícios para lá chegar. Até porque é lá que está Deus, todo-poderoso, cuja aprovação ainda precisa de conquistar.

Tudo isto seria perfeitamente normal se o discurso fosse o mesmo em ambos os lados da barricada. Se todos os adultos à sua volta tivessem uma posição coesa que servisse de rede de segurança. O mundo é imenso. A nossa nacionalidade é imutável, mas a nossa cidadania é cambiante. Aquilo que somos não se define pelo sítio onde vivemos. O racismo, a intolerância de qualquer espécie, a xenofobia, a segregação, nascem quando se semeia uma certeza absoluta no espírito de uma pessoa em formação. Uma Verdade. Tu e os teus são melhores do que todos os outros. Quem te disser o contrário está errado e precisa de ser convencido. Convertido. Pelo uso da força, se preciso for. Por todos os meios ao teu alcance. Porque os meios justificam sempre os fins em nome de um ideal inquestionável.

Por isso, quando dizem ao Diogo que ser imigrante é uma vergonha, tenho medo. Muito medo. Quando cospem um total desprezo pelo país que nos acolheu, porque fica no fim do mundo, porque é frio e cinzento, porque é pequenino e não tem História digna desse nome. Quando gozam com o facto de falarmos duas línguas em permanência. Quando lançam a dúvida sobre a minha competência parental para escolher o melhor país para vivermos. Como se houvesse um único país possível para se viver. Quando dizem que eu não trabalho onde há trabalho bem remunerado como tantos dos nossos compatriotas. Só esta última palavra já me dá arrepios. Quando tentam convencê-lo de que vivemos longe da nossa pátria porque não temos coragem nem capacidade para aproveitar as oportunidades magníficas que o nosso país está disposto a dar a quem se esforça. Transformando-nos, assim, em ratos em fuga, em cobardes, em seres inferiores. Quando lhe mostram que a roupa que vestimos espelha a vida miserável que temos. Que os gadgets que não compramos ilustram a nossa parca capacidade financeira. Confundindo atabalhoadamente ser e ter.

Tenho muito medo desta conversa de jihadista. Da Verdade. Da Luta. Desta chantagem sentimental que impinge uma filosofia de vida inquestionável e divina em troca da aprovação unânime do grupo. Como pode um adolescente opor-se a esta militância cerrada? Como pode qualquer adolescente imigrante não se deixar seduzir pelo apelo de uma causa nobre enraizada na sua cultura de origem tida como superior? O que podemos nós fazer, enquanto sociedade que assiste a actos bárbaros contra a liberdade, enquanto família que ficou na rectaguarda e que gere a imagem que a segunda geração de emigrantes tem do seu país, enquanto pais que emigraram em busca de outras oportunidades de vida? Nem melhores, nem piores. Por que raio se ficou com a ideia de que as pessoas emigram sempre em busca de melhores oportunidades? Pode-se partir apenas – ou também, ou ainda assim – à procura de experiências de vida diferentes. E isto é algo que também devemos explicar aos nossos adolescentes. Nunca se é demasiado velho para viver, para recomeçar. Nunca se é demasiado diferente do outro. Seja lá o que o “outro” for, será sempre o nosso semelhante.

6 comentários:

  1. Gostava de ter as palavras certas que te ajudassem a fortalecer a carapaça resistente e flexível de que precisas nestes momentos. Na falta delas, renovo a minha admiração pelo que fazes a cada dia pela tua família. E a certeza que serás reconhecida, que vai valer a pena.

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  2. Obrigada pela doçura das tuas palavras, Gralha. Não procuro o reconhecimento. Faz parte da "profissão", por assim dizer, fazer o que achamos ser melhor para os nossos filhos, mesmo contra a vontade deles.

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  3. Texto soberbo!!

    Posso só dizer que admiro a coragem de quem emigrou em busca de uma vida melhor, seja para que país for!?! Acho que é preciso mesmo muita força e muita determinação.

    E sabes o que acho? Que o Diogo se vai aperceber por ele mesmo, mais tarde ou mais cedo, de que a tua decisão estava certa e que na rectaguarda, as pessoas têm uma mente um tanto limitada (para não dizer tacanha). Um dia, lamentavelmente, ele vai perceber que Portugal não tem nada de Terra Prometida.

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  4. É assim uma espécie de novo sebastianismo que ainda grassa na mentalidade das gentes, Naná. :(

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  5. A forma como escreves é maravilhosa.
    A forma como vives todos os dias a lutar por uma vida melhor e mais feliz ainda é mais.
    A relação de amor que tens que os teus filhos vai de certeza no futuro ajudar o Diogo a perceber tudo o que dizes e que agora parece apenas um "sermão" da mãe.
    Parabéns e Força!

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